terça-feira, 1 de agosto de 2023

Pensamento do Dia

 


A inteligência artificial vai te fazer tirar uma nota 10. Mas não é isso que importa

Com pouco destaque em um relatório de 200 páginas sobre tecnologia, a Unesco evidenciou na semana passada o que pode ser um impacto amedrontador da inteligência artificial (IA) na educação. Por dar respostas rápidas em um tempo em que rapidez é entendida como sinônimo de eficiência, ferramentas como Chat GPT podem retirar do estudante um dos grandes propósitos pelo qual vamos à escola ou à universidade: aprender a pensar.

Pode parecer catastrófico demais para algo ainda sem muitas evidências, mas a Unesco dá o tom: “essas ferramentas poderiam exercer um impacto negativo na motivação do estudante de conduzir pesquisas independentes e achar soluções”.


E não é só porque as soluções do Chat GPT podem ser piores, ter vieses e informação de fontes não confiáveis, é porque o importante é o processo. A IA em breve vai dar respostas perfeitas. Mas na educação o que vale não é nota 10. É, sim, a construção do conhecimento.

Isso acontece durante as etapas de aprendizagem, como, por exemplo, antes de escrever um trabalho escolar. O cérebro coleta informações, relaciona umas com as outras, analisa, tira conclusões. E depois, ao tentar expressar suas próprias ideias em um texto, vem um outro exercício cerebral, com organização do pensamento, priorização, experimentação, memória.

Todos esses processos fazem o estudante não só aprender o que está sendo proposto na escola, mas também a lidar com outras tarefas do dia a dia, a se relacionar com as pessoas, planejar, tomar decisões. Pesquisas já mostraram até que a leitura de um romance ajuda o cérebro a desenvolver empatia.

Mas tudo isso passa batido quando o Chat GPT faz o trabalho de um universitário, como relataram alunos ao The New York Times. Um deles mostrou à ferramenta um parágrafo escrito por ele mesmo e pediu que o robô fizesse um outro texto, sobre outro assunto, com o seu estilo. Deu certo e ele recebeu nota máxima.

A IA também pode, claro, identificar melhor as dificuldades de cada estudante e tornar o ensino mais personalizado. Ou fornecer em segundos informações que levariam muito tempo para serem encontradas, corrigir provas para os professores e liberá-los para trabalhos mais interessantes.

Difícil para Unesco ou qualquer um hoje prever os limites da inteligência artificial. Mas o relatório faz questão de frisar o que parece óbvio: os alunos precisar aprender com e sem tecnologia na escola. E nós, que não somos robôs, temos de ter um olhar atento para que a IA não arruine o processo mais brilhante da mente humana: a aprendizagem.

De onde vêm as maiorias

Está se tornando consensual o entendimento de que o nosso sistema político não está funcionando para servir aos brasileiros. Há muitos que julgam, e eu com eles, que a política é a principal responsável pelo nosso baixo crescimento e pela pobreza da maioria da população. A partir daí surge a grande questão: a quem culpar por estes descaminhos?

Há quem prefira pôr a culpa na baixa qualidade dos políticos atuais. Se fosse este realmente o problema não haveria nada a fazer. Os políticos em atividade foram eleitos conforme as leis do país e, de um modo ou de outro, são uma imagem da própria sociedade, na sua diversidade e nas suas carências. Os homens que temos na esfera pública são esses que estão aí. Este é um fato da vida. O caminho construtivo, e que está ao nosso alcance, é construir instituições nas quais a conduta desses homens seja diferente do modo como eles hoje se comportam.


Precisamos encarar uma reforma política, mas para isso precisamos ter foco na questão mais crítica, que é o sistema eleitoral. O sistema chamado de proporcional com lista aberta, que é o que adotamos para a escolha dos deputados, não existe mais em nenhuma democracia civilizada e é o responsável pelos nossos problemas de governança e de falta de representação.

Na quase totalidade dos países a eleição para o Parlamento se dá por meio de dois sistemas: distrital ou proporcional com lista fechada. No distrital o país é dividido em tantos distritos quantas são as cadeiras em disputa e em cada distrito trava-se uma eleição majoritária, na qual o vencedor é o candidato mais votado. Nestas eleições distritais o eleitorado é limitado, os candidatos são conhecidos dos eleitores e o número total de candidatos é naturalmente pequeno. O vínculo entre o eleito e o eleitorado é muito forte e permanece vivo durante todo o exercício do mandato, ao contrário do nosso sistema brasileiro, no qual, passados poucos meses a maioria dos eleitores sequer se lembra em quem votou.

