quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
O destruidor
Mais palavras vem gastando os homens para acabar com o mundo do que Deus precisou para construí-lo
Mário da Silva Brito, "Cartola de mágico"
Morrer pelo Brasil — até certo ponto
Pelo que se leu e se ouviu das mensagens trocada pelos golpistas de Bolsonaro, reveladas há pouco pela Polícia Federal, uma coisa pareceu clara: aqueles generais podiam ser tudo, menos cínicos. Acreditavam de verdade que as eleições tinham sido fraudadas e que, se o comunista Lula subisse a rampa, a liberdade iria para o beleléu. O grau de desespero em suas falas indicava uma urgência, uma premência, uma emergência de, literalmente, dar a vida para salvar o Brasil. Pois era a vida que eles estavam botando em jogo ao calcular, entre as probabilidades do desfecho, a possibilidade de o golpe fracassar —e, mesmo assim, valeria a pena.
Você se lembra: "Tá na cara que houve fraude, porra. Não dá mais pra gente aguentar essa porra. Tá foda! Tá foda! Eu sou capaz de morrer, cara, pelo meu país, sabia? Pelo meu presidente. Eu não consigo vislumbrar, né, meus sobrinhos, né, os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, vivendo sob o julgo [sic] desse vagabundo [Lula]. Aprendi na caserna a honrar o meu presidente [Bolsonaro]. E eu tô pronto a morrer por isso".
Mas algo aconteceu porque, desde a divulgação dessas bravatas, as ditas urgência, premência e emergência parecem ter desaparecido das preocupações dos salvadores do Brasil. O discurso hidrófobo e o esperneio histérico tornaram-se, de repente, o obsequioso silêncio diante da Justiça, só quebrado pelas negativas de que planejavam um golpe e que, por ele, seriam capazes de tudo.
Terá sido isto que aprenderam na caserna, a recolher o rabo quando ele é posto de fora? E o país pelo qual dariam a vida? Não é digno de uma confissão aberta, corajosa, de quem jurou manter a pátria livre ou morrer pelo Brasil? Ou descobriram que, se apertado, o presidente pelo qual estavam também prontos a morrer os deixará pendurados na brocha, como já fez com tantos?
Talvez por isso tenham mudado de estratégia. Para salvar a pele, um certo cinismo, como negar tudo o que foi dito por escrito e falado nos mais insuspeitos celulares, é até aceitável, não? Acontece nos melhores quartéis: a coragem dentro da farda esvai-se numa fralda.
Ruy Castro
Você se lembra: "Tá na cara que houve fraude, porra. Não dá mais pra gente aguentar essa porra. Tá foda! Tá foda! Eu sou capaz de morrer, cara, pelo meu país, sabia? Pelo meu presidente. Eu não consigo vislumbrar, né, meus sobrinhos, né, os filhos pequenos dos meus amigos, das minhas amigas, vivendo sob o julgo [sic] desse vagabundo [Lula]. Aprendi na caserna a honrar o meu presidente [Bolsonaro]. E eu tô pronto a morrer por isso".
Mas algo aconteceu porque, desde a divulgação dessas bravatas, as ditas urgência, premência e emergência parecem ter desaparecido das preocupações dos salvadores do Brasil. O discurso hidrófobo e o esperneio histérico tornaram-se, de repente, o obsequioso silêncio diante da Justiça, só quebrado pelas negativas de que planejavam um golpe e que, por ele, seriam capazes de tudo.
Terá sido isto que aprenderam na caserna, a recolher o rabo quando ele é posto de fora? E o país pelo qual dariam a vida? Não é digno de uma confissão aberta, corajosa, de quem jurou manter a pátria livre ou morrer pelo Brasil? Ou descobriram que, se apertado, o presidente pelo qual estavam também prontos a morrer os deixará pendurados na brocha, como já fez com tantos?
