sábado, 30 de janeiro de 2021

Ação deliberada de espalhar vírus

Crime de epidemia. Essa é a acusação feita a Jair Bolsonaro na representação encaminhada à Procuradoria-Geral da República para que ele ofereça denúncia contra o presidente. “Da mesma forma que alguém que agrave uma lesão existente responde por lesão corporal, presidente que intensifica a epidemia existente responde por esse crime. Jair Bolsonaro sempre soube das consequências de suas condutas, mas resolveu correr o risco.

Esse crime é previsto no artigo 267 do Código Penal. “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” e a punição é prisão de 10 a 15 anos, podendo agravar-se a pena se houver morte. Torna-se então crime hediondo. Houve outras ações às quais essa representação se refere e que apontaram vários artigos do Código Penal que ele teria infringido, como o 132, que é pôr em perigo a vida ou a saúde de outrem.


O grupo de procuradores aposentados — alguns exerceram até recentemente postos elevados no Ministério Público — e um desembargador que entrou com a ação apoiou-se em pesquisa. Recentemente publicado, o estudo faz uma linha do tempo dos atos e palavras do presidente da República nesta pandemia, para assim mostrar que houve uma ação deliberada do presidente de contaminar o máximo de pessoas, na suposição de que assim se atingiria a tal “imunidade de rebanho”.

A representação foi apresentada ao Procurador-Geral da República pela, até recentemente, procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, pelo ex-PGR Claudio Fonteles, por dois ex-procuradores federais dos Direitos do Cidadão, Álvaro Augusto Ribeiro Costa e Wagner Gonçalves, o subprocurador-geral aposentado Paulo de Tarso Braz Lucas e o desembargador aposentado do TRF da 4ª Região Manoel Lauro Volkmer de Castilho.

O começo da cronologia que apresentam é o dia 7 de março. Havia seis infectados no Brasil. O presidente foi a Miami, área de risco para a pandemia. “No dia 15 daquele mês, já de volta ao Brasil, convoca e participa de manifestações políticas com grande aglomeração, sempre sem máscara, tendo contato físico com manifestantes, desrespeitando a recomendação da quarentena após retorno. E, mais grave, pelo menos desde a véspera do evento, ou seja, em 14 de março, já era pública a informação de que parte da comitiva presidencial tinha sido infectada pelo novo coronavírus. Portanto, Bolsonaro foi para a manifestação ciente de que poderia ser um vetor de propagação de um vírus até então de baixa presença no território nacional.” A longa fila de eventos em que o presidente estimulou a contaminação, à qual a representação se refere, está na pesquisa CEPEDISA/FSP/USP e Conectas Direitos Humanos.

O mundo inteiro está sendo atingido pela mesma tragédia sanitária. Mas o ponto sustentado pelos autores da ação é que aqui houve mais. “No caso do Brasil, ao evento natural somou-se a ação criminosa de um presidente da República, que expôs, desde o início da pandemia até os dias atuais, a população a um risco efetivo de contaminação”, diz o texto da representação.<br/>O procurador-geral Augusto Aras pode simplesmente ignorar o documento em sua mesa? Não pode. Ele pode arquivar, mas ele tem obrigação de tomar providências. Ignorar uma representação como essa é uma impossibilidade institucional, me explica um especialista.

Conversei com outro procurador que permanece no serviço público e perguntei que chances tem essa ação de avançar. Aras, como já disse explicitamente, acha que essa não é a sua função, apesar de ser. O problema é que o próprio Aras pode ser acusado de prevaricação, por deixar de cumprir seu dever. E pode ser acusado pelos seus colegas.

— O artigo 51 da lei complementar 75/1993, lei orgânica do MPU, diz que “a ação penal pública contra o procurador-geral da República, quando no exercício do cargo, caberá ao subprocurador-geral da República que for designado pelo Conselho Superior do Ministério Público” — explicou um procurador.

Aras não tem maioria no CSMP. A ação seria diretamente levada ao Supremo Tribunal Federal. Aras tem esperança de ser indicado para uma vaga no STF. Concorre com outros dois fortes candidatos, o ministro da Justiça, André Mendonça, e o ministro do STJ Humberto Martins. 

