segunda-feira, 27 de março de 2023
Era um dia frio
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.
O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.
Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espelho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.
Lá fora, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos redemoinhos de vento levantavam em pequenas espirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver cor em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em toda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, estalava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.
Por trás de Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.
Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sobre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou ele com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista Nº 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas províncias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em todas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de reboco revoluteava no ar e o mato crescia ao acaso sobre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colônias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, exceto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.
O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sobre terraço, trezentos metros sobre o solo. De onde estava, Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA. Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sobre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.
O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, exceto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.
Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma fatia de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITÓRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gim, contraiu-se para o choque e engoliu-a de vez, como uma dose de remédio.
Instantaneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida parecia ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITÓRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.
Por um motivo qualquer, a teletela da sala fora colocada em posição fora do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fora posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fora provavelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto.
Em parte, fora a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, mas fora também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, cor de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fora acometido imediatamente do invencível desejo de possuí-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns (“transacionar no mercado livre,” dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.
O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no mínimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e ele conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lápis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falaescreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um tremor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miúda e desajeitada escreveu:
4 de abril de 1984
George Orwell, "1984"
Desperdício de dinheiro público e falta de vergonha
A União gasta por ano 3 bilhões de reais com o pagamento de pensões a 60 mil filhas solteiras de ex-servidores públicos, informa o jornal O Estado de S. Paulo.
São filhas de diplomatas, auditores e desembargadores. Lei para isso foi criada em 1958. Em 1990, o governo deixou de reconhecer novas beneficiárias, mas a pensão continuou sendo paga a quem recebia.
Ocorre que 2,3 mil desse contingente já se casaram ou mantém relações estáveis; e 1,7 mil ingressaram no serviço público, descobriu a Controladoria Geral da União ao cruzar dados.
Essas mulheres deixaram, portanto, de atender aos requisitos da lei. E não se lembraram de avisar ao Estado. Avisar para quê? Para que suspendessem a pensão?
Um relatório do Tribunal de Contas da União, de meados de 2020, mostrou que até àquela data 620 mil pessoas receberam sem ter direito o Auxílio Emergencial para o combate à Covid-19.
À mesma época, pesquisa do Instituto Locomotiva conferiu que 3,89 milhões de famílias integrantes da parcela mais rica da população brasileira pediram e receberam o benefício de 600 reais.
Uma vergonha. Ou falta dela.
São filhas de diplomatas, auditores e desembargadores. Lei para isso foi criada em 1958. Em 1990, o governo deixou de reconhecer novas beneficiárias, mas a pensão continuou sendo paga a quem recebia.
Ocorre que 2,3 mil desse contingente já se casaram ou mantém relações estáveis; e 1,7 mil ingressaram no serviço público, descobriu a Controladoria Geral da União ao cruzar dados.
Essas mulheres deixaram, portanto, de atender aos requisitos da lei. E não se lembraram de avisar ao Estado. Avisar para quê? Para que suspendessem a pensão?
Um relatório do Tribunal de Contas da União, de meados de 2020, mostrou que até àquela data 620 mil pessoas receberam sem ter direito o Auxílio Emergencial para o combate à Covid-19.
À mesma época, pesquisa do Instituto Locomotiva conferiu que 3,89 milhões de famílias integrantes da parcela mais rica da população brasileira pediram e receberam o benefício de 600 reais.
Uma vergonha. Ou falta dela.
Anticomunismo de conveniência
Pesquisa realizada pelo Ipec e divulgada em O Globo (19/3) causou certo impacto ao indicar que 44% dos brasileiros acreditam que, com a eleição de Lula, aumentou o risco de se configurar uma “ameaça comunista” no Brasil.
Não é de surpreender. Toda vez que se falou em reformas, distribuição de renda e redução da desigualdade no Brasil, agitou-se a bandeira do anticomunismo. Foi assim no golpe de 1964, por exemplo. Políticos reacionários, populistas de extrema direita e conservadores pouco esclarecidos têm-se valido de uma imagem fantasmagórica do comunismo para induzir a população a acreditar que os comunistas estão atrás da porta, prontos para comer criancinhas. Bolsonaro fez isso em seu governo.
Nos últimos tempos, algumas coisas complicaram o argumento.
Por um lado, o comunismo desapareceu como proposta política, junto com a crise do bloco soviético e as transformações da hipermodernidade. Hoje ele pertence ao passado. Tem sua dignidade filosófica, mas não tem mais quem lhe dê propulsão. Sumiram os proletários industriais que davam base aos partidos comunistas e estes, por sua vez, não conseguiram se renovar. Foram desaparecendo ou se transfigurando em personagens de que não se tem uma imagem clara. Não há nenhuma revolução no mundo sendo planejada com programas comunistas.