Talvez por isso tenham mudado de estratégia. Para salvar a pele, um certo cinismo, como negar tudo o que foi dito por escrito e falado nos mais insuspeitos celulares, é até aceitável, não? Acontece nos melhores quartéis: a coragem dentro da farda esvai-se numa fralda.
Ruy Castro
O peru de Natal
A coletânea organizada por Flávio Moreira da Costa, Os 100 melhores contos de humor da literatura universal, traz um escrito memorável do romano de origem judaica Alberto Moravia (1907-1990), “O Peru de Natal”. Nele, a tradicional ave em lugar de ir “para a panela” transfigura-se no pretendente a genro na ceia, encarnando as características de um homem medíocre e ladino. Com “seus relatos de festas, divertimentos, viagens, sucessos mundanos” se refestelam, então, mãe e filha. A sua desenvoltura entre as classes abastadas envaidece, a primeira, e fascina a segunda.
Curcio, personagem central da narrativa, é o cético candidato a sogro. Desabafa, quando o peru se retira. “Estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que escondem sob a arrogância um monte de trapaças”. Curcio, que batalhou duro a vida inteira, “não se sentia inferior a nenhum peru do mundo”. Aquele, porém, de peito estufado e ar senhorial logo se instala na casa.
“Belo genro”, resmunga o velho. “Aceito um homem trabalhador, simples, mas um peru”. O tempo passa, o pedido de casamento não vem apesar de os noivos usufruírem intimidades. O peru propõe que a jovem fuja com ele, para longe. Cansada de procrastinações e de mentiras, a sonsa consente.
Não há o que fazer, ela é adulta, diz a polícia. E o segredo vem à tona: o impostor é casado, tem filhos. Exige compensação para devolver a filha desonrada; um golpista. Curcio jura que não será mais enganado “pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de um peru, fosse aristocrático ou plebeu”. Assim, supõe-se, a ave volta à panela para cumprir sua função na celebração de Cristo.
O conto de Alberto Moravia serve de metáfora para as relações estabelecidas entre o presidente da República, no alegórico papel de Curcio; o ministro da Fazenda, no da mãe; o ministro do Supremo, no da filha; e o mandachuva da Câmara Federal, no do peru. O cenário remete às armadilhas para desvirtuar um pacto de republicanização nos gabinetes de Brasília, em face das “emendas secretas”. Vide a ilustrativa e instrutiva reportagem sobre Arthur Lira, em “O homem que diz ‘dou’ não dá” (Piauí, 05/12/2024). Por ora, o patrono de um semipresidencialismo de ocasião mostra astúcia.
A história começa quando Flávio Dino suspende as estapafúrdias e impositivas emendas por Pix. Bilhões de reais eram distribuídos sem que se adivinhe quem os havia solicitado e para quê. A direita dinheirista – um pleonasmo – faz da política um negócio de corar frade de vitral. Na opinião do jornalista Breno Pires: “Arthur Lira acusa o Supremo Tribunal Federal de não cumprir o acordo para a liberação das emendas parlamentares. Mas o que acontece é o contrário”. Não surpreende.
O que está sub judice é o clientelismo político e currais eleitorais que funcionam qual uma âncora para as desigualdades. Ninguém explica por que, nos últimos três anos, 26 emendas no montante de R$ 90 milhões desembarcaram numa empresa de jogos eletrônicos, em Goiás. Essa é a ponta do iceberg de falcatruas e maracutaias dos desgovernos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que deixaram um rastro de sabotagens contra o trabalho, o patrimônio estatal e os valores do Estado de direito democrático. “Jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público, em tão poucos anos”, denuncia com coragem e zelo o ex-governador do Maranhão e atual ministro do STF.
Em 20 de agosto, uma nota conjunta entre os poderes é assinada. Prega que emendas de comissões temáticas do Congresso seriam “destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos por um acordo entre Legislativo e Executivo”. As emendas estaduais seriam “destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição de bancada, vedada a individualização”. Aprova-se a Lei Complementar 210, com as novas regras. O Brasil está vivo.