Bolsonaro se blindou, mas tem tido, como diz a representação, inúmeras “condutas criminosas” durante esta pandemia. E nessa ação foi acusado de crime grave.
Míriam Leitão

Paisagem brasileira

 


Entre os imbecis e os filhos da puta

Não existe argumento mais forte que o resultado. João Dória fez a parte que lhe cabia e pôs a vacina que batalhou aqui. Jair Bolsonaro não fez a dele. Ou pior, fez a que se atribuiu e resulta em que ha nos centros de saude publica toneladas de falsos remédios e nenhuma ampola do remédio que cura porque, contra todas as evidências, concentrou-se sempre em providenciar uns e nunca em providenciar o outro. Ao contrário, além de menosprezar a virulência da doença, que logo passou a dispensar “comprovação científica” porque estava matando nossos amigos e vizinhos diante dos nossos olhos leigos, dedicou-se a negar o que ha séculos todos os fatos afirmam e confirmam sobre a eficácia da vacinação como única forma de deter epidemias e, para além de salvar vidas, permitir que os países voltem a trabalhar, que é o que ele sempre disse ser a sua prioridade.

Se dos testes resultou que a vacina CoronaVac é menos eficiente do que gostaríamos que fosse, isso nada tem a ver com a parte do trabalho que cabia a João Dória. Assim como Jair Bolsonaro nada teve a ver com o resultado melhor alcançado pelos testes da vacina da Oxford em que algum lúcido do seu governo, meio à revelia dele, conseguiu apostar afinal.

Tudo isso é fato. Tudo isso é história. Nada disso é “fake news”.

Mas nem a monumental estupidez cometida por Jair Bolsonaro, nem a admiração dele pela monumental estupidez de Donald Trump, alteram em um milímetro sequer a monumental cupidez da canalha que chupa o Brasil para além do bagaço.

Os governadores que superfaturam respiradores, que montam e desmontam hospitais de campanha sem usá-los, que desviam vacinas da fila de prioridades, que roubam o ar que a gente respira, continuam sendo o que são.

O mesmo SUS onde o Brasil pobre se foi abrigar da pandemia porque esta é a parte que lhe cabe deste latifúndio, onde pelejam os heróis que perdem sempre sabotados pela multidão dos ladrões que não perdem nunca, continua sendo, como a maior das contas estatais, o maior ralo da República, porque é para comprar barões ao rei e ser eternamente aparelhada e ordenhada que conta estatal existe em todo lugar do mundo, variando apenas o grau de cumplicidade das polícias.

Os vereadores, os deputados, os senadores; os políticos de todos os calibres e de todas as famílias que inflam morbidamente o custo do funcionalismo público num país miserável para fazer “rachadinhas” continuam sendo o que sempre foram.

Os autores do “maior assalto de todos os tempos”, conforme descrito pelo Banco Mundial que mede os efeitos dos cataclismos do gênero no planeta inteiro, continuam sendo os maiores ladrões de todos os tempos, embora soltos.



Os ministros do Supremo Tribunal Federal que dão sentenças contra “atos antidemocráticos” enquanto anulam monocraticamente votações inteiras do Congresso dos representantes eleitos do povo; os ministros que soltam de ladrões eméritos da Republica a chefões do PCC; os ministros que enriquecem com suas redes de “escritórios de advocacia” familiares a ponto de manter segundas casas em euros e em dólares ganhando R$ 39 mil por mês (US$ 7.330 ou E$ 6.037 ao cambio de ontem) continuam sendo exatamente o que os seus atos e os sinais exteriores de riqueza que emitem dizem que são.

Nunca se viu ou sequer ouviu qualquer membro da lista acima propor ou batalhar pela devolução de um privilégio, por menor que fosse, para salvar vidas, para tirar mães da miséria, para resgatar bebês da fome. Os poucos que o fizeram penam o ódio eterno de seus pares. Ao contrário. Agora mesmo, enquanto você lê, passando por cima de supostas “inimizades históricas” entre “direita” e “esquerda” – a divisão horizontal que nunca suplantou o corte vertical “nobreza” x “plebeus” que rege este país – estão tramando às claras, oficialmente, a tomada do comando do Congresso Nacional contra o compromisso solene de agir unidos contra o favelão nacional para não ter, jamais, nenhum dos seus privilégios vencidos.

