segunda-feira, 10 de junho de 2019

Greenwald, o homem que quer fritar Sergio Moro, é uma fera

Para dar uma ideia, aproximada, do mundo em que Glenn Greenwald circula como uma águia, com língua rápida e brilhante de advogado, olho de jornalista e outras habilidades mais complexas, ele funciona frequentemente como aliado de Donald Trump.

Convidado pelos apresentadores ideológicos da Fox, como Tucker Carlson ou Sean Hannity, o jornalista, tão de esquerda quanto possível, dedicou-se em várias entrevistas, antes e depois do relatório Mueller, a desmanchar a tese de uma associação clandestina entre Trump e o governo de Vladimir Putin.

Talvez o principal motivo para desconfiar de que alguma coisa obscura aconteceu seja esse, e não as exageradas e surtadas acusações de políticos democratas e jornalistas antitrumpistas.


Espetacular debatedor, capaz de esmagar interlocutores com agressividade de advogado criminal e montanhas de dados, ele pulveriza as acusações de que faz parte do trio de brilhantes “vazadores” que se comportam como agentes de interesses russos. Os outros são Julian Assange e Edward Snowden.

Foi com eles que Greenwald se tornou uma figura global, saudado como nobre defensor da liberdade de expressão e da transparência. Chegou a ganhar um prêmio Pulitzer.

Inebriados com a formidável quantidade de informações sigilosas sobre atividades políticas e militares de sucessivos governos, jornalistas americanos demoraram um pouquinho até perceber que Assange só passava dados que constrangessem os Estados Unidos.

Não aparecia nada sobre Rússia e aliados. Snowden, claro, é até hoje asilado na Rússia, não exatamente o tipo de país onde um agente de inteligência chega de mãos vazias e boca fechada.

Sem contar que foi o WikiLeaks o divulgador dos emails de associados de Hillary Clinton, sem nada muito grave, mas com revelações sobre bastidores que aumentaram o clima de inimizade interna no Partido Democrata. Embora, claro, seja exagero de perdedor atribuir a derrota dela aos tais emails.

Quem passou a informação? O “agente” identificado como Guccifer 2.0, um taxista romeno que fazia fachada para o trabalho coletivo do ramo cibernético da inteligência militar russa. Greenwald teve acesso a Guccifer, um maravilhoso nome fantasia.

O jornalista americano contra-ataca rapidamente quando é colocado na mesma turma de hackers e outros gênios progressistas que defendem seus vazamentos em nome da liberdade de informação, mas acabam alinhados com os objetivos de Vladimir Putin.

No ano passado, quando um professor de biologia integrativa da Universidade do Texas, Claus Wilke, tuitou que “Greenwald é um agente russo. Se você olhar para as pessoas e posições que ele apoio nos últimos anos, isso fica muito óbvio”, a resposta veio rápida.

“Década de 50: J Edgar Hoover acusa jornalistas e acadêmicos de serem agentes secretos do Kremlin. 2018: acadêmicos assumem o papel acusatório. Esta é uma grave patologia coletiva na vida política dos Estados Unidos que não vai desaparecer tão cedo.”

O professor eliminou o tuíte e Greenwald ainda se passou por vítima das “elites”, dizendo que não podia circular mais nos “salões liberais”.

As atitudes de celebridades como Assange e Greenwald confundem cabecinhas do Terceiro Mundo, onde ainda são considerados grandes aliados da esquerda.

Greenwald é um estrategista que criou para o marido, David Miranda, que conheceu no Rio de Janeiro, onde moram, um nicho próprio de ativista de esquerda com projeção internacional.

Quando foi detido em Londres levando material sigiloso do infindável arquivo de Snowden, Miranda deu escândalo e ditou os passos que o governo brasileiro tinha que tomar. A detenção era inteiramente previsível, considerando-se que o caso já havia explodido.

Na época, Dilma Rousseff teve a excepcional prudência de não fazer o que o brasileiro detido por algumas horas, num procedimento depois considerado legítimo, estava mandando.