Flávio Dino libera o pagamento com algumas condições para garantir maior lisura, na execução dos recursos do Erário. Contudo, A lei sancionada transfere prerrogativas de comissões às lideranças dos partidos que, pela natureza do cargo, estão próximas ao presidente da “Casa do Povo” e não prevê a identificação do deputado e do senador que pedem repasse ao líder partidário. As nuvens pairam sobre o acordado, em letra miúda. A indecência saiu por uma porta, e retornou por outra.
O mandachuva simulou a concertação frente evidências de fraude; descumpriu o acordão; e agora trama uma vingança. Em retaliação, ameaça o pacote fiscal de Fernando Haddad que, por seu turno, bloqueia a valorização do salário mínimo e cria barreiras à concessão dos Benefícios de Prestação Continuada, que beneficiam os setores sociais mais vulneráveis. As medidas atendem às exigências descabidas das finanças, em contradição com o projeto de um país mais justo e igualitário. Indica uma capitulação ao capital financeiro. A frase de Otto von Bismarck (“Salsichas e leis, melhor o povo não saber como são feitas”) não se coaduna com a transparência desfraldada por progressistas.
A imprensa neoliberal admite: “Ao ser um atalho para as reeleições, a farra das emendas produziu uma droga política altamente aditiva. Seu usuário precisa cada vez mais de recursos, sua abstinência pode lhe custar a carreira. Por isso, o empenho desesperado de Câmara e Senado em manter o fluxo constante e crescente da droga eleitoral”, diz um prócer do Fórum Mundial de Editores (!?) Marcelo Rech (Zero Hora, 6 e 7/12/2024). Mas a crítica alça um desajeitado voo de galinha; rente ao chão.
O governo é chantageado com cinismo aos olhos da mídia corporativa, que não transforma o fato em um escândalo político-midiático. Assaltantes são tratados de doentes irresponsáveis pelos atos. Os meios de comunicação tentam salvar a suja reputação com platitudes. Não fiscalizam adeptos do dogma neoliberal. Sem a tampa do boeiro, criaturas do subterrâneo se põem acima da Constituição. A governabilidade balança no Parlamento, cuja maioria se conduz com despudor ao se debruçar nos cofres da nação; já raspados pelo rentismo em R$ 869,3 bilhões, sendo R$ 111,6 bilhões livres de impostos só no mês de outubro do corrente. Um pequeno corte de 1% na taxa de juros do Banco Central economizaria R$ 55,2 bilhões nos gastos públicos. Isso, a Rede Globo oculta dos crédulos.
Arthur Lira et caterva representam uma barreira fisiológica à democracia, por reproduzir a lógica do “homem cordial” que prioriza e privilegia o círculo familiar e de amizades, recusando submeter-se ao consenso pactuado para legislar e governar os comuns. O patrimonialismo orienta ainda a mentalidade das elites, de rapina. Daí a oportuna sugestão do poeta: “Verifica a conta: / És tu que a pagas. / Põe o dedo em cada parcela. / Pergunta: Como aparece isto aqui? / Tens de tomar a chefia”.
Outrossim, a Advocacia-Geral da União argumenta que a lei alinhavada é o suficiente, pautada no realismo maquiaveliano da “verdade efetiva das coisas” (la verità effetualle della cosa). Isto é, na “análise concreta da realidade concreta”, dada a correlação de forças. O preço da negociação é o custo menor, de parte a parte. Os medalhões sabem o poder que têm; o governo necessita de votos para aprovar as políticas sociais. O Executivo e o Legislativo buscam um compromisso recíproco. Se o Judiciário rejeita o pedido da AGU, dispõe de mais autonomia para resolver a conflitualidade.
