sábado, 11 de janeiro de 2025

Donald Trump, um imperialista do século 19

Depois de fazer campanha com a política de acabar com as guerras, estabelecer a paz, colocar os EUA em primeiro lugar e isolar o país do mundo, Donald Trump decidiu esta semana ressuscitar o imperialismo do século 19. Em coletiva de imprensa, ele ponderou sobre a possibilidade de tornar o Canadá um Estado e tomar a Groenlândia e o Canal do Panamá, sem descartar o uso de força militar.

Os líderes republicanos, que Trump treinou apenas recentemente para denunciar a antiga política externa de expansionismo e internacionalismo de seu partido, rapidamente mudaram de opinião e adotaram a nova linha, e agora estão elogiando a visão grandiosa e o pensamento de Trump. Onde isso vai parar?

Alguns dizem que estamos de volta à “teoria do louco” da política externa, que postula que é bom para o presidente, às vezes, parecer imprevisível, até mesmo irracional, porque isso deixa os adversários desprevenidos. Vale a pena lembrar que Trump tentou essa jogada em seu primeiro mandato, mais obviamente com Kim Jong-un, da Coreia do Norte.

Ele começou ameaçando-o com uma guerra nuclear (“fogo e fúria como este mundo nunca viu antes”) e depois mudou abruptamente para um romance com cartas de amor. Nada disso funcionou. A Coreia do Norte continuou a construir seu arsenal nuclear, a realizar testes de mísseis (após uma breve pausa) e a ameaçar seu vizinho do sul.


O acadêmico Daniel W. Drezner observa que muitas pesquisas concluíram que o criador da teoria do louco, Richard Nixon, não produziu nenhum resultado positivo em seus esforços para se parecer louco e desequilibrado.

A conversa sobre transformar o Canadá em um Estado parece ser trollagem, direcionada ao primeiro-ministro do país, Justin Trudeau, de quem Trump não gosta. Mas isso forçou até mesmo os políticos trumpistas, como Doug Ford, o primeiro-ministro de Ontário, e o líder do Partido Conservador, Pierre Poilievre, a reagir com firmeza.

Durante a campanha de 2016, a retórica desagradável de Trump sobre o México ajudou o candidato mais antiamericano nas próximas eleições daquele país, Andrés Manuel López Obrador, a subir drasticamente nas pesquisas. Da mesma forma, Trump pode incentivar um maior antiamericanismo no Canadá desta vez.

O foco de Trump no Panamá e na Groenlândia tem algum fundamento. O Canal do Panamá é um dos grandes pontos de estrangulamento marítimo do mundo. Mas as autoridades panamenhas o administraram com responsabilidade e profissionalismo e de forma alguma trataram mal os EUA – como até mesmo o conselho editorial do Wall Street Journal reconheceu recentemente.

Também não há nenhuma evidência direta de influência militar chinesa no canal ou na zona do canal, como afirma Trump. A China está aumentando seus laços econômicos com a América Central e a América Latina, mas a maneira mais fácil de ajudar Pequim a expandi-los ainda mais seria Washington fazer um esforço desastrado para colonizar o lugar. Isso levaria a ataques nacionalistas contra os EUA no Panamá e reavivaria os temores do neoimperialismo americano em todo o continente.

A Groenlândia está se transformando em um lugar crucial, em grande parte devido às mudanças climáticas, que ironicamente Trump chamou de “farsa”. O derretimento das calotas polares abrirá novas rotas marítimas oceânicas entre a Europa e a América do Norte, e a Rússia e a China tentarão ativamente ganhar influência nessas novas vias marítimas.

É – e deve ser – política americana impedir os esforços de ambas as nações rivais para expandir sua presença econômica e militar na região. Mas os EUA não precisam adquirir a Groenlândia para fazer isso. O país já tem todo o acesso à ilha que deseja. Washington tinha uma série de bases durante a 2ª Guerra e a Guerra Fria. Uma delas permanece até hoje e é operada pelas Forças Espaciais.