Ironicamente, David Miranda, primeiro eleito vereador pelo PSOL, agora é um deputado com lugar na Câmara e na Comissão de Relações Exteriores. Chegou lá como suplente de Jean Wyllis que, famosamente – ou será que coincidentemente – deixou a cadeira e o Brasil, temendo ameaças à vida e integridade.

David Miranda já aparece até na Time como “político gay e negro” que está enfrentando Jair Bolsonaro. Obviamente, com aura de herói vindo do Jacarezinho para voos mais altos depois de conhecer Greenwald num vôlei de praia em Ipanema, depois de ser engraxate e faxineiro.

O caso de amor trouxe Greenwald para o Brasil e, claro, para a política brasileira. Em 2014, ele criou o site The Intercept, publicado em inglês e português. O dono e financiador é Pierre Omidyar, filho de imigrantes iranianos de alto nível acadêmico nascido em Paris que depois se mudaram para os Estados Unidos. Na terra das oportunidades, Omidyar criou nada menos que o eBay, o site de leilões diretos. Como outros bilionários digitais – 12,9 bi no caso dele -, quer mudar o mundo.

Se alguém quer mudar o mundo, ou pelo menos causar terremotos políticos, Glenn Greenwald é um dos mais perfeitos exemplares do chamado “jornalismo de choque”, um passo além do militante pelo fato de criar acontecimentos ao contrário de apenas cobri-los de modo condizente com as respectivas ideologias políticas.

Entrar no Telegram, o serviço de mensagens altamente criptografadas criado pelos irmãos russos Nikolai e Pavel Durov, não é exatamente descobrir o código secreto da Enigma. Mas exige habilidades supostamente generosas com a fonte do Intercept que passou as mensagens entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Foram assim descritas pelo site: “Produzidas a partir de arquivos enormes e inéditos – incluindo mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais e outros itens – enviados por uma fonte anônima, as três reportagens revelam comportamentos antiéticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer.”

É possível deduzir que Greenwald entrou há um bom tempo na briga e preparou cuidadosamente esta e as próximas etapas dela. Até jornalistas iniciantes sabem que as bombas nunca são lançadas todas de uma vez.

A briga continua.

Gente fora do mapa

Pablo Picasso

O Grande Irmão de Orwell está vivo

Mil novecentos e oitenta e quatro continua tão perturbador quanto um espelho grotesco do Beco do Gato de Valle-Inclán. Embora tenha algo de tosco e deliberado, o romance – intitulado assim no original, embora geralmente citado em números, 1984 – interpela geração após geração de leitores inquietos e receosos que reconhecem traços do mundo que Orwell fabulou, ou acreditam, como diz a canção de Leonard Cohen, que “os ricos transmitem seus canais nos quartos dos pobres”. Ontem, 8 de junho, comemorou-se o 70º aniversário da primeira edição de uma obra com a qual George Orwell mergulhou no que poderia ser chamado de ficção científica política com uma distopia cujo eco não perdeu a força.

Embora seja um long-seller continuamente republicado, recentemente as vendas da distopia de Orwell dispararam nos Estados Unidos, onde, segundo o The New York Times, a editora Penguin enviou várias centenas de milhares de exemplares pouco depois de Kellyanne Conway, conselheira do Gabinete do presidente Donald Trump, ter repreendido a imprensa por insistir que a Administração reconhecesse que o número de participantes da cerimônia de posse de Trump era uma informação falsa que sua equipe tinha feito circular. Afinal, disse Conway, não se tratava nem de uma mentira nem de um erro, mas do que definiu como “fatos alternativos”. Ao ouvir suas palavras, muitos cidadãos relembraram algumas previsões do romance de Orwell: a “novilíngua”, um vocabulário sintético e reduzido, cuja pobreza visa também reduzir a capacidade de pensar; e o “Ministério da Verdade”, no qual funcionários no livro se aplicam a corrigir os testemunhos do passado recente e a reescrever a história para que ela se encaixe perfeitamente no discurso oficial. Ou seja, o que muitos viram em Conway era uma implantação sem complexos da mentira institucionalizada, presente em maior ou menor medida não só em Trump, mas em geral nos discursos da política, do comércio, da religião... do jornalismo...

