sábado, 5 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Assim se fabrica a guerra infinita

Israel não deseja a paz. Nunca quis tanto que estivesse errado o que escrevo. Mas as evidências se acumulam. Na verdade, pode-se dizer que Israel nunca desejou a paz – uma paz justa, ou seja, baseada num acordo justo para ambos os lados. É verdade que a saudação rotineira em hebreu é Shalom (paz) – shalom quando alguém se despede e shalom quando alguém chega. E quase todo israelense dirá sempre que deseja a paz, claro que sim. Mas ele não se refere ao tipo de paz que traz justiça, sem a qual não há paz e não haverá paz. Os israelenses desejam paz, não justiça; certamente nada que se baseie em valores universais. Nos últimos dez anos, aliás Israel afastou-se até mesmo da aspiração de construir a paz. Desistiu completamente dela. A paz desapareceu da agenda, seu lugar foi tomado por ansiedades coletivas, fabricadas sistematicamente, e por questões pessoais, privadas, que agora têm prioridade sobre todas as outras.

Os israelenses que ansiavam pela paz aparentemente morreram há cerca de uma década, depois do fracasso da reunião de Camp David em 2000, da disseminação da mentira de que não há um parceiro palestino para a paz e, claro, do terrível período da segunda intifada, encharcado de sangue. Mas a verdade é que, mesmo antes disso, Israel nunca desejou realmente a paz. Nunca, nem por um minuto, Israel tratou os palestinos como seres humanos com direitos iguais. Nunca viu seu sofrimento como um sofrimento humano e nacional compreensíveis.

Também o movimento israelense pela paz – se é que chegou a existir – morreu uma morte lenta, em meio às penosas cenas da segunda intifada e à mentira da falta de parceiros. Tudo o que restou foi um punhado de organizações tão empenhadas quanto ineficazes, face às campanhas de deslegitimação montadas contra elas. Logo, Israel foi deixada em sua postura isolacionista.

A evidência mais esmagadora da rejeição da paz por Israel é, claro, o projeto das colônias de ocupação da Palestina. Desde o início de sua existência, nunca houve um teste mais seguro ou mais preciso para as verdadeiras intenções de Israel do que esse empreendimento particular. Em linguagem clara: os construtores das colônias desejam consolidar a ocupação, e quem deseja consolidar a ocupação não deseja a paz. Esse é o resumo da ópera.


Considerando que as decisões de Israel são racionais, é impossível aceitar que a construção nos territórios e a aspiração pela paz possam coexistir mutuamente. Cada ato de construção em colônias de ocupação, cada casa móvel e cada varanda transmitem rejeição. Se Israel quisesse alcançar a paz através dos Acordos de Oslo, teria ao menos parado, por iniciativa própria, de construir as colônias. O fato de que isso não aconteceu prova que Oslo foi uma fraude, ou, na melhor das hipóteses, a crônica de um fracasso anunciado. Se Israel desejava construir a paz em Taba, em Camp David, em Sharm el-Sheikh, em Washington ou em Jerusalém, seu primeiro passo teria sido acabar com toda ocupação nos territórios. Incondicionalmente. Sem exigir nada em troca. O fato de Israel não tê-lo feito é a prova de que não quer uma paz justa.

Mas as colônias são apenas um dos indicadores das intenções de Israel. Seu isolamento está entranhado bem mais fundo – em seu DNA, sua corrente sanguínea, suas crenças mais primordiais. Lá, no nível mais profundo, está o conceito de que esta terra está destinada apenas aos judeus. Lá, no nível mais profundo, está entrincheirado o valor de “am sgula” — os escolhidos por Deus.

Na prática, isso se traduz na noção de que, nesta terra, os judeus estão autorizados a fazer o que aos outros é proibido. Esse é o ponto de partida, e não há como chegar a uma paz justa a partir daí. Não há nenhuma maneira de alcançar uma paz justa quando o nome do jogo é desumanização dos palestinos. Não há forma de conseguir alcançar a paz quando sua demonização é martelada na cabeça das pessoas dia após dia. Quem está convencido de que cada palestino é um suspeito e quer “jogar os judeus no mar” nunca vai construir a paz com os palestinos. A maioria dos israelenses estão convencidos de ambas as afirmações.