A militância de esquerda sabe que avança entre as pedras do atraso, para socialização de uma nova concepção de sociedade. Sabe que a disputa política não é um filme épico com o desenlace em uma explosão; na democracia, é uma série de streamings com várias temporadas e final num suspiro de alívio. Sabe que a conjuntura requer a acumulação de energias e a organização do bloco histórico-político. Mas sabe também que é preciso empatia com o sofrimento da população. Os combates à crise social e ambiental junto do fortalecimento dos Brics revigoram os movimentos por mudanças. Que o sonho brasileiro não tenha sobressaltos e, o abutre, não substitua o peru tradicional de Natal.
Curcio, personagem central da narrativa, é o cético candidato a sogro. Desabafa, quando o peru se retira. “Estava na hora de parar com esses elegantões sofisticados e esnobes que escondem sob a arrogância um monte de trapaças”. Curcio, que batalhou duro a vida inteira, “não se sentia inferior a nenhum peru do mundo”. Aquele, porém, de peito estufado e ar senhorial logo se instala na casa.
“Belo genro”, resmunga o velho. “Aceito um homem trabalhador, simples, mas um peru”. O tempo passa, o pedido de casamento não vem apesar de os noivos usufruírem intimidades. O peru propõe que a jovem fuja com ele, para longe. Cansada de procrastinações e de mentiras, a sonsa consente.
Não há o que fazer, ela é adulta, diz a polícia. E o segredo vem à tona: o impostor é casado, tem filhos. Exige compensação para devolver a filha desonrada; um golpista. Curcio jura que não será mais enganado “pelas falsas aparências e pelas palavras vazias de um peru, fosse aristocrático ou plebeu”. Assim, supõe-se, a ave volta à panela para cumprir sua função na celebração de Cristo.
O conto de Alberto Moravia serve de metáfora para as relações estabelecidas entre o presidente da República, no alegórico papel de Curcio; o ministro da Fazenda, no da mãe; o ministro do Supremo, no da filha; e o mandachuva da Câmara Federal, no do peru. O cenário remete às armadilhas para desvirtuar um pacto de republicanização nos gabinetes de Brasília, em face das “emendas secretas”. Vide a ilustrativa e instrutiva reportagem sobre Arthur Lira, em “O homem que diz ‘dou’ não dá” (Piauí, 05/12/2024). Por ora, o patrono de um semipresidencialismo de ocasião mostra astúcia.
A história começa quando Flávio Dino suspende as estapafúrdias e impositivas emendas por Pix. Bilhões de reais eram distribuídos sem que se adivinhe quem os havia solicitado e para quê. A direita dinheirista – um pleonasmo – faz da política um negócio de corar frade de vitral. Na opinião do jornalista Breno Pires: “Arthur Lira acusa o Supremo Tribunal Federal de não cumprir o acordo para a liberação das emendas parlamentares. Mas o que acontece é o contrário”. Não surpreende.
O que está sub judice é o clientelismo político e currais eleitorais que funcionam qual uma âncora para as desigualdades. Ninguém explica por que, nos últimos três anos, 26 emendas no montante de R$ 90 milhões desembarcaram numa empresa de jogos eletrônicos, em Goiás. Essa é a ponta do iceberg de falcatruas e maracutaias dos desgovernos Michel Temer e Jair Bolsonaro, que deixaram um rastro de sabotagens contra o trabalho, o patrimônio estatal e os valores do Estado de direito democrático. “Jamais houve tamanho desarranjo institucional com tanto dinheiro público, em tão poucos anos”, denuncia com coragem e zelo o ex-governador do Maranhão e atual ministro do STF.
Em 20 de agosto, uma nota conjunta entre os poderes é assinada. Prega que emendas de comissões temáticas do Congresso seriam “destinadas a projetos de interesse nacional ou regional, definidos por um acordo entre Legislativo e Executivo”. As emendas estaduais seriam “destinadas a projetos estruturantes em cada estado e no Distrito Federal, de acordo com a definição de bancada, vedada a individualização”. Aprova-se a Lei Complementar 210, com as novas regras. O Brasil está vivo.
