sábado, 20 de novembro de 2021

Não me decifraste, devorei-te!

Desde a mais longínqua antiguidade, sempre fomos instados a nos conhecermos – nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo. Mas essa injunção sempre foi dirigida muito mais a indivíduos que à sociedade como um todo.

No mundo atual, pelo menos do ponto de vista econômico, quem quiser conhecer a “totalidade” de um país tem a seu dispor uma quantidade astronômica de informações nos sites do IBGE e do Banco Central, e em entidades internacionais como o Banco Mundial e o FMI. Porém, se pela expressão “totalidade” quisermos designar uma sociedade consciente de si e, em tese, capaz de agir de forma coordenada, precisamos ir além da economia e indagar o que são as elites, nos seus diferentes segmentos. Nesse sentido mais amplo, no Brasil, a responsabilidade de conhecer o todo e suas elites, e de avaliar o quanto estas sabem de si mesmas, cabe basicamente à área de ciências humanas das universidades, cuja qualidade nem sempre corresponde à relevância de tal obrigação.


Abro, aqui, um parêntese para frisar que estou empregando o termo elite no sentido sociológico, sem qualquer conotação com aristocracias com posições fixas na escala social e até mesmo por laços de consanguinidade, como era o caso na Europa durante o século 19. No Brasil atual, o termo elite designa apenas o pequeno número de indivíduos que ocupa os ápices (alta administração, empresariado, etc.) das diversas pirâmides de que é formada a sociedade.

O ponto ressaltado de forma abstrata no parágrafo anterior adquire uma importante relevância prática quando a inconsciência de tais elites diz respeito à aproximação de ameaças gravíssimas, capazes de comprometer o futuro do País por um dilatado período histórico. Peço licença para me referir mais uma vez a um ponto que tenho aqui martelado insistentemente. O Brasil é um exemplo perfeito de país aprisionado no que se tem denominado “armadilha do baixo crescimento”, vale dizer, um país que precisará de muitos anos para duplicar sua renda anual média por habitante, que em nosso caso já é atrozmente medíocre. Se nossa renda atual crescer 3% ao ano – projeção por enquanto delirante –, só conseguiremos duplicá-la num período de quase 25 anos – uma geração inteira. Essa concisa indicação deve ser suficiente para o leitor se dar conta de que estamos num beco quase sem saída, uma vez que o marco institucional de nossa democracia (os Três Poderes) é de uma patética debilidade e não tem, abaixo dele, um universo de elites que o ancore, balize e inspire.

Em 1989, quando vivíamos a intensa expectativa da primeira eleição presidencial direta “após 29 anos”, Amaury de Souza e eu fizemos uma pesquisa com 500 membros da elite, em seus diferentes segmentos. Exploramos extensamente a questão da inflação, à época dominante, dos restos do patrimonialismo, cuja liquidação os entrevistados só podiam conceber por meio de reformas liberais enérgicas, e, em particular, a “dos riscos a que o Brasil estaria exposto se não conseguisse reduzir substancialmente as desigualdades regionais e de renda no prazo de dez anos”. Relembro, aqui, alguns dos resultados da pergunta, levando em conta somente os entrevistados que escolheram a alternativa “muita chance ou quase certeza”: 63% responderam

“um estado crônico de convulsão social” e outros 63% mencionaram a “inviabilização de uma economia de mercado”. É certo que somente 7% – e posso imaginar o alívio dos militares ao constatar quão diminuto era então esse número – preocupavam-se com a “quebra da unidade territorial do País”.

Em 1994, apenas cinco anos após nosso estudo, a Harvard Business School publicou um estudo de notável audácia e grande sucesso, coordenado por Hamish Mcrae, intitulado The World in 2020 – Power, Culture and Prosperity.

A tentativa de antever como seria o mundo 26 anos mais tarde deu ensejo a alguns erros egrégios – inclusive sobre a China, cujo avanço os autores claramente subestimaram – e a alguns acertos dignos de nota. Sobre o Brasil e a Argentina, as 300 páginas do livro fizeram uma única referência, o suficiente para acertarem na mosca. Afirmaram que nós e nuestros vecinos poderíamos usufruir um período de considerável prosperidade, desde que – atenção! – mantivéssemos um nível razoável de estabilidade política, com uma administração pública competente e imune à corrupção. O Brasil, com recursos maiores que os da Argentina, poderia exercer um impacto extraordinário no continente, se, a exemplo da Argentina, conseguisse sustentar uma década de estabilidade, seriedade na máquina pública e corrupção sob controle.