A máfia que nos faz andar para traz, de década em década perdida, continua sendo a máfia que, sempre por motivo torpe e sem dar chance de defesa à vítima, tem feito o Brasil mergulhar mais fundo na miséria a cada dia que passa desde que escreveu e nos impingiu goela abaixo sem referendo a constituição da privivelgiatura, pela privilegiatura e para a privilegiatura. Só varia o primeiro lugar da fila dos excluídos de qualquer ameaça das eternamente “urgentes reformas” que, afinal, nunca acontecem: ora os marajás do Judiciário e os professores das universidades públicas que comem cada um por 50 professorinhas de pobre, ora os policiais e os militares de todos os denominadores e calibres.

Tudo isso também é fato. Tudo isso também é história. Nada disso, também, é “fake news”.

O Brasil é um país disputado a tapa entre os imbecis e os filhos da puta, com uma imprensa imbecil automaticamente alinhada aos imbecis e uma filha da puta automaticamente alinhada aos filhos da puta, o que faz os imbecis cada vez mais imbecis e os filhos da puta cada vez mais filhos da puta.

É preciso quebrar essa espiral do desastre.

Não, nem um gênio, nem um iluminado nem um salvador da pátria, pelamôr!

O povo, senhoras e senhores! O povo!

Aproveitemos essa rara janela de aplauso amplo, geral e irrestrito à democracia americana antes sempre tão apedrejada. Adotemos, nós também, o remédio que ela ensinou e que todo o mundo que deu certo adotou.

Nós, o povo!

O povo que não é ninguém. O povo que não é nem um grupo em especial. O povo que não é “de direita” nem “de esquerda”. O povo que é média e que é móvel…

Só ele tem legitimidade para ser governo. Só ele tem legitimidade para mandar no governo. O resto, QUALQUER poder desamarrado da prerrogativa de sanção pelo povo por um minuto que seja é, por definição, antidemocrático, e invariavelmente predatório.

País da piada pronta

O problema, meus caros amigos, é que o futuro ser previsível aqui não adianta nada: vejam as enchentes, aquele fenômeno para o qual as cidades nunca estão preparadas apesar de ele acontecer TODO ANO na mesma época. Somos como o português da piada, que está andando pela calçada, vê uma casca de banana lá na frente e diz ‘ai, Jesus, lá vou eu escorregar de novo’. "Olha lá, vamos votar num idiota populista de novo; ih, votei no idiota; ai, meu Deus, me estabaquei mais uma vez”

Ruy Goiaba 

Fim do auxílio congestiona miséria

Em dois domingos consecutivos de janeiro, o historiador Raphael Ruvenal, de 31 anos, saiu de casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, às 5h45 para, depois de três horas de trem, ônibus e barca, chegar a um colégio estadual em Niterói, a mais de 50 km dali, onde foi fiscal do Enem. Apesar de as provas só terem início às 13h30, todos os fiscais deveriam se apresentar às 8h45. Liberado às 19h, Raphael chegou em casa às 22h.

Por cada um dos dias do Enem, recebeu R$ 90. Descontado o transporte, sobraram R$ 73. Se as provas tivessem acontecido dez dias depois, seus vencimentos teriam sido 25,5% menores por causa do reajuste no transporte metropolitano já confirmado para o início de fevereiro. O ganho líquido só não foi mais reduzido porque a direção da escola ofereceu lanche para a jornada de 16 horas.

Para ser selecionado como fiscal, ele teve que se submeter a um curso on-line de 20 horas e a uma avaliação. Formado, com a ajuda do Prouni, e pós-graduado em história, roteirista e escritor, Raphael está desempregado há mais de um ano e tem penado para dar aulas particulares remotamente. Os R$ 146 que lhe renderam o Enem foram sua única renda ao longo de janeiro.

Falante, articulado e lido, Raphael resume numa frase a pedreira que enfrentou como fiscal do Enem: “Recusa trabalho quem pode”. Filho de uma diarista e de um agente administrativo do Ministério da Saúde, com renda de R$ 3,5 mil, Raphael não entrou para a fila da miséria porque vive com os pais. Beneficiário do auxílio emergencial até dezembro, o historiador da Baixada Fluminense é parte das mudanças no perfil da pobreza que emergiram com o fim do benefício.

Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole na USP e estudioso de desigualdade social, Rogério Barbosa apenas começou a mapeá-los, mas já descobriu que os novos empobrecidos pelo fim do auxílio estão no meio da distribuição de renda. Em sua maioria, são egressos do mercado formal que ainda não se recuperou e tinham, antes da pandemia, uma renda domiciliar per capita média de R$ 859. O pesquisador vê os pobres apenas de volta ao assento de baixo de uma gangorra da qual não saem desde 2015. Quem grudou no chão com o fim do auxílio, e não sabem como nem quando poderão sair, foram os mais remediados.



Morador do Chapéu Mangueira, comunidade da zona sul do Rio, Eduardo Henrique Baptista levava uma vida de classe média até o início do ano passado. Tocava, junto com a mulher, o bar do sogro, de onde a família tirava, por mês, uma renda de até R$ 4 mil. Com a pandemia, resolveu fechá-lo. Quem se manteve aberto continua faturando na comunidade, mas ele não quis ter o vírus por sócio.

Eduardo só continuou a vender água para dar conta do aluguel do imóvel de R$ 600. Para pagar o da casa em que mora, de R$ 800, se valeu mesmo foi do auxílio emergencial que ele e a mulher receberam. Em janeiro, não entrou mais nada. Para dar conta dos três filhos de 16, 11 e 8 anos, faz bicos no gerenciamento de redes sociais e na produção de eventos da pandemia, como “lives” e “streamings”, enquanto a mulher vende produtos de bronzeamento e faz sobrancelhas no Chapéu Mangueira. Mesmo com os bicos, o casal não consegue chegar na renda de R$ 1,2 mil que lhes garantia o auxílio.

Nas planilhas de Rogério Barbosa, o ano de 2020, sem auxílio emergencial, poderia ter deixado 28% das famílias com um rendimento aquém de um terço do salário mínimo per capita, que é a linha de pobreza no Brasil. E é a este patamar de miséria que o Brasil pode chegar sem a renovação do benefício, o que é mais do que o dobro da média de famílias abaixo da linha de pobreza registrada ao longo de 2020.

Como nas crises brasileiras sempre se descobre que dá para cavar mais o fundo o poço, Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi atrás e encontrou um alçapão: a perda dupla do auxílio e do Bolsa Família. Com a calamidade pública foi suspensa a exigência da atualização cadastral do BF para a renovação bienal do benefício. Finda a calamidade, o bloqueio de beneficiários que não se recadastrarem passará a ser automático. A exclusão de dezenas de milhares de famílias do cadastro do Bolsa Família engordaria ainda mais a fila do programa, que já passa de 1,5 milhão.

No auge do auxílio emergencial, quando o programa incluía 68 milhões de pessoas, o valor injetado diretamente na veia dos consumidores passou de R$ 50 bilhões mensais. Em janeiro, ainda há beneficiários de parcelas em atraso. A partir de fevereiro, porém, essa transferência de renda mensal totalizará apenas R$ 2,7 bilhões. Por esse despenhadeiro, rola muito mais gente do que os beneficiários do auxílio. Foi na sua vigência, por exemplo, que a indústria de alimentos, construção civil e varejo tiveram o melhor ano da história.

Em meio à renda que despenca, o secretário de Fazenda de Alagoas, George Santoro, encontrou uma caverna. O fisco alagoano já foi impactado negativamente pela arrecadação do ICMS, mas o baque definitivo só é esperado para abril. Santoro calcula que, do saldo positivo de mais de R$ 166 bilhões em contas de poupança, R$ 100 bilhões tenham vindo da poupança digital aberta pela Caixa Econômica Federal, ao longo de 2020, para cada beneficiário do auxílio emergencial. Até abril os beneficiários que tiverem feito poupança vão queimá-la. Depois disso, acabou.

Gestores públicos, parlamentares, acadêmicos e os próprios beneficiários tendem a concordar, reservadamente, que teria sido preferível um auxílio de valor mais baixo e duração mais alargada. Santoro lamenta que tenha sido perdida a oportunidade de se aproveitar esse momento da pandemia para oferecer treinamento em larga escala para melhorar a empregabilidade dos beneficiários do auxílio para o pós-pandemia.