Flávio Dino libera o pagamento com algumas condições para garantir maior lisura, na execução dos recursos do Erário. Contudo, A lei sancionada transfere prerrogativas de comissões às lideranças dos partidos que, pela natureza do cargo, estão próximas ao presidente da “Casa do Povo” e não prevê a identificação do deputado e do senador que pedem repasse ao líder partidário. As nuvens pairam sobre o acordado, em letra miúda. A indecência saiu por uma porta, e retornou por outra.
O mandachuva simulou a concertação frente evidências de fraude; descumpriu o acordão; e agora trama uma vingança. Em retaliação, ameaça o pacote fiscal de Fernando Haddad que, por seu turno, bloqueia a valorização do salário mínimo e cria barreiras à concessão dos Benefícios de Prestação Continuada, que beneficiam os setores sociais mais vulneráveis. As medidas atendem às exigências descabidas das finanças, em contradição com o projeto de um país mais justo e igualitário. Indica uma capitulação ao capital financeiro. A frase de Otto von Bismarck (“Salsichas e leis, melhor o povo não saber como são feitas”) não se coaduna com a transparência desfraldada por progressistas.
A imprensa neoliberal admite: “Ao ser um atalho para as reeleições, a farra das emendas produziu uma droga política altamente aditiva. Seu usuário precisa cada vez mais de recursos, sua abstinência pode lhe custar a carreira. Por isso, o empenho desesperado de Câmara e Senado em manter o fluxo constante e crescente da droga eleitoral”, diz um prócer do Fórum Mundial de Editores (!?) Marcelo Rech (Zero Hora, 6 e 7/12/2024). Mas a crítica alça um desajeitado voo de galinha; rente ao chão.
O governo é chantageado com cinismo aos olhos da mídia corporativa, que não transforma o fato em um escândalo político-midiático. Assaltantes são tratados de doentes irresponsáveis pelos atos. Os meios de comunicação tentam salvar a suja reputação com platitudes. Não fiscalizam adeptos do dogma neoliberal. Sem a tampa do boeiro, criaturas do subterrâneo se põem acima da Constituição. A governabilidade balança no Parlamento, cuja maioria se conduz com despudor ao se debruçar nos cofres da nação; já raspados pelo rentismo em R$ 869,3 bilhões, sendo R$ 111,6 bilhões livres de impostos só no mês de outubro do corrente. Um pequeno corte de 1% na taxa de juros do Banco Central economizaria R$ 55,2 bilhões nos gastos públicos. Isso, a Rede Globo oculta dos crédulos.
Arthur Lira et caterva representam uma barreira fisiológica à democracia, por reproduzir a lógica do “homem cordial” que prioriza e privilegia o círculo familiar e de amizades, recusando submeter-se ao consenso pactuado para legislar e governar os comuns. O patrimonialismo orienta ainda a mentalidade das elites, de rapina. Daí a oportuna sugestão do poeta: “Verifica a conta: / És tu que a pagas. / Põe o dedo em cada parcela. / Pergunta: Como aparece isto aqui? / Tens de tomar a chefia”.
Outrossim, a Advocacia-Geral da União argumenta que a lei alinhavada é o suficiente, pautada no realismo maquiaveliano da “verdade efetiva das coisas” (la verità effetualle della cosa). Isto é, na “análise concreta da realidade concreta”, dada a correlação de forças. O preço da negociação é o custo menor, de parte a parte. Os medalhões sabem o poder que têm; o governo necessita de votos para aprovar as políticas sociais. O Executivo e o Legislativo buscam um compromisso recíproco. Se o Judiciário rejeita o pedido da AGU, dispõe de mais autonomia para resolver a conflitualidade.
A militância de esquerda sabe que avança entre as pedras do atraso, para socialização de uma nova concepção de sociedade. Sabe que a disputa política não é um filme épico com o desenlace em uma explosão; na democracia, é uma série de streamings com várias temporadas e final num suspiro de alívio. Sabe que a conjuntura requer a acumulação de energias e a organização do bloco histórico-político. Mas sabe também que é preciso empatia com o sofrimento da população. Os combates à crise social e ambiental junto do fortalecimento dos Brics revigoram os movimentos por mudanças. Que o sonho brasileiro não tenha sobressaltos e, o abutre, não substitua o peru tradicional de Natal.