Caminhamos mansamente em direção a uma sociedade de vigilância em massa na qual a informação é manipulada para manter as pessoas sob controle, como o romance reflete? Orwell imaginou um mundo pós-revolucionário onde tudo o que aconteceu antes da Revolução fundadora de1984 (valores humanísticos, formas de relacionamento, debate público, liberdade de expressão, cultura...) foi abolido e esquecido. A nova sociedade materialista que o romance descreve é dividida em três classes: os membros do partido, os “proles” e os “escravos”. O aparato de repressão, onipotente e implacável, vigia cada movimento dos súditos por meio de um sistema de telas instaladas no espaço público e no doméstico. Não existe privacidade. O poder é encarnado em um tirano inacessível cuja imagem é exibida em todos os lugares com o slogan “O Grande Irmão está te vigiando”.

Em uma Londres sinistra, o protagonista, Winston Smith, modesto mas inquieto funcionário do departamento de História do Ministério da Verdade, conhece Julia, empregada do departamento de Ficção do mesmo ministério. Ela opera uma “máquina de escrever romances”: histórias com argumentos simples e personagens estereotipados, semelhantes àquelas que em nosso mundo real hoje são escritas por computadores que usam inteligência artificial. Winston e Julia se apaixonam e tentam se juntar a uma fantasmagórica organização clandestina de dissidentes que, no fundo, sabem estar condenada ao fracasso, porque o poder é invencível. Essa tensão entre o poder esmagador, por um lado, e, por outro, o amor e a liberdade, é a substância do romance.

Deixando de lado notáveis exceções, como o controle exercido pelo Governo chinês sobre sua população e satrapias várias, o onipresente Estado policial, todo-poderoso e controlador que Orwell fabulou... não existe. Paradoxalmente, um dos maiores problemas em grande parte do mundo é a fraqueza ou a falência dos Estados. Mas os monopólios todo-poderosos da tecnologia, com seu controle da verdade e sua avidez vampírica por informação, podem ser um substituto plausível para esse Estado fictício. Nesse sentido, também na realidade, O Grande Irmão está te vigiando e te espionando – sim, com uma interface agradável e com a aquiescência e a entusiástica cooperação da massa – por meio das telas, do telefone celular que cada um carrega no bolso, do indelével rastro digital deixado por cada usuário.

Na sociedade ocidental de hoje, o sexo tampouco é reprimido e severamente controlado como em 1984, mas encorajado e exposto. E, no entanto, sua prática na juventude é substancialmente atrasada e reduzida, de acordo com estatísticas oficiais de uma dezena de países do primeiro mundo citadas pela revista cultural norte-americana The Atlantic. Essa demora pode ser a primeira indicação da recessão sexual, sinal de “uma retirada mais ampla da intimidade física que se estende até a entrada na maturidade”. (As causas dessa queda da libido podem ser pressões econômicas, ansiedade, fragilidade psicológica, uso generalizado de antidepressivos, televisão em streaming, estrógenos dispersados pelo plástico no meio ambiente, smartphones, falta de sono, obesidade, excesso de informação... ou o que ocorrer a qualquer analista).

No inferno cartografado por Orwell em seu livro, escrito no pós-guerra, a miséria é generalizada, as pessoas caminham cabisbaixas e tolhidas, os bens de consumo são escassos, a aparência das coisas é cinza, o trabalho é embrutecedor e os horários abusivos. Hoje o mundo real não é assim, pensam os membros do partido. Mas proles e os escravos certamente reconhecem essas paisagens.

Em um dos mais famosos, tétricos e patéticos cenários de 1984, os chamados “dois minutos de ódio”, as massas se reúnem diante de uma grande tela para vaiar e execrar o inimigo em um paroxismo demente. Ao lê-lo, é inevitável se lembrar das redes sociais, onde hoje qualquer um que coloque o focinho fora do bando se expõe a ser linchado virtualmente.