Na década passada, as duas populações foram separadas uma da outra. O jovem israelense médio nunca se encontrará com seu par palestino, a não ser durante seu serviço militar (e, mesmo assim, apenas se servir nos territórios ocupados). Nem o jovem palestino médio encontrará um israelense da sua idade, a não ser o soldado que o hostiliza no checkpoint, ou invade sua casa no meio da noite, ou o colono que usurpa sua terra ou queima seus bosques.

Em consequência, o único encontro entre os dois povos é entre os ocupantes, que são armados e violentos, e os ocupados, que são desesperados e também se voltam para a violência. Foram-se os tempos em que palestinos trabalhavam em Israel e israelenses iam fazer compras na Palestina. Foi-se o período de relações meio-normais e um-quarto-iguais, que existiram por poucas décadas entre dois povos que dividiam o mesmo pedaço de território. É muito fácil, nesse estado de coisas, incitar e inflamar um contra o outro, espalhar medos e instigar novos ódios sobre os já existentes. Essa é, também, uma receita certa de não-paz.

Foi assim que um novo anseio israelense surgiu: o desejo de separação: “Eles ficam lá e nós ficamos aqui (e lá também)”. Num momento em que a maioria dos palestinos – avaliação que me permito fazer, após décadas de cobertura nos territórios – ainda quer coexistência, mesmo que cada vez menos, a maioria dos israelenses quer não-envolvimento e separação, mas sem pagar o preço. A visão de dois estados ganhou adesão generalizada, mas sem qualquer intenção de implementá-la na prática. A maioria dos israelenses é a favor, mas não agora e talvez nem mesmo aqui. Eles foram treinados a acreditar que não há parceiro para a paz – isto é, um parceiro palestino – mas há um parceiro israelense.

Infelizmente, a verdade é quase o oposto. Os palestinos não-parceiros não têm mais nenhuma chance de provar que são parceiros; os não-parceiros israelenses estão convencidos de que são interlocutores. Começou então um processo em que as condições, obstáculos e dificuldades impostas por Telaviv se amontoaram, mais um marco no isolamento israelense. Primeiro, veio a exigência de acabar com o terrorismo; em seguida, a demanda pela troca da liderança (Yasser Arafat visto como uma pedra no caminho); e depois disso o Hamas tornou-se o obstáculo. Agora é a recusa dos palestinos em reconhecer Israel como um Estado judeu. Israel considera legítimo cada passo que dá – de prisões políticas em massa à construção nos territórios –, enquanto todo movimento palestino é considerado “unilateral”.

O único país sem fronteiras do planeta não quis, até aqui, delimitar sequer as fronteiras que estaria pronto a aceitar num acordo. Israel não internalizou o fato de que, para os palestinos, as fronteiras de 1967 são a mãe de todos os acordos, a linha vermelha da justiça (ou justiça relativa). Para os israelenses, elas são “fronteiras suicidas”. Essa é a razão pela qual a preservação do status quo tornou-se o verdadeiro alvo, o objetivo primordial da política de Israel, quase seu tudo ou nada. O problema é que a situação existente não pode durar para sempre. Historicamente, poucas nações aceitaram viver sob ocupação sem resistência. E também a comunidade internacional estará apta, um dia, a proferir um pronunciamento firme, acompanhado de medidas punitivas, sobre este estado de coisas. Segue-se que o objetivo de Israel é irrealista.

Desconectada da realidade, a maioria dos israelenses mantém seu estilo de vida normal. A seus olhos, o mundo está sempre contra eles, e as áreas de ocupação à sua porta estão fora de sua esfera de interesse. Quem ousa criticar a política de ocupação é rotulado de anti-semita, cada ato de resistência é percebido como uma ameaça existencial. Toda a oposição internacional à ocupação é lida como “deslegitimização” de Israel e como um desafio para a própria existência do país. Os sete bilhões de pessoas do mundo – a maioria das quais contra a ocupação – estão erradas, e seis milhões de judeus israelenses – a maioria dos quais apóia a ocupação – estão certos. Essa é a realidade na visão do israelense médio.

Some a isso a repressão, a ocultação e a dissimulação, e você tem uma outra justificativa para o isolamento. Por que alguém deveria lutar pela paz, desde que a vida em Israel seja boa, a calma prevaleça e a realidade se mantenha oculta? A única maneira de a Faixa de Gaza, sitiada, lembrar as pessoas de sua existência é atirando foguetes, e, atualmente, a Cisjordânia só entra na agenda quando há sangue derramado por lá. Da mesma forma, o ponto de vista da comunidade internacional só é levado em conta quando tenta impor boicotes e sanções, que por sua vez geram imediatamente campanhas de autovitimização cravejadas de contundentes – e, às vezes, também impertinentes – acusações históricas.