A divinização do utilitário
O grande conflito de hoje, no domínio socioeconómico, por exemplo, e contra a previsão de um Marx, não é o que opõe o Capital e o Trabalho, mas o que comanda a máquina e o que a serve (François Perroux). Mas o efeito mais visível, porque mais extenso, da sua compacta presença, é o que degrada os sonhos ao tangível e utilitário que define a vituperada «sociedade de consumo». Não é assim o útil ou utilitário que se condena: é a sua divinização. O que surpreende no mundo de hoje não é a sedução da comodidade, mas que ela esgote todas as seduções; não é o sonho de «viver bem», mas que só se viva bem com esse sonho. Decerto o viver bem foi sempre um sonho de quem teve por sorte o viver mal. Mas a realização em massa dessa ambição instaura-se em plena força como modelo. E não apenas por ser uma realização em massa, mas porque aos «responsáveis» nenhum valor se impõe para a esse imporem. O utilitarismo é um valor negativo; mas converte-se em positivo pela negatividade de quem poderia recusá-lo. O que nos «irresponsáveis» é uma ambição em positivo, é nos «responsáveis» uma aceitação em negativo, porque nenhum valor positivo lhe contrapõem. Um automóvel é para uns um fim; mas se para outros deveria ser um meio, ele é um meio para coisa nenhuma e converte-se desse modo também num fim. O optimismo da conquista converge assim com o pessimismo da desistência para um vértice comum. Decerto não se ignora a contestação sofrida pela «sociedade de consumo». Mas a contestação só se realiza em eficácia, se o não é uma abertura para o sim. Denunciar um erro é necessário; mas quem tem uma verdade, mesmo errada, pode exigir-nos a verdade certa - e nós não a temos.
Mas o sonho utilitário não apaga o sonho como tal, o que no homem, porque humano, é ainda o sem-limite. Porque se não reinventa um homem totalmente, mesmo o homem circunscrito ao tangível do utilitário. Curiosamente assim o próprio sonho se degrada sem se anular como sonho. Curiosamente assim o homem é ainda o «ser de horizontes» (Heidegger), ainda quando esse horizonte for a montra de uma loja... O mais que nunca é bastante, o máximo que está para além de todos os máximos e é em si o máximo humano, converte-se agora não no que supere os limites do utilitário mas no que supere os limites de cada objecto útil. Assim o absurdo limite que num Sartre é o homem-deus é no societário de consumo o automóvel-perfeição, o aparelho-absoluto. Eis porque o reclame do super é uma constante de um reclame - desde o super-detergente ao super-Constelation. O super fala em linguagem degradada o que em linguagem humana fala da nossa ascensão. [Assim a própria crise do casamento - uma determinante do nosso tempo - pôde ser reportada à insatisfação no «consumo» (Eduardo Lourenço); assim uma mulher se pôde igualar, na sedução, ao frigorífico ou ao aspirador. .. Mas é possível, se não evidente, que a razão esteja mais longe - na radical exterioridade que a tecnologia promove em cuja superfície estéril um valor se não radica.]
Vergílio Ferreira,"Invocação ao Meu Corpo"
Ano novo traz expectativa de IA superar inteligência humana
Na semana passada, Sam Altman se sentou no palco da conferência DealBook, do jornal New York Times. O CEO da OpenAI encarou uma entrevista de pouco mais de meia hora com o jornalista Andrew Ross Sorkin, em que o destaque veio ali pelo meio.
— A AGI está bastante próxima. Vem, talvez, já no ano que vem — afirmou Altman.
A sigla em inglês quer dizer inteligência artificial geral. Mais frequentemente, é descrita de forma mais simples: aquele momento em que inteligências artificiais igualam ou superam a humana.