Outros artefatos e termos usados para descrever o mundo de 1984 foram incorporados à paisagem e à linguagem comum. Orwell concebeu suas profecias como uma admoestação, uma advertência contra um futuro totalitário, seja soviético, seja fascista, e contra o cultivo sistemático da mentira que observou pela primeira vez na Espanha, em Barcelona, durante a Guerra Civil, que lhe deixou surpreso e pensativo ao constatar “com que facilidade a propaganda totalitária pode controlar a opinião das pessoas cultas nos países democráticos”.

O estilo de Orwell é direto e tem uma formidável capacidade de criar empatia com o leitor, que ao lê-lo ouve a voz de um personagem honesto, próximo, bom. Essa proximidade, é claro, é uma grande virtude literária. Orwell é próximo, simpático, honesto. Como Camus, escrevia impulsionado por uma obrigação moral. Tinha que expiar seu trabalho como oficial de polícia do império na Birmânia, onde passou cinco anos depois de ter estudado em Eton, e de onde voltou com uma forte consciência política anti-imperialista.

Escreveu com o máximo verismo reportagens sobre os londrinos pobres e se reduziu voluntariamente à condição de vagabundo. Frequentou mendigos em pé de igualdade por um longo tempo. Daí surgiu seu primeiro livro, Na Pior em Paris e em Londres.

Com o mesmo espírito de coerência e sacrifício, quando Franco se levantou contra a República espanhola foi para Barcelona e imediatamente se apresentou como voluntário para lutar na frente. Desta aventura ficou o testemunho de sua Homenagem à Catalunha e o rastro de uma experiência e conhecimentos sobre a lógica do totalitarismo que se refletiria em sua famosa fábula Revolução dos Bichos, e que cristalizou em 1984.

Este romance foi seu legado: ele o escreveu tendo em mente Nós, de Yevgeny Zamyatin, com muito trabalho, dúvidas e correções em uma ilha escocesa ventosa e fria, onde se retirou com esse objetivo, logo depois de ter ficado viúvo de uma esposa muito querida, sozinho, doente de tuberculose – na época muitas vezes letal –, como um longo testamento político. De fato, morreu no ano seguinte à publicação.

O escritor britânico John Lanchester aponta que o mundo de hoje é mais parecido com a distopia daquele que foi professor de Orwell, Aldous Huxley: Admirável Mundo Novo (1932). Esse livro descreve uma sociedade marcada pela ciência e pela tecnologia e entregue a uma “narcotizante promiscuidade sexual”, tranquilizada pelo prazer e pelas drogas (o soma milagroso) e imersa em uma infantilização geral; e coerentemente com isso, narrado em um tom mais leve do que 1984. Para entender o presente, Lanchester propõe uma síntese entre Admirável Mundo Novo e 1984.

Nessa síntese talvez se devam incluir algumas das tendências e inovações que inundam o nosso mundo. Como as chamadas “capacidades aumentadas”– drogas, próteses, implantes cerebrais–, os novos órgãos obtidos com impressoras 3D; os robôs que controlam nossas casas, aprendem e transmitem nossos dados; a realidade virtual que entretém e anestesia... Orwell não se estendeu em descrições de novas tecnologias e máquinas: colocou o foco em um estado mental e social. É por isso que seus augúrios conectam com os leitores. Como Dorian Lynskey afirma em uma recente biografia de Orwell – In the Shadow of Big Brother (Na Sombra do Big Brother) –, o britânico “estava muito mais interessado na psicologia do que nos sistemas”. Aí reside a chave do poder e dos mecanismos de controle da massa através da mentira e do medo. Isso dificilmente muda.

Irmanados na perdição

Eis a péssima notícia: estamos perdidos, irremediavelmente perdidos.Estamos perdidos, mas temos um teto, uma casa, uma pátria. É a nossa pátria, o lugar de nossa comunidade de destino de vida e morte. O evangelho dos homens perdidos diz-nos que devemos ser irmãos, não porque seremos salvos, mas porque estamos perdidos
Edgar Morin

A cabeça pode salvar o capacete

Governo estranho esse. O que Bolsonaro propõe hoje vai na direção oposta do Código de Trânsito Brasileiro, pelo menos tal como o votamos. É um governo conservador que se lixa para o princípio de precaução, o que poderia ser uma ponte para o debate. É um governo liberal pouco atento à vida das pessoas, embora queira livrá-las das garras do Estado.