Por outro lado, o conservadorismo avançou pelo terreno religioso. O pentecostalismo evangélico quebrou o monopólio da Igreja Católica e impôs novas pautas de costumes e novas maneiras de enxergar o mundo. Uma espécie de terraplanismo genérico e negacionista cresceu por esta senda, sendo rapidamente capturado pela extrema direita, com suas taras e suas falsificações simplificadoras.
Para complicar ainda mais, a desagregação da classe operária tradicional e a crise do trabalho fizeram-se acompanhar da ideia de empreendedorismo plantada pelo neoliberalismo e que aos poucos foi ganhando vida própria. A maioria dos trabalhadores brasileiros sonha em ter seu próprio negócio, ver-se livre de patrões e horários impostos, ser um pequeno empresário. É um empreendedorismo refratário ao Estado, a programas de estatização, a regras coercitivas, a tributos excessivos, vistos como cerceadores da liberdade econômica e, por extensão, como “comunistas”.
Acrescente-se a isso a ojeriza da opinião pública a regimes autocráticos como os de Maduro e Ortega, que são criticados por serem “comunistas”, embora não tenham coisa alguma que ver com comunismo.
O anticomunismo tem funcionado, entre nós, como combustível para diferentes modalidades de autoritarismo: um expediente tosco, cômodo e conveniente para contestar o sistema democrático e as reformas sociais. O golpismo bolsonarista o reforçou, valendo-se da instrumentalização das mídias sociais e de campanhas contra a esquerda e a democracia, que atacaram principalmente o PT, único partido brasileiro com alguma base popular.
Muitos comunistas ajudaram a forjar este caldo de cultura, com suas pregações maximalistas, seus exageros retóricos, sua incapacidade de ouvir a sociedade e se ajustar aos tempos. Nos últimos anos, os democratas também deram sua contribuição, ao se entregarem a disputas estéreis e polarizações artificiais no próprio terreno da democracia. Enquanto petistas e tucanos brigavam para saber quem era mais reformista, a extrema direita se expandia e o sistema político enferrujava. O anticomunismo reapareceu na esteira desse processo.
Hoje, não há mais comunismo, mas a esquerda continua viva. Chega aos governos por via eleitoral, mas não dispõe de um programa concatenado para gerir o capitalismo e responder com inteligência às demandas sociais. Muitas vezes, perde-se nos meandros de um identitarismo exacerbado, com o que preserva certos nichos eleitorais, mas entra em atrito com as grandes maiorias conservadoras, assustando-as com propostas emancipadoras e libertárias. Não são poucos os que temem que a insistência em temas identitários leve à adoção de programas contrários à família, à liberdade religiosa e à educação moral dos jovens.
Diferentemente da extrema direita, a esquerda brasileira interage de modo negativo com o conservadorismo, que tem raízes longínquas e foi turbinado pelas igrejas neopentecostais, que, em muitos casos, fornecem a seus fiéis um acolhimento e um suporte que o Estado não consegue prover.
A extrema direita estigmatiza a “ameaça comunista” porque deseja bloquear as transformações que preparam o futuro. É um reacionarismo que não sabe lidar com as mudanças frenéticas dos nossos dias e que só pode sobreviver escondendose em redes e nichos fanatizados, de onde vende ilusões, fabrica maldades e conspira.
O anticomunismo tem bases materiais, políticas e socioculturais. De algum modo, tornou-se uma ameaça à democracia e às liberdades. Não será varrido no plano retórico. O combate a ele precisa ser feito no longo prazo, centrado na educação, na institucionalidade democrática, nos direitos, na governança positiva e em boas políticas públicas.
Não é de surpreender. Toda vez que se falou em reformas, distribuição de renda e redução da desigualdade no Brasil, agitou-se a bandeira do anticomunismo. Foi assim no golpe de 1964, por exemplo. Políticos reacionários, populistas de extrema direita e conservadores pouco esclarecidos têm-se valido de uma imagem fantasmagórica do comunismo para induzir a população a acreditar que os comunistas estão atrás da porta, prontos para comer criancinhas. Bolsonaro fez isso em seu governo.
Nos últimos tempos, algumas coisas complicaram o argumento.