A volta do emprego sempre foi o maior escudo do Ministério da Economia contra a renovação do auxílio emergencial. As evidências de que essas expectativas não se confirmarão, no entanto, já arrefece a rejeição ao benefício. Ao longo da pandemia Rogério Barbosa passou a confiar tanto nos dados do Caged, cadastro informado pelos empregadores, quanto numa nota de 30. Prefere se guiar pelos dados da Pnad Contínua. E aposta até um lobo-guará numa onda de demissões em massa com o fim dos acordos de redução de jornada e salário a partir da caducidade da regra no fim de 2020. O que suas planilhas mostram é desolador: uma pobreza que caminha para repetir a da crise dos anos 1980.

No Congresso, dos quatro principais postulantes, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS), no Senado, e Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, apenas este último se mostrava resistente ao auxílio. Temia afugentar, precocemente, o apoio que tem hoje no mercado financeiro, mas passou a aceitá-lo e a catequizar suas plateias bem postas a fazer o mesmo.

A chave virou depois que cresceu a ameaça do impeachment. É uma conta de padaria. Sem o auxílio, cresce a insatisfação e a chance de ter povo na rua. O Datafolha (22/01) registrou queda de dez pontos percentuais entre aqueles que deixaram de receber o benefício. Com 40% de rejeição na primeira grande pesquisa de 2021, Bolsonaro só perde para Fernando Collor de Mello como o presidente de pior avaliação, desde a redemocratização, no início do segundo biênio do mandato. A mesma pesquisa mostrou que sete em cada dez brasileiros não têm uma renda alternativa ao auxílio.

O impeachment, que ainda não tem apoio majoritário entre os entrevistados, passa a ser um desfecho provável se a imagem do governo Bolsonaro continuar a se deteriorar pelo duplo desgaste do fim do auxílio e da demora na vacina. É tudo o que Lira não quer. Os dois impeachments de presidente da República registrados na história nacional, o de Fernando Collor de Mello (1992) e de Dilma Rousseff (2016), foram seguidos da cassação dos presidentes da Câmara, Ibsen Pinheiro (1994) e Eduardo Cunha (2016), que comandaram a degola dos chefes da nação. Para não ser o próximo da lista, corre para evitar a todo custo o impeachment. Nem que, para isso, Arthur Lira tenha que dar um cavalo de pau no ministro da Economia, Paulo Guedes. É este o cálculo político que faz com que a chance de renovação do auxílio emergencial já estivesse mais longe.

No outro lado do balcão, de quem vive sob o cerco das planilhas fiscais, a conta não fecha. O país hoje tem um perfil de dívida mais alongado a taxas mais baixas, mas o endividamento causado pela renovação do auxílio apavora as expectativas de aceleração da espiral de juro, inflação e (mais) desemprego. O resto do discurso já se conhece. O de que se dá com uma mão e se tira com a outra, embora beneficiários e prejudicados não sejam necessariamente os mesmos.

A renovação do auxílio também mantém de prontidão a guarda sobre os deslizes fiscais do governo. Uma nova calamidade pública autorizaria a abertura de novos créditos extraordinários, mas a gestão do “Orçamento de Guerra” em 2020 mostrou que as brechas fiscais dependem do tamanho da lupa que se use - e da chuva que caia sobre o teto. No limite, a despeito dos pavores do mercado e dos riscos fiscais, o auxílio é a alternativa que resta para o presidente ganhar tempo.

A PEC Emergencial, que corta gastos do governo, volta ao noticiário como tábua de salvação para possibilitar a adoção do auxílio sem apavorar os fiscalistas. Pouco têm importado as evidências de que, quanto mais enrolado fica o presidente, mais difícil é cortar gasto público. É neste pandemônio que o auxílio emergencial ensaia sua volta. Não pela consciência de que a fome não pode ganhar a macabra corrida contra o vírus, mas pela sobrevivência política de quem está no comando do espetáculo.

A noite em que Natuza chorou

Há pouco tempo, na lista de meios já utilizados por mim, faltavam o camburão e a ambulância. Agora, só falta o camburão. Semanas atrás, incomodado por uma constipação intestinal, belo eufemismo da medicina, e pelo que me parecia um quisto em lugar incômodo, me vi no Pronto Atendimento, outra expressão mais tênue, simpática, do que pronto-socorro, que nos dava a sensação de fim de linha. Terminados alguns exames, me assustaram: “O senhor vai direto para o hospital, a ambulância já está à espera”. Pronto, meu catastrofismo, herdado de minha mãe, aflorou. A vida inteira dona Maria do Rosário, boa e piedosa, teve medo de perder a casa, hipotecada à Caixa durante uma reforma. A casa está na família até hoje. Colocaram-me em uma cadeira de rodas, apesar de eu poder caminhar. Cadeira de rodas é boa nos aeroportos, principalmente no de Guarulhos, com seus corredores quilométricos. O motorista da ambulância me devolveu o humor. “Quer com emoção ou sem emoção? Ou seja, a toda velocidade com sirenes abertas ou normal?” Não sabia se eu ia morrer logo ou se dava tempo de chegar ao Einstein, respondi: “Sem emoção”.