Uma pausa dramática se faz necessária. Altman sugeriu que IAs podem superar a inteligência humana brevemente. Talvez no ano que vem.
Só que, simultaneamente, fez algo ainda mais estranho. Tratou o evento como algo pouco extraordinário.
— Acontecerá antes do que imaginam — afirmou Altman —, mas importará pouco. Muitos dos riscos sobre os quais alertamos com a IA não ocorrerão no momento da AGI. A economia se moverá mais rápido, as coisas se desenvolverão com mais velocidade, mas a partir daí há um longo avanço partindo da AGI até o que chamamos de superinteligência.
A declaração é estranha e precisa ser decodificada. Há um ano, o próprio Altman fez um tour mundial, com parada no Rio de Janeiro, alertando aos governos que procedessem à regulação rápido perante os riscos de a inteligência artificial ultrapassar as capacidades humanas. Agora, mudou o discurso de forma bastante radical e cria um vácuo, uma distância, entre duas categorias novas. De um lado, AGI; do outro, lá na frente, algo chamado superinteligência.
A explicação possivelmente começa no contrato que sua empresa, a OpenAI, tem com a Microsoft. A sacada foi do Financial Times. Tendo investido US$ 13 bilhões no desenvolvimento do GPT, a companhia fundada por Bill Gates tem acesso total às tecnologias desenvolvidas pela OpenAI, mas há uma cláusula de ruptura. Esse acesso se encerra quando a AGI for alcançada.
Evidentemente, os advogados não soltaram a expressão sem defini-la bem. Então, não basta Altman reinterpretar o que quer dizer inteligência artificial geral numa entrevista. O que vale é o que está no contrato:
— São sistemas autônomos com performance superior à humana na maioria do trabalho com valor econômico.
Tome o trabalho de um executivo. O serviço de um advogado. A função de um jornalista. A capacidade de diagnóstico de um médico. Quebre essas profissões em uma série de ações. O momento em que uma IA for capaz de desempenhá-las de forma autônoma, melhor que um profissional médio, essa definição de AGI se aplicará.
É isso que Altman quer dizer com “a economia se moverá mais rápido”, com “as coisas se desenvolverão com mais velocidade”. Boa parte do trabalho intelectual mais braçal seria substituído. Autonomia é uma característica importante nessa equação. Os sistemas devem sair trabalhando sem que alguém dê o comando. Eles são agentes. Têm agência. Percebem quando há trabalho para realizar — e o realizam. Mas isso que ele descreve não é a substituição definitiva de executivos, advogados, jornalistas ou médicos.
O que sobra é o ato de criação e a capacidade de empatia. A possibilidade de ser original, de resolver problemas novos e também de entender quando é o momento de sorrir. IAs poderão detectar tumores em exames de imagem bastante antes de um médico. Mas não serão tão cedo as entidades mais adequadas para dar a notícia. Ou conviver com pacientes. Um contrato pode, sim, ser redigido por uma IA, assim como o preenchimento de uma planilha ou a redação de uma lista de perguntas. Mas a pergunta que traz a resposta que surpreende, o argumento que convence o juiz num caso muito difícil, tudo aquilo que não está nos dados, que nunca foi feito, isso ainda será exclusivo de seres humanos.
Altman tem se mostrado um executivo interessante. Cada vez menos é claro e, cada vez mais, é críptico. Fala de um jeito que parece dizer muito, mas exige esforço de interpretação. Sua entrevista com o Times parece ser o lance de abertura numa renegociação de contrato com a Microsoft. Quer mais dinheiro. E a OpenAI precisa de mais dinheiro. Tem mais concorrentes no mercado, e o que faz custa bilhões. Ainda assim, precisará entregar algo que pareça realmente novo e que possa chamar de forma convincente de inteligência artificial geral.
O ano de 2025 será interessante.
— A AGI está bastante próxima. Vem, talvez, já no ano que vem — afirmou Altman.