De fato, a Dinamarca tem ajudado ativamente no novo interesse dos EUA na Groenlândia. Há alguns anos, a ilha (que é governada de forma semiautônoma) quase fez um acordo para aceitar o financiamento chinês para um conjunto de novos aeroportos. O Pentágono pediu à Dinamarca que convencesse os groenlandeses a cancelar o acordo. O governo dinamarquês foi bem-sucedido, substituindo grande parte do financiamento chinês pelo seu próprio.

Trabalhar com a Dinamarca tornou os esforços dos EUA mais eficazes. Da mesma forma, empresas americanas, incluindo uma financiada pelo fundo Breakthrough Energy Ventures, apoiado por Bill Gates e Jeff Bezos, dono do Washington Post, estudam se a Groenlândia poderia ser explorada para obter alguns de seus ricos suprimentos minerais. Isso não mudaria em nada caso a ilha fosse americana.

Os EUA têm sido influentes em todo o mundo porque conseguiram persuadir os outros a agir não apenas em seu interesse próprio, mas em nome de valores mais amplos, como paz, estabilidade, regras e normas que ajudam a todos. É por isso que o governo americano conseguiu fazer com que 87 países condenassem imediatamente a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia. É por isso que muitos dos vizinhos da China se aliaram aos EUA.

Na coletiva de imprensa, Trump propôs se livrar da “linha artificialmente traçada” entre o Canadá e os EUA. É claro que isso é exatamente o que o presidente russo, Vladimir Putin, diz sobre a fronteira entre Rússia e Ucrânia. E aquilo que o presidente chinês, Xi Jinping, fala sobre a divisão entre China e Taiwan. Estamos entrando é um mundo que torna a Rússia e a China grandes de novo.

Fareed Zakaria

Como Odorico Paraguaçu: populistas têm criado realidades alternativas

Odorico Paraguaçu, o prefeito da fictícia Sucupira, sempre de paletó impecável e discurso inflamado, era obcecado por inaugurar um cemitério. A promessa gerava desconfiança, mas também muitos aplausos. O cemitério, contudo, nunca ficava pronto. Entre anúncios e cerimônias frustradas, Odorico mantinha o povo enredado em uma realidade distorcida.

Sucupira, a cidade fictícia de Dias Gomes em O Bem-Amado, é um presságio das dinâmicas que hoje emergem nas redes sociais e suas hipérboles. Anne Applebaum, na revista The Atlantic, ilustrou esse fenômeno com o caso de Calin Georgescu, um ambientalista romeno que trocou o ativismo por uma narrativa populista e conspiratória.



Com vídeos nadando em lagos gelados e invocando Deus, Georgescu alimenta o imaginário do povo romeno. Alegando que a Romênia estava sob controle de potências estrangeiras e elites secretas, galvanizou seguidores que se sentiam marginalizados, transformando-se em um símbolo de resistência contra uma opressão fabricada. Sua força, como a de Odorico, residia em oferecer uma visão alternativa da realidade.

O uso de promessas vazias e narrativas alternativas não apenas perpetuava a liderança de Odorico, mas criava uma realidade paralela que mantinha seu domínio político.

Nem precisamos nos perguntar qual seria o estrago de Odorico hoje, tendo acesso às redes sociais. Estamos sentindo o estrago na pele.

Líderes populistas criam realidades alternativas para deslegitimar elites intelectuais e se blindar da responsabilização política. Nessas realidades, as críticas da mídia ou do Judiciário não corroem sua popularidade. Ao contrário, servem como prova de autenticidade para seus seguidores. Essa inversão de lógica fortalece o líder, enquanto a propaganda amplifica crenças equivocadas, resultando em políticas públicas prejudiciais e corroendo a confiança nas instituições.

Em Sucupira, Odorico utilizava a promessa do cemitério como elemento central dessa mesma estratégia: críticas não o enfraqueciam, mas reforçavam seu domínio. A ficção de Sucupira e a realidade de Georgescu convergem para mostrar como líderes transformam o que deveria ser crítica em ferramenta de autenticidade, substituindo fatos por fantasia e fortalecendo suas posições em um cenário cada vez mais distorcido.

A recente decisão da Meta de interromper programas de checagem de fatos nos EUA mostra que aceitamos realidades fabricadas. Sem checagem de fatos, o realismo fantástico político continuará a florescer.