Este é, pois, o quadro sombrio. Não contém um raio de esperança. A mudança não vai acontecer por si mesma, a partir do interior da sociedade israelense, caso continue a se comportar como se comporta. Os palestinos cometeram mais do que um erro, mas seus erros são marginais. A justiça de base está do seu lado, e o isolamento de base é o limite dos israelenses. Eles querem ocupação, não paz.

Tenho a esperança de estar errado.

Coach — política neofascista e traumaturgia

O coach é a representação limite da financeirização do capital — a sua máxima abstração e pureza, dominando a produção e a guerra global — no âmbito da cultura. Psicólogo definido pelo incremento da produtividade de seu cliente, o coach teve origem na ruína do mundo do trabalho, das profissões e de suas éticas, no mundo da fragmentação e monadizacão do destino do trabalhador, vendedor de qualquer coisa que ninguém quer comprar.

Ele é o próprio sintoma encarnado da vida das classes médias sob o risco de não serem produtivas, por fim dispensáveis, pela presença da política permanente do desemprego. Neste mundo, o coach cumpre o serviço de exploração da insegurança universal. Ele medeia a violência normal na vida das empresas, promove falsa autoajuda como verdade humana, a única ajuda disponível, para pacificar um sujeito sem valor algum, cultural ou de troca, na cultura de sua máxima exploração, física e psíquica.

Como um dia me disse o CEO de uma gigantesca agência de publicidade, máquina que trabalhava no fundo da própria política do país: “na empresa você pode facilmente ganhar 100 mil por mês, não é difícil… basta você me produzir 300 mil por mês.” Este é o mundo dos valoresdo coach, é nele e por ele, sustentado em indivíduos, que o coach trabalha.

Mundo da pressão total da abstração do dinheiro, sem nenhum caráter ou valor para fora do retorno ao mercado, da tempestade tautológica do sistema da mercadoria se auto-referenciando, para justificar o terrorismo de sua própria vida social. Realidade dura dos vencedores, no limite da maior derrota, onde o coach pontifica.



Ele é um psicólogo clínico degradado na ideia fixa da autoajuda banal, pastor profano do elogio do trabalho e do dinheiro quando eles se tornaram impossíveis, psicanalista que negou o inconsciente e a transferência a favor do apego sugestivo ao próprio eu, confundindo subjetividade com produção de valor e sujeito com submissão ao racket psíquico pessoal.

O coach é o pastor cujo único deus é o sucesso abstrato na cultura dada, o psicólogo empresarial de Recursos Humanos pago particularmente para se suportar o risco da vida do trabalho, de quem ainda quer estar por cima, o psicanalista que vende a própria imagem, e a própria tabuada de razões ideológicas, radicalmente comprometidas com a reprodução da ordem que põe tudo em risco.

Não há dialética nem negatividade na existência do coach e sua “teoria” — instrumentalização do pior do elemento subjetivo presente em uma psicanálise. Há apenas aceitação, celebração tácita, adaptação como estratégia de vida, sob o cálculo e o projeto do truque, do golpe ou do balanço malando em meio ao dinheiro, para garantir a sobrevivência nele. Sobrevivência de vida que parte e se resolve no espetáculo, traduzida diretamente em fetichismo da mercadoria, consumo conspícuo.

Vendendo degradação de qualquer metafísica, desde que adaptada a tudo o que existe, o coach é o apoio limite do homem comum, quando ele não vai ao culto coach de uma igreja evangélica…, o amuleto transferencial mundano do filisteu cultural, normal, que, dispensável em todos os níveis da vida que não tenham a ver com mais valor, necessita de alguém que junte os seus pedaços, o pastor profano. Explodido pela própria sociedade esquizofrênica, que não pode negar, pensar em contradição, o cliente do coach o deseja como a liga de seu retorno ao próprio mundo impossível.

O duplo do coach, coach sem nenhum vínculo com o trabalho, é o promoter da vida permanente no gozo generalizado das imagens em fluxo, mas de kicks e de baques, de excitação vazia, o influencer da internet: o vendedor estridente, vulgar no último, de tudo e qualquer coisa que exista, ou seja, que excite alguém. O propagandista, da propaganda que se voltou sobre si mesma. A cultura do coach é a dasobrevivência para a sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida; a cultura do influencer é a daafirmação imanente da sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida.