A sigla em inglês quer dizer inteligência artificial geral. Mais frequentemente, é descrita de forma mais simples: aquele momento em que inteligências artificiais igualam ou superam a humana.
Uma pausa dramática se faz necessária. Altman sugeriu que IAs podem superar a inteligência humana brevemente. Talvez no ano que vem.
Só que, simultaneamente, fez algo ainda mais estranho. Tratou o evento como algo pouco extraordinário.
— Acontecerá antes do que imaginam — afirmou Altman —, mas importará pouco. Muitos dos riscos sobre os quais alertamos com a IA não ocorrerão no momento da AGI. A economia se moverá mais rápido, as coisas se desenvolverão com mais velocidade, mas a partir daí há um longo avanço partindo da AGI até o que chamamos de superinteligência.
A declaração é estranha e precisa ser decodificada. Há um ano, o próprio Altman fez um tour mundial, com parada no Rio de Janeiro, alertando aos governos que procedessem à regulação rápido perante os riscos de a inteligência artificial ultrapassar as capacidades humanas. Agora, mudou o discurso de forma bastante radical e cria um vácuo, uma distância, entre duas categorias novas. De um lado, AGI; do outro, lá na frente, algo chamado superinteligência.
A explicação possivelmente começa no contrato que sua empresa, a OpenAI, tem com a Microsoft. A sacada foi do Financial Times. Tendo investido US$ 13 bilhões no desenvolvimento do GPT, a companhia fundada por Bill Gates tem acesso total às tecnologias desenvolvidas pela OpenAI, mas há uma cláusula de ruptura. Esse acesso se encerra quando a AGI for alcançada.
Evidentemente, os advogados não soltaram a expressão sem defini-la bem. Então, não basta Altman reinterpretar o que quer dizer inteligência artificial geral numa entrevista. O que vale é o que está no contrato:
— São sistemas autônomos com performance superior à humana na maioria do trabalho com valor econômico.
Tome o trabalho de um executivo. O serviço de um advogado. A função de um jornalista. A capacidade de diagnóstico de um médico. Quebre essas profissões em uma série de ações. O momento em que uma IA for capaz de desempenhá-las de forma autônoma, melhor que um profissional médio, essa definição de AGI se aplicará.
É isso que Altman quer dizer com “a economia se moverá mais rápido”, com “as coisas se desenvolverão com mais velocidade”. Boa parte do trabalho intelectual mais braçal seria substituído. Autonomia é uma característica importante nessa equação. Os sistemas devem sair trabalhando sem que alguém dê o comando. Eles são agentes. Têm agência. Percebem quando há trabalho para realizar — e o realizam. Mas isso que ele descreve não é a substituição definitiva de executivos, advogados, jornalistas ou médicos.
O que sobra é o ato de criação e a capacidade de empatia. A possibilidade de ser original, de resolver problemas novos e também de entender quando é o momento de sorrir. IAs poderão detectar tumores em exames de imagem bastante antes de um médico. Mas não serão tão cedo as entidades mais adequadas para dar a notícia. Ou conviver com pacientes. Um contrato pode, sim, ser redigido por uma IA, assim como o preenchimento de uma planilha ou a redação de uma lista de perguntas. Mas a pergunta que traz a resposta que surpreende, o argumento que convence o juiz num caso muito difícil, tudo aquilo que não está nos dados, que nunca foi feito, isso ainda será exclusivo de seres humanos.
Altman tem se mostrado um executivo interessante. Cada vez menos é claro e, cada vez mais, é críptico. Fala de um jeito que parece dizer muito, mas exige esforço de interpretação. Sua entrevista com o Times parece ser o lance de abertura numa renegociação de contrato com a Microsoft. Quer mais dinheiro. E a OpenAI precisa de mais dinheiro. Tem mais concorrentes no mercado, e o que faz custa bilhões. Ainda assim, precisará entregar algo que pareça realmente novo e que possa chamar de forma convincente de inteligência artificial geral.
O ano de 2025 será interessante.
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