Observem que os autores delinearam um futuro que de fato não se materializou, nem na Argentina nem no Brasil, nos 26 anos decorridos desde a publicação do livro, período por coincidência praticamente igual ao que estimei como necessário para superarmos a nossa “armadilha do baixo crescimento”. Ou seja, é bem possível que mais uma geração viverá patinando no mesmo lugar, ou num lugar bem pior, com mais violência e araçatubas.

O Almirante Negro e os Heróis Nacionais

Não me atrai a consagração de heróis ou heroínas da pátria. O herói de hoje pode ser o vilão de amanhã, haja vista as recentes imagens de monumentos derrubados por manifestantes, revoltados com o brutal assassinato de George Floyd, por um policial branco. Também temo discursos patrióticos emocionados, que procuram um inimigo a ser combatido pelos "filhos" da pátria. A história está repleta de patriotas genocidas e eles ainda estão por aí.

Mas se existe um Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, um campo de disputas deve ser aberto para grupos sociais diversos reivindicarem seus nomes preferidos. Difícil será a unanimidade entre todos, todas e todes.

Mas quem merece o título? E por quê? Posições político-ideológicas, racistas, etnocêntricas, sexistas, religiosas e nacionalistas aparecem nesses momentos em discursos geralmente conflitantes. Daí a importância da democracia na contenção de injustiças.


Em 28 de outubro último, um desses conflitos ocupou o debate que aprovou o PLS n.º 340/2018, na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. O líder da Revolta da Chibata, João Cândido Felisberto, foi indicado para o Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.

Era filho de um ex-escravo e uma escrava, nascido de ventre livre em 1880. Trabalhou na fazenda onde nasceu, perambulou e chegou à Escola de Aprendizes Marinheiros. Formou-se em 1895, logo após oficiais da Marinha comandarem a Revolta da Armada, que destruiu vários prédios e navios da fazenda nacional.

Embora elogiado por superiores, juntou-se a outros marinheiros incomodados com a falta de um projeto coerente e moderno para a Marinha. Faltava educar colegas indisciplinados, aumentar o soldo, punir oficiais violentos e extinguir os castigos corporais, sobretudo a chibata. Daí por diante oficiais passaram a odiá-lo e a persegui-lo até sua morte.

Oficiais se posicionaram contra qualquer lembrança do Almirante Negro, nem sempre de forma "civilizada". Em 1934, o jornalista Aparício Torelly afirmou ter sido sequestrado por "oficiais da Marinha", espancado e largado em lugar remoto. A razão foi publicar matérias enaltecendo a revolta no seu jornal. Caso fossem identificados, aqueles oficiais hoje entrariam na lista dos "Predadores da Liberdade de Imprensa" da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras. O almirante Oliveira Bello, anos depois, referiu-se a João Cândido como "criatura imperfeita, por complexos originais [...] individualidade destituída de propriedade e fibras para reagir, lutar e vencer". Perda de tempo, citar outras ações e falas como essas. O certo é que esses oficiais procuravam apagar João Cândido e a Revolta da Chibata da História.

Em 2008, o marinheiro e seus colegas foram anistiados, e um monumento a João Cândido pôde ser instalado em frente a uma base da Marinha no centro histórico do Rio de Janeiro. Mais treze anos se passaram, e o Senado aprovou o PLS n.º 340 de 2018. A Marinha enviou uma nota aos senadores reprovando o Projeto. Argumentou que os marinheiros não haviam esgotado "outras formas de persuasão e convencimento", além de quebrarem a hierarquia e a disciplina militares. Daí, a Marinha não reconhecer "o heroísmo das ações daquele movimento e o [considerar] uma rebelião".

Instituições militares impedem diálogos francos e abertos entre indivíduos de patentes diferentes. Os limites são definidos em regulamentos militares, que ordenam quem inicia e encerra a conversa. Ultrapassar o superior hierárquico pode ser punido por insubordinação.