O coach líder fascista é o que une o seu estatuto de pastor profano com a malandragem feliz de vampirizar qualquer fetichismo, de qualquer produto, fofoca ou crime nas redes, a arte do influencer. Realiza meta-morfose de si mesmo, virando em exemplo degradado, autocelebrado em fusão com a propaganda de tudo, a ser seguido por massas. O coach líder fascista é o líder político das micro-celebridades, auto geradas aos milhares nas redes. Quanto mais ele aparece, mais poderoso ele é, porque neste mundo basta aparecer para ser poderoso.

Vendedor do sonho de si mesmo, o produto do coach fascista, novo líder no limite da degradação política total — da manutenção do capitalismo de fronteira final, de extermínio de ambiente e natureza, porque os humanos já eram faz tempo… — é a venda da própria imagem, a figura de um rico grotesco brilhando, um sádico do gozo da vida má, deliberadamente estúpido, como modelo para a vida geral degradada. O coach político de internet, influencer e mercadoria a um tempo, vende o vento da sua pura excitação, como todo influencer.

Porém, sua excitação é o puro ar de si mesmo, a constelação ideológica positiva de amor sacrificial pelo mercado, ele próprio como o seu produto. De fato, pessoas compram de Pablo Marçal apenas cursos, golpes farsescos, exatamente para serem como Pablo Marçal; e Olavo de Carvalho sabia bem ser um coach fascista. Como no jogo, como dizia Marx, a ideologia vazia e o personalismo de espetáculo fazem o produto-ele-mesmo do coach funcionar diretamente como D-D’ — dinheiro imagem que faz mais dinheiro… — sem nenhuma mercadoria no meio. O coach funcionando como líder fascista é pura identificação, função de espelho do rosto da mercadoria, formula cultural do capital financeiro.

Antes de entrar na disputa política como alternativa verdadeira, pelo sucesso degradante e pela arrogância de vencedor em mundo de derrotas totais, o coach amealhou milhões de miseráveis do destino e da cultura, da vida e da história, em suas redes sociais na internet, de fato suas redes pessoais. Milhões de compradores do ar do coach, tentando reproduzir o seu brilho e sua riqueza mágica configuram de fato a sua indústria cultural particular.

De fato, milhões de demenciados de mercado, aos quais o novo malandro industrial, que aposentou a navalha, opera por desejo como entretenimento, como fantasia de ganho pela submissão ao seu desejo. Pagando pelo ar do coach, os milhões de idiotas do mundo como ele é confirmam pela raiz o seu poder: fundamentalmente o desejam.

A política do desejo, das coisas, do dinheiro circulante, e de seu show, se confirma absolutamente no desejo do coach. Ele tem seu próprio partido político, sua indústria cultural de propaganda fascista, sua rede de milhões de seguidores o desejando, e desejando ser o coach — que não é nada se não isso mesmo. Tais militantes e ativistas pagam milhões pela indústria cultural da personalidade, para que o coach apareça para eles como milionário, pelo desejo radical que isto exista.

Porque o mundo é isso, produção de riqueza sobre a produção de massas de excluídos, que pagam pelo acesso, quando não exterminados. Dono de um partido de massas da venda de si mesmo como a política do real, das coisas da vida social arruinada, o coach político de massas é a condensação da coisa cultural do neofascismo, esta nova ordem de razões políticas que intriga a tantos.

O coach é o vendedor na rede de uma pirâmide de si mesmo, em que ele é a imagem, o modelo e a mentira de que sua riqueza ridícula estará acessível a todos. Basta todos reconhecerem isso, e seu golpe neoliberal total, de sua excitação vazia de palhaço pop grotesco, chegará ao poder, o seu verdadeiro lugar, como Javier Milei na Argentina e Pablo Marçal tentando o golpe em São Paulo.

Basta ser como o coach, diz o coach, e para isto é preciso que a massa se cale e o assista, e ele enuncie sozinho sua violência antipolítica como política. É preciso ser como ele, por isso é ele quem fala. Por um naco imaginário da riqueza, e para pertencer ao código do dinheiro, palhaços de um circo pegando fogo tendem a entregar tudo ao coach. Como já entregaram quando compravam seus cursos, que não são nada. Por não ter nada a oferecer no âmbito da história, o coach só pode causar, chamar a atenção para si mesmo como um palhaço da indústria cultural que tem nas mãos, que de fato é.