O outro sistema, que vigora na Espanha, por exemplo, é o proporcional com lista fechada. Cada partido propõe ao eleitorado uma lista preordenada com o número de cadeiras em disputa. Apurados os votos partidários e definido o número de cadeiras obtidas pelo Partido serão considerados eleitos os deputados, pela ordem com que estão relacionados na lista. O voto é no Partido, sua plataforma, seus valores. O resultado eleitoral tem uma consequência transparente e induvidosa. Nestes dois sistemas as eleições descobrem a maioria política e a conduta desta maioria é forçosamente coerente e fiel à vontade dos eleitores.

No Brasil tudo é diferente. O deputado disputa o voto em todo o Estado. Em São Paulo, por exemplo, os deputados são eleitos por trinta e cinco milhões de eleitores. Eleitores e candidatos não têm como se conhecer e não se estabelece entre eles vínculo de qualquer natureza. Se o voto fosse distrital, o eleitorado seria limitado a quinhentos mil, o tamanho de uma cidade média. As cadeiras são atribuídas aos Partidos, mas o voto é dado no candidato, sendo eleitos os mais votados da lista. O sistema todo é voltado para o candidato e não para o Partido. Assim o sistema não cria vínculo do eleitor com o eleito, nem desse com o Partido.

O sistema favorece a extrema fragmentação partidária e elege deputados inteiramente autônomos, livres para mudar de lado, sem qualquer consideração com a vontade de quem o elegeu. Como o governo do país depende tanto do Presidente quanto do Parlamento é preciso formar uma maioria de qualquer jeito. O caminho que existe é negociar o interesse individual dos deputados e tentar governar com estas maiorias sem alma e sem responsabilidade, renunciando a qualquer ação transformadora que mude o país. Não é o povo que escolhe a maioria.

Este é o destino de todos os nossos governos, qualquer que seja sua inclinação política e qualquer que seja o apoio que tenha da população. A mudança do sistema eleitoral é a única porta que nos resta para mudar o país. Precisamos nos acostumar com esta ideia.

Uma crítica ao comentário oficial

Numa aldeia, alguns camponeses que se haviam reunidos para ler os Evangelhos foram dispersados pelos guardas. No domingo seguinte voltaram a se reunir. Então o chefe dos soldados levantou-lhes um processo e levou-os a julgamento. Após um inquérito feito pelo juiz de instrução, o substituto redigiu uma ata de acusação, que o tribunal confirmou. Durante o requisitório foram apresentadas as provas do delito; eram os Evangelhos. Os camponeses foram deportados.

- É horrível! – Concluiu Nekliudov. – Será possível que isto é verdade?

- O que é que nisso o surpreende tanto?

- Tudo. Não falemos já no chefe dos soldados, mero executor e ordens, mas o substituto que redigiu a ata é um homem instruído...

- Aí é que está o erro. Estamos acostumados a creditar que os magistrados são homens modernos, de ideias liberais. Foi assim noutros tempos, mas agora é tudo diferente. São funcionários e apenas estão preocupados em que chegue o dia vinte de cada mês para receberem os seus vencimentos, que gostariam de ver continuamente aumentados. A isto se limitam os seus princípios. Julgam, acusam e condenam quem quer que seja.

- Mas existe alguma lei que permita deportar homens só porque se reúnem para ler os Evangelhos?

- Não só a lei permite deportá-los, mas até condená-los a trabalhos forçados quando se prove que se atreveram a comentar os Evangelhos de maneira diferente daquela que está estabelecida, pois isso constitui uma crítica ao comentário oficial. Ora, o artigo cento e noventa e seis pune com desterro o ultraje à fé ortodoxa.

- Isso não é possível!

- Afirmo-lho. Digo a todo momento aos senhores magistrados – continuou o advogado – que não posso vê-los sem sentir um profundo sentimento de gratidão para com eles, pois, se eu não estou na prisão, nem o senhor, nem toda a gente, é à sua benevolência que o devemos. Quanto a privar qualquer pessoa dos seus direitos civis e a deportá-la para um lugar mais ou menos longínquo, não há nada mais fácil.

- Sendo assim, se tudo depende da disposição do procurador ou das pessoas suscetíveis de aplicar ou não a lei, para que servem os tribunais?

O advogado soltou uma gargalhada.
Leon Tolstoi, "Ressurreição"