Havia 22 anos da abolição, em 1910. Muitos oficiais nasceram em casas-grandes ou sobrados com serviçais negros e negras. A formação familiar, os valores e costumes expostos e acionados cotidianamente, e a identidade na cor da pele punham negros e brancos em condições sociais e políticas desiguais.

A cidadania republicana não visou incluir negros e negras no pós-abolição. O recente retrocesso na política de demarcação de territórios quilombolas demonstra que a república não é a mesma para todas as cores.

A cidadania republicana foi racializada para evitar que egressos do cativeiro gozassem dos mesmos espaços de poder que a elite branca e poderosa da época. Impediu marinheiros de votarem, enquanto oficiais militares tornaram-se deputados federais e até presidentes, através do voto ou da bala.

Se havia uma cidadania racializada entre os civis, perseguindo negros com teorias eugênicas, algo ainda mais grave existia na Marinha, na qual milhares de negros ocupavam as patentes mais baixas, não podendo ser oficiais e sendo "corrigidos" por castigos corporais. Um dos revoltosos de 1910 chegou a afirmar que a Marinha parecia uma fazenda de escravos.

João Cândido venceu seus oponentes brancos, tornou-se um Mestre Sala dos Mares nas engenhosas estrofes de João Bosco e Aldir Blanc e tem seu nome cada vez mais lembrado. Vários meninos negros terão mais um herói negro ao lado de Zumbi dos Palmares, caso o projeto de lei seja aprovado na Câmara dos Deputados. Estamos de olho.

O poder e a troça

H
á vários casos de reis que ficaram bobos, mas não há notícia de uma só corte onde o bobo chegasse a rei. É a sua inaptidão para o poder que garante a impunidade do bobo. Quanto mais forte o rei, mais irreverente o bobo. E há uma sutil cumplicidade entre o poder e a troça. Sempre desconfiei das razões de César para ter a seu lado o infeliz cujo único encargo na vida era cochichar ao ouvido do imperador, nos seus momentos de glória, “Não esqueças, és mortal”. Formidável é o reverso do arranjo. Nas suas piores depressões, César tinha este consolo insuperável: pior do que aquele imbecil ao pé de seu ouvido ele nunca seria.

Quanto mais forte o poder, mais impune o bobo. Num sistema que não teme o ridículo o bobo é o homem mais livre e mais inconsequente da corte. Seu único risco ocupacional é o rei não entender a piada. A consciência do império, como o tal que frequentava a orelha de César, é um bobo que subiu na vida. Com pouco mais tempo de serviço chegará a filósofo, um pouquinho mais e se aposenta como oráculo. Cada vez mais longe do poder, portanto. Não foram os sábios epigramas de Hamlet que derrubaram o rei. Que eu me lembre, foi um florete com a ponta envenenada. O que não é piada.

A troça só preocupa o poder bastardo, que tem dúvidas sobre a própria legitimidade. O estado totalitário é uma paródia da monarquia absoluta, e quem denunciar a farsa, denuncia tudo. Nesse caso toda piada tem a ponta envenenada, todo bobo é uma ameaça. O alvo principal da irreverência nunca é o poder, é a reverência em si. Um poder secular que exige respeito religioso está exposto ao ridículo por todos os lados. O rei não está apenas nu, não é nem rei. Não é certo dizer que nenhuma ditadura tem senso de humor. Pelo contrário, têm um senso agudo do ridículo. Entendem todas as piadas. Mil vezes a respeitosa atenção de uma junta de coronéis modernos do que a distraída condescendência das antigas cortes, é o que qualquer bobo lhe dirá, minutos antes de ser fuzilado.

Luis Fernando Verissimo

Quanto custa a pobreza?

A sombria indiferença social de muitos patronos e defensores deste modelo econômico, que arrasta o país para a incerteza e o abismo, justifica as perguntas que se lhes deve fazer. E, também, fazê-las aos cúmplices que, de vários modos, políticos e não políticos, lhes garantem a inacreditável sobrevida. Indiferença que indica a nenhuma preocupação com as vítimas deste subcapitalismo. Vítimas que são potenciais atores de um desenvolvimento econômico e social apenas possível. Aqui a indiferença terá custos históricos muito altos.