Mentir a mentira que excita, ousadia tática e sádica, que convoca a atenção exatamente porque todos sabem que é mentira. Sua mentira política é apenas uma aposta, em um jogo vazio de verdade, pleno de poder que gera poder. Sua performance, da qual depende, é sua traumaturgia.

Com este choque vazio, se convoca a massa, submetida ao desejo do coach mercadoria. Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach.

Pânico

Não há mais lugar no mundo.
Não há mais lugar.

Aranhas do medo
fiam ciladas no escuro

Nos longes, pesam tormentas.
Rolam soturnos ribombos.

Súbito,
precipita-se nos desfiladeiros
a vida em pânico.
Helena Kolody, "Antologia Poética"

Israel no Líbano: Até quando o mundo assistirá inerte ao terrorismo?

A pergunta parece nos levar ao menos duas décadas atrás, quando muitos dos leitores formaram sua percepção sobre o conceito de terrorismo a partir da reação global comandada pelos EUA, com seus aliados europeus no Conselho de Segurança da ONU, à derrubada dos edifícios gêmeos em Nova York, atribuídas a um grupamento criado, treinado e financiado pelos EUA décadas antes no Oriente Médio.

Naquele momento histórico, desde o futebol ao cinema, das conversas de bar aos desenhos animados, o estereótipo do terrorismo assolando o “mundo civilizado” era o fio condutor da convivência social, tudo refletia essa percepção de um mal a ser combatido como devir existencial, sustentado por imagens de um horror desumano que, por sua vez, comunicava: se trata do chamado à batalha contra inumanos, desprovidos daquilo que definiria a humanidade. Logo, a guerra deve ser total, com todas as forças e sem qualquer oposição.

Ao ligar a televisão, em qualquer canal, em qualquer horário, dos programas de amenidades matutinos aos noticiários, passando pelas fofocas e filmes de sessão da tarde, até os talk-shows noturnos, todos faziam questão de exibir histórias de famílias devastadas, atos heróicos de bombeiros, mobilizações cívicas de voluntários, preparativos bélicos militares. Conhecemos nos detalhes de terceira geração cada vítima, vimos seus amigos, namorados, parentes, filhos, colegas de trabalho, animais de estimação. Cada vítima extremamente humana do terror.


Com tudo isso formamos nosso entendimento de terrorismo. O mal maior, a bestialidade insuportável até entre os brutos. Satíricos complementavam com bazófia a caricatura do terrorista. A mote de dar uma “outra” visão sobre o demônio, criavam personagens com roupas e costumes típicos, vivendo vidas em cavernas e tendas onde confundiam coxinha de galinha com granada, jogavam boliche com bombas com pavio aceso, etc. Não se tratava assim de outra visão, mas da mesma, sob a permissão do ridículo com a dor ocidental. No fundo, um complemento útil e necessário, vejo hoje, à delimitação da figura do terrorista, o agente do terrorismo.

É muito fácil para os canais de televisão, seus jornalistas e grupos de mídia impressa e de internet repetirem hoje que a ação militar da resistência palestina foi um ato terrorista. Estamos há um ano repetindo sem qualquer contraponto que se trata de terrorismo matar centenas de civis num único dia. Contudo, a ação que matou cinco centenas de civis no Líbano recentemente, ou seja, um acontecimento idêntico, dessa vez promovido por Israel, não teve uma única citação em praticamente lugar nenhum com a mesma palavra.

Por que o assassinato de centenas de pessoas num único dia, em acontecimentos sem causalidade entre si, são tratados um como terrorismo inquestionável e outro sequer tem aventado o caráter terrorista?

Diante desse paradoxo, qualquer leitor bem instruído tentará dar um passo atrás e procurar além da semelhança dos fatos uma abstração sobre o conceito de terrorismo. Respeito o exercício e farei agora.

Segundo a ONU, conforme a resolução 48/60 de 1994 da sua Assembleia Geral, terrorismo são “atos criminosos planejados ou calculados para provocar estado de terror no público em geral, num grupo de pessoas ou em particulares por motivos políticos”.