Sem? Quem disse? As ruas estropiadas desta cidade são um inferno para quem vai deitado, sofrendo sacudidelas que não nos jogam no chão porque nos prendem com cinturões. Eu me imaginava louco metido em camisa de força.

Por sorte (ou merecimento, não vá o psicoterapeuta Hiroshi Ushikusa dizer: pare com essa culpa), o convênio médico que a Academia Brasileira de Letras me concedeu cobre tudo e fui entregue ao doutor Alberto Goldenberg, que rápido correu com os procedimentos. Adoro esta palavra, é boa para tudo. E eu pensava o quê? Aqui terá oxigênio? Ou me angustiava: claro que não conseguirão um diagnóstico. Sou o paciente que não anima nenhum médico. Mas alguém lá em cima – pode ser até no andar superior – olha por mim.





Neste momento, liguei a tevê. GloboNews. Por que fiz? Mergulhei no horror, desumanidade, incompetência e desespero, achei que era a guerra civil, ocasionada por um governador abobalhado e pela logística do Pazuello, o militar que mais desonra as Forças Armadas, é só vexame. Tenebrosas e pungentes mortes por asfixia começaram a saltar da telinha. Tentar respirar e o ar não existir deve ser um horror. Isso de Manaus pode se repetir pelo Brasil, porque o governo garante que está fazendo a sua parte. E, quando ele garante isso, é melhor apanhar o passaporte. Falta de oxigênio deve ser uma morte tão horrorosa quando a provocada pelo gás Zyklon.

Senti-me mal, culpado (atenção Karnal), privilegiado. Estava preocupado com um coisa que acabou sem drama nenhum. E naquele mesmo momento havia pessoas sem respirar e a morrer, enquanto outras nem conseguiam enterrar seus mortos. Quantos Brasis existem dentro de um? Quanta diversidade social e financeira. Eu, privilegiado. Passei por tomografias em máquinas caríssimas, fiz exames laboratoriais cujos resultados saíam em minutos, mas em Manaus – e em tantas outras partes – tinha (e tem) gente sem respirar, sem atendimento, sem respirador e criminosamente sem vacina. Ah, e os fura-filas?

Então, pela primeira vez na minha vida, vi uma jornalista, Natuza Nery, não suportar e explodir em choro, enquanto relatava os fatos daquele inferno amazônico. Diante da crueldade, Natuza chorou. Lágrimas correram, ela parou de falar. Espectadores choraram. Fiquei travado, nunca me esquecerei. Breve cena de poucos minutos. Mas quem devia chorar, o presidente, os parlamentares, os ministros do Supremo, os generais tão invocados a todo momento, estes pouco se davam, se deram, se dão.

Agora, estou em casa salvo, escrevendo este texto pelo qual posso ser processado pelo ministro da Justiça. E a fila de mortos cresce, avoluma-se, é uma pilha, um Himalaia de pessoas. Mas tudo bem, o procurador Aras está aí para salvar a pátria, ou o presidente. Passamos dos 215 mil mortos. Toda a população de Araraquara, onde nasci. Uma cidade inteira. Gente, seres humanos que vivem, trabalham, amam, comem, bebem, se divertem, riem, choram, têm prazer e dor, são felizes ou não. Gente que vive, quer viver, porque é bom, apesar de tudo.

Temos medo. Estamos angustiados. Todos, de todas as cores e modos e religiões e ideologias e fantasias e sonhos e desejos, estão na fila para morrer. Não chegou a hora de fazer alguma coisa?

A cultura genocida do Brasil

Em menos de um ano, mais de 200 mil mortos no Brasil, em decorrência da covid-19, são mais do que os mortos de Hiroshima em decorrência da bomba atômica que os americanos explodiram sobre a cidade.