Quanto custa um faminto à economia, à sociedade e ao Estado? Não estou falando da ajuda financeira tópica que sequer sacia sua fome. Mas dos desdobramentos da fome e da pobreza nos diferentes âmbitos da realidade por ela afetados.

Quanto custa um desempregado? Um subempregado? Uma pessoa em situação de rua, um desesperançado? Um ser humano indevidamente doente porque não teve os meios para alimentar-se corretamente e evitar doenças e deficiências evitáveis que têm preço a curto e a longo prazo? Quanto custa à economia e à sociedade um doente cuja doença por muito menos poderia ter sido prevenida? Quanto custa à economia e à sociedade o barateamento dos custos do que não pode nem deve ser barato? Por que não poupar no que é desnecessariamente caro para aplicar na vida que é cara mas necessária?


Nesta sociedade tudo tem preço, mesmo o ar expirado dos sem-máscara que pode matar outros. Todos pagamos por esse crime, o da ignorância prepotente. Quanto custa ao país a irresponsabilidade dos que violam as medidas de segurança de todos e, ignorantes, proclamam o que não sabem, a ciência que não conhecem, a medicina que subestimam? Quanto custa ao país e a todos a “medicina” do palpite tolo? Quanto custa à sociedade e à própria economia a vida daqueles em cuja formação a sociedade investiu muito, da amamentação à educação, e que sucumbem quando poderiam ter sobrevivido para devolver ao país o que custaram? Quanto custa ao sistema econômico um morto inadimplente?

Quanto custa a agonia dos que padecem as insuficiências sociais do Estado irresponsável? Quanto custa à sociedade, às famílias e até ao Estado a morte dos que morrem antes do tempo? Quanto custa à condição humana a politicagem matadora? Quanto de subdesenvolvimento econômico é devido aos excessos e desperdícios da política do poder pelo poder, do lucro pelo lucro?

Quanto custam os problemas sociais da subvida na pseudo-habitação que se espalha pelas grandes cidades? Quanto de futuro do país e da sociedade inteira custa o modo de vida de milhões de pessoas que vivem à margem dos padrões normais e civilizados porque carecem dos meios para viver como os demais?

Quanto custa viver sem esperança na ausência de meios para tê-la? Pois é preciso ter ao menos a certeza de um dia de amanhã para ter esperança. No Brasil, não há, para milhões de pessoas, nem mesmo a certeza do dia de hoje. Amanhecer sem o café fumegando na caneca de lata. Sem o pão bíblico da primeira refeição, mesmo que seja o pão duro catado no lixo, o pão que restou do excesso de boca dos que têm mais do nela cabe.

Quanto custa ao país o Estado omisso e perdulário, em relação a essas questões? Quanto custa a todos nós a mamata dos que dispõem mais do que o necessário para legislar e governar?

Somos o oposto de países cuja economia se organiza com base nos pressupostos civilizados de que a vida e o bem-estar são capitais sociais, são lucro quando não são utilizadas para dar prejuízo lucrativo.

Porque todo desvalimento dessa humanidade tem um preço. Não só pelo prejuízo que ela involuntariamente dá, nos custos que de sua situação injusta e anômala decorrem. Mas pela riqueza que não cria, pelos bens que não compra nem consome, pelo ganho que não gera, porque sem emprego produtivo, sem trabalho.

Quanto custa o subcapitalismo brasileiro ao capitalismo que pode ser e não é? Quanto custam às empresas os empresários que não o são porque orientados por ideologias subcapitalistas lucrativas agora e causadoras de prejuízos definitivos amanhã, do agora sem o depois, do lucro sem compromisso social com o próprio futuro e o futuro da imensa maioria? Quanto?

Quanto custará ao Brasil sem futuro o olhar dos olhos arregalados de espanto e incerteza de crianças acomodadas pelas mães desvalidas sobre restos de jornais nos degraus da catedral de São Paulo em noite de garoa e frio? Dos quais não corre nem mesmo a lágrima invisível do choro para dentro da alma, de crianças que já não sabem como é que se chora? Que desse modo se descobrem personagens de pátria nenhuma, de sonho nenhum, os ninguéns do Brasil de hoje e de amanhã? São filhas do Brasil deitado em berço esplêndido.