Por essa definição não é necessário sequer haver mortes para ser enquadrado como ato terrorista. Mas os atos citados na definição geralmente são atos homicidas, levando um grupo maior a temer por suas vidas. Assim, as mortes de 7/10/23 e as de 23/9/24 encaixam-se ajustadamente no largo conceito.

A abstração jurídico-política nos deixa, assim, no mesmo lugar. Como atos igualmente terroristas à luz da definição da ONU são tomados de forma tão diferente por quase a unanimidade da mídia, sem que essa tenha qualquer acordo obscuro de manipulação?

A resposta, a meu ver, não é a existência de qualquer sala de comando noticioso entre a AP, Reuters, AFP, EF, etc. Tampouco um órgão secreto em Washington com censores que definem os rótulos e, a partir deles, as notícias. É algo bem mais simples, tangível e à vista de todos.

No acontecido do ano de 2023 não bastou o pronto reconhecimento da diplomacia brasileira do caráter terrorista da ação; foi cobrado em uníssono pela mídia liberal, e pelos que se dizem de esquerda que paradoxalmente se instruem por essa mídia, que Lula definisse também os perpetradores como essencialmente terroristas. Há uma exigência de pronto pela caricatura do terrorista como introjetada socialmente: o esteriótipo do islâmico. Da mesma forma, no ato terrorista recente, o mecanismo cognitivo trabalha no caminho inverso: se não partiu do esteriótipo do terrorista, não foi terrorismo.

Não há um estudioso sério, um profissional de relações internacionais, história, geopolítica ou áreas a fim que não reconheça a prevalência global geoeconômica dos EUA desde o fim da Guerra Fria, bem como sua dominância no chamado Ocidente desde o fim da Segunda Guerra. Falo aqui de consensos entre opositores e defensores.

A partir dessa identidade geopolítica, ou seja, desse fato inquestionável, para alguns positivo e para outros negativo, se extraem duas considerações gêmeas com valoração oposta. Enquanto uns chamarão de “valores ocidentais”, defendendo sua universalização, outros chamarão de hegemonia ou, com maior precisão, imperialismo.

Esta prevalência, o imperialismo, impõe a hegemonia dos chamados valores ocidentais, com o objetivo único de se tornarem universais. É, portanto, a universalização do particular, logo, a subversão da diversidade, tanto quanto das possibilidades de consensos básicos dentro dessa multiplicidade. Uma violência epistemológica a serviço do exercício da força, instrumento do poder no teatro interestatal.

Desta forma, relegando à insignificância as abstrações jurídico-políticas das instituições do pós-Segunda Guerra, prevalecem as caracterizações maniqueístas do hegemon. É terrorista aquele que faz X ou Y se este for adversário do hegemon e daqueles que devem obedecê-lo. Não é terrorista aquele que faz X ou Y se for aliado do hegemon, a mando dele ou ele próprio.

É inclusive bem fácil de entender. Como em qualquer governo despótico, baseado diretamente na força sem intermediação de regras e instituições (o que o ocidente gosta de chamar de ditaduras), o bem e o mal não são essência de nada, apenas rótulos dados pelo príncipe, pelo soberano. Esse é o real funcionamento das chamadas relações internacionais, atrás das camadas de instituições e regras que o hegemon impõe aos vassalos enquanto age acima delas.

Assim como as instituições econômicas de Bretton Woods foram solapadas pelos mesmos EUA que as criaram, as instituições da ONU vem sendo paulatina e cada vez mais acintosamente desidratadas por Washington. Israel é hoje o braço armado racista que melhor evidencia a hipocrisia da diplomacia estadunidense.

Então, até quando o mundo assistirá inerte? Ora, o conselheiro presidencial Celso Amorim respondeu recentemente, num think tank de Nova York, que o Brasil, a China, a Rússia e a maior parte do Sul Global operam com a consciência de que as “relações internacionais baseada em regras” são a expressão do definitivo abandono do “direito internacional”. Se o último emula a figura jurídica do capitalismo intra-estatal no interestatal, o primeiro é o retorno ao puro poder do príncipe, que edita regras a todos e a nenhuma se submete.

Não está distante, portanto, que novos coletivos de países, ou mesmo Estados solitariamente (como fez a Rússia), passem a agir como polícia do mundo, “baseados em regras” e ao arrepio do “direito internacional”, como fizeram EUA e Reino Unido no início do século no Oriente Médio, para combater o terrorismo, o genocídio e outras formas de violência que julguem insuportáveis.