Por um lado, o comunismo desapareceu como proposta política, junto com a crise do bloco soviético e as transformações da hipermodernidade. Hoje ele pertence ao passado. Tem sua dignidade filosófica, mas não tem mais quem lhe dê propulsão. Sumiram os proletários industriais que davam base aos partidos comunistas e estes, por sua vez, não conseguiram se renovar. Foram desaparecendo ou se transfigurando em personagens de que não se tem uma imagem clara. Não há nenhuma revolução no mundo sendo planejada com programas comunistas.
Por outro lado, o conservadorismo avançou pelo terreno religioso. O pentecostalismo evangélico quebrou o monopólio da Igreja Católica e impôs novas pautas de costumes e novas maneiras de enxergar o mundo. Uma espécie de terraplanismo genérico e negacionista cresceu por esta senda, sendo rapidamente capturado pela extrema direita, com suas taras e suas falsificações simplificadoras.
Para complicar ainda mais, a desagregação da classe operária tradicional e a crise do trabalho fizeram-se acompanhar da ideia de empreendedorismo plantada pelo neoliberalismo e que aos poucos foi ganhando vida própria. A maioria dos trabalhadores brasileiros sonha em ter seu próprio negócio, ver-se livre de patrões e horários impostos, ser um pequeno empresário. É um empreendedorismo refratário ao Estado, a programas de estatização, a regras coercitivas, a tributos excessivos, vistos como cerceadores da liberdade econômica e, por extensão, como “comunistas”.
Acrescente-se a isso a ojeriza da opinião pública a regimes autocráticos como os de Maduro e Ortega, que são criticados por serem “comunistas”, embora não tenham coisa alguma que ver com comunismo.
O anticomunismo tem funcionado, entre nós, como combustível para diferentes modalidades de autoritarismo: um expediente tosco, cômodo e conveniente para contestar o sistema democrático e as reformas sociais. O golpismo bolsonarista o reforçou, valendo-se da instrumentalização das mídias sociais e de campanhas contra a esquerda e a democracia, que atacaram principalmente o PT, único partido brasileiro com alguma base popular.
Muitos comunistas ajudaram a forjar este caldo de cultura, com suas pregações maximalistas, seus exageros retóricos, sua incapacidade de ouvir a sociedade e se ajustar aos tempos. Nos últimos anos, os democratas também deram sua contribuição, ao se entregarem a disputas estéreis e polarizações artificiais no próprio terreno da democracia. Enquanto petistas e tucanos brigavam para saber quem era mais reformista, a extrema direita se expandia e o sistema político enferrujava. O anticomunismo reapareceu na esteira desse processo.
Hoje, não há mais comunismo, mas a esquerda continua viva. Chega aos governos por via eleitoral, mas não dispõe de um programa concatenado para gerir o capitalismo e responder com inteligência às demandas sociais. Muitas vezes, perde-se nos meandros de um identitarismo exacerbado, com o que preserva certos nichos eleitorais, mas entra em atrito com as grandes maiorias conservadoras, assustando-as com propostas emancipadoras e libertárias. Não são poucos os que temem que a insistência em temas identitários leve à adoção de programas contrários à família, à liberdade religiosa e à educação moral dos jovens.
Diferentemente da extrema direita, a esquerda brasileira interage de modo negativo com o conservadorismo, que tem raízes longínquas e foi turbinado pelas igrejas neopentecostais, que, em muitos casos, fornecem a seus fiéis um acolhimento e um suporte que o Estado não consegue prover.
A extrema direita estigmatiza a “ameaça comunista” porque deseja bloquear as transformações que preparam o futuro. É um reacionarismo que não sabe lidar com as mudanças frenéticas dos nossos dias e que só pode sobreviver escondendose em redes e nichos fanatizados, de onde vende ilusões, fabrica maldades e conspira.
O anticomunismo tem bases materiais, políticas e socioculturais. De algum modo, tornou-se uma ameaça à democracia e às liberdades. Não será varrido no plano retórico. O combate a ele precisa ser feito no longo prazo, centrado na educação, na institucionalidade democrática, nos direitos, na governança positiva e em boas políticas públicas.
Leilão tortuoso
Quase passaram despercebidas as duas páginas datilografadas e velhuscas, datadas de 29 de março de 1976, que compunham o lote número 350 do leilão Postais, Documentos, Publicações e Afins, marcado para a terça-feira 5 de abril, no Rio de Janeiro. As folhas em questão formavam uma “Declaração” na primeira pessoa de um oficial da Aeronáutica brasileira. No documento, ele atesta ter participado da prisão, interrogatórios, torturas e assassinato do preso político Stuart Angel, em 1971. O oficial declarante se identifica como Marco Aurélio Carvalho, não declina sua patente à época, mas relata em dez parágrafos secos a sequência de desumanização a que Stuart, de 25 anos, foi submetido no centro de tortura da Base Aérea do Galeão.