Ao colocar o presidente da República um general da ativa, especialista em logística, como ministro da Saúde, está ele dando status militar ao combate à pandemia. Justifica-se, pois, a comparação que faço.

Estamos diante de uma guerra - e guerra que, em consequência de seus efeitos socialmente colaterais, estamos perdendo. E o estamos porque até aqui fizemos e conseguimos menos do que teríamos feito e conseguido se tivessem prevalecido a ciência e os critérios e recomendações científicos na administração do problema sanitário.

Em alguma medida, o número das mortes decorrentes da pandemia reflete efeitos das recomendações de medicação sabidamente equivocada e dos maus exemplos do próprio governante nas atitudes em relação à doença.



Os que se sentiram estimulados, pelos maus exemplos vindos de cima, a violar os critérios de segurança pessoal e coletiva e preferiram peitar o vírus amontoando-se em praias, ruas e restaurantes, tornaram-se elos na cadeia de disseminação do agente da pandemia.

Os desvios de conduta têm sua raiz na contraditória concepção de genocídio subjacente ao cálculo político que aqui se pratica desde as origens do Brasil. País formado pela junção à força, própria da conquista, de etnias e raças culturalmente diferentes, acabou marcado pelo pressuposto de que o conquistador era gente e o conquistado não.

Nos tempos coloniais, nas estatísticas oficiais e nas definições da diversidade dos habitantes da época, se vê claramente a dúvida dos escrivães, na classificação da população da colônia, em relação a quem era gente ou não era. Seres de servidão ou de escravidão, suas vidas eram consideradas provisórias, limitadas à utilidade do servir e a no servir esgotar-se. As diferenças sociais indicavam diferenças na possibilidade de viver: os que viveriam tudo que tinham direito e os que viveriam apenas o que as condições lhes permitissem.

O fato de que quase tudo no país, até hoje, é insuficiente para todos decorre de que tudo está distribuído desigualmente: a suficiência para a minoria e a insuficiência para a maioria. Aqui, nem as suficiências nem as insuficiências estão democraticamente distribuídas. Nesse sentido, a própria vida não está democraticamente distribuída. De certo modo, socialmente, a economia brasileira é a economia dos restos. Gente sobrante vivendo do que sobra.

Essa cultura limitante e genocida de referência formativa do nosso comportamento se nutre de uma dificuldade estrutural própria do nosso modelo de acumulação. Para se equiparar aos países ricos, atenua os benefícios do desenvolvimento econômico ao reduzi-los ao menos do que o necessário ao nosso desenvolvimento social.

Na cultura do menos, a morte equilibra as contas. Esse tem sido um cálculo cruel subjacente a falas e decisões de responsáveis por nossos dilemas políticos. Especialmente agora. Falar, hoje, em fatalidade da morte, em face justamente de ser ela uma fatalidade administrável, mas não controlada aqui, mostra-nos o quanto está situado nas profundezas de nossa consciência o conformismo brasileiro com essa modalidade de morte.

Cultura disseminada na população, acabou se caracterizando, quando muito, pela preocupação com a vida dos próximos e apenas vaga preocupação com a vida dos distantes. Em tese, porque a deformação abrange a crença descabida de que em casa e entre parentes próximos a doença não se espalha.

Na verdade, as informações mais recentes mostram que essa imprudência é responsável pela maior incidência de contaminação no interior das famílias, devido à falta dos cuidados recomendados: distanciamento, máscara e higienização das mãos.

O caos que tomou conta do país e vai se tornando tragédia nas mortes decorrentes da covid e das públicas manifestações de competente produção da circunstância da desordem. A falta de previsão e planejamento logístico, como no caso doloroso das mortes de pacientes por falta de ar em Manaus, é fruto da omissão que tem sentido nessa mentalidade.

Na perspectiva da igualdade jurídica, dos direitos sociais e da cidadania, é incômodo, porque é muito revelador, ouvir um presidente da República dizer, em relação à peste: “Fiz a minha parte”. É afirmação de quem a boca fala apenas a língua limitada de uma sociedade de alguns, e não de uma sociedade de todos. É a língua de um burocrata, e não a língua de um governante. Não é língua de estadista, de quem vê, compreende e personifica o todo. Coisa de quem concebe o mandato como aquilo que o mandato não é.