“De acordo com a prática naquela unidade militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas. Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura. Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória História.
“De acordo com a prática naquela unidade militar”, atesta o declarante no documento, o jovem sofreu afogamentos, choques eletromagnéticos, pau de arara. Como ainda assim se recusasse a dar a informação exigida, “o civil foi amarrado ao para-choque de um jipe. Ali ele foi arrastado por várias horas, sempre lhe sendo perguntado o endereço do referido subversivo, que ele se negava a dar (...) Depois de horas nessa situação, foi levado de novo para a cela (...)”. O médico que, segundo o declarante, trabalhava em parceria com os torturadores garantira que Stuart continuava em “boas condições” (leia-se, em condições de ser novamente interrogado e torturado). Errou feio. Stuart Angel morreu naquela madrugada de maio de 1971. Uma noite que, para a família Angel, dura até hoje.
A primeira das perguntas sem resposta levantadas pelo episódio é o que teria levado o oficial Marco Aurélio a redigir essa declaração de culpa e registrá-la em cartório no dia seguinte. Sentimento de remorso acumulado? Ainda faltavam três anos para a anistia de 1979 que permitiu o retorno dos exilados políticos e isentou para sempre os militares de prestar contas de seus crimes. Medo de ser “descoberto”? O declarante sequer existe? O texto, se apócrifo, foi criado com que intenções? Que caminhos percorreu até se tornar o lote 350 de um leilão em 2023? Em linhas gerais, o documento confirma a dolorosa carta de 1972 que Alex Polari, vizinho de cela de Stuart , endereçara a Zuzu Angel, mãe do companheiro morto. Em seis páginas manuscritas com letra miúda, Polari fizera um testemunho detalhado da prisão (que presenciou, sob escolta militar), da tortura (a que assistiu) e da morte do companheiro. “À noite, alguém foi colocado numa cela ao lado da minha. Esse alguém estava em estado precário e pude ver pelo pórtico da porta tratar-se de Stuart. Tossia a mesma tosse angustiante que ouvira toda a tarde. Distingui e também o reconheci pela voz. Três frases dele se repetiam: ‘Água’, ‘Vou morrer’, ‘Estou ficando louco’ (...)” , narrou Polari, acrescentando que dois coronéis e um enfermeiro ainda passaram pelas celas à noite. “A tosse aumentou, as frases se tornaram ininteligíveis, e depois cessaram por completo.” Stuart morrera. A História, não.
Difícil compreender o que leva alguém a incluir num leilão um registro de tamanha carga afetiva para a família Angel e de valor histórico para o Brasil. Até a sexta-feira, a página do leiloeiro público Alberto Torres também anunciava para o mesmo 5 de abril a venda de uma fotografia-ícone do cantor Ney Matogrosso (lances a partir de R$ 40), um álbum com ilustrações de antigos uniformes do Exército Brasileiro (R$ 300), uma apólice da Petrobras de 1956 (R$ 30). O lance mínimo para a confissão de tortura de Stuart Angel era mais alto — R$ 800. “Trata-se de documento NÃO OFICIAL, particular, de livre e espontânea vontade do declarante. Excelente oportunidade para colecionismo e pesquisadores sobre um dos momentos mais sombrios e nebulosos da história do Brasil”, informava o site.
E assim ficaria não fosse uma alma influente e de enorme agilidade no panorama nacional entrar no negócio e impedir tamanho horror. Ao que parece o documento agora chegará às mãos certas. Quem entrar na página do leilão hoje verá que o lote 350 foi “retirado pelo comitente”.
Quanto ao encontro sempre adiado das Forças Armadas com seu histórico de tortura, esse continua marcado. Ainda em abril do ano passado, houve um vazamento de fitas de áudio do Superior Tribunal Militar contendo análises sobre a prática da tortura durante a ditadura. Instado a opinar sobre o tema, o então vice-presidente da República e general quatro estrelas (da reserva) Hamilton Mourão recorreu a um cinismo de ocasião, talvez popular na caserna: “Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras de volta do túmulo?”.
O deboche diversionista do hoje senador da República não atinge mais as famílias dos mortos e desaparecidos da ditadura. Estão calejadas demais para doer com esse tipo de gente. É esperançar para que um dia ainda surjam confissões verdadeiras, de torturadores reais, para o Brasil poder avançar um quadradinho a mais no conhecimento de sua inglória História.
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