Lembro-me dos debates sobre o Código de Trânsito. O relator era um deputado de São Paulo, que conhecia bem o tema. Chama-se Ary Kara e aceitou emenda para que os carros populares tivessem airbag. Fomos derrotados porque a indústria achava, na época, que isso reduziria vendas.

Bolsonaro deu uma grande mexida no setor. Propõe abolir a multa para quem não usa cadeirinha das crianças, ampliar os pontos para suspensão da carteira, afrouxar as regras para uso de capacete em moto. Isso entra em choque com a experiência cotidiana. No Norte e Nordeste, há uma abundância de motos e uma escassez de capacetes.

Numa das primeiras viagens para a TV, passei pelo interior do Maranhão e constatei como algumas UTIs estavam cheias com acidentados de moto. E nem todos os hospitais do país têm neurocirurgião.

Outro dia, no interior do Piauí, mostrei como é a saída da escola. Os pais vêm de moto e recolhem as crianças, às vezes mais de uma na garupa. Nem sempre usam capacetes. Em alguns casos, usam, mas não trazem o capacete das crianças.

Isso sem contar no Norte e Nordeste o grande número de bebês que é transportado em moto. Documento isto com frequência.

Já havia manifestado minha posição favorável aos radares. Sou sensível à possibilidade de multas injustas. Mas acho que existe um canal para contestá-las.


Bolsonaro está reduzindo multas porque acredita no caminho pedagógico. Mas é uma contradição acreditar nesse caminho e, subitamente, afrouxar as punições. A mensagem que passa, já estamos falando de pedagogia, é de que as infrações não são graves.

Compreendo que existam muitos motoristas que serão beneficiados, que Bolsonaro procura não apenas atender aos seus impulsos, mas também a muitos dos seus eleitores.

Mas é um governo meio doido. Ao mesmo tempo em que apresenta uma política de drogas repressiva, com a internação obrigatória, amplia os prazos para exames toxicológicos em motoristas profissionais.

No passado, tive a esperança de que os governos convencessem a indústria de motos a gastarem parte de seus lucros em campanhas e cursos de segurança. Isso já acontece em alguns países.

Mas a vida tem se desvalorizado nos últimos tempos no Brasil, a própria política de segurança potencialmente pode produzir um número maior de mortes.

Não há outro caminho a não ser enfrentar as estradas e conviver com um perigo ainda maior. Perigo que aumenta não só no trânsito, como na mesa. Com conhecimento, e algum dinheiro, ainda é possível comer algo saudável, num país em que oito perigosos agrotóxicos são liberados.

Uma grande rede de supermercados sueca iniciou um boicote aos produtos brasileiros, precisamente por causa das decisões do governo na liberação de agrotóxicos.

Os desastres com moto já são campeões nas estatísticas. A saída é continuar documentando acidentes, fazendo as contas. Os liberais que se apoiam apenas na liberdade pessoal de assumir os riscos se esquecem de algumas relações que estabelecemos no trânsito.

Todos estamos em jogo. Desastres acontecem não só com os que têm opções imprudentes. Levam os outros também. As UTIs superlotadas deixam gente de fora, postergam cirurgias. Conservadores de fato compreendem isso, da mesma forma, aos liberais de fato não escapam essas interconexões.

Este é um governo estranho. Eleito por 57 milhões de brasileiros, parece querer levar o Brasil para um tempo que não existe mais e que talvez nunca tenha existido, exceto na fantasia de Bolsonaro.

Às vezes, você espera um Messias e recebe um Jim Jones, aquele reverendo que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

Não quero dramatizar. É preciso apenas ficar de olho. Costumamos punir gestão temerária de bens. Por que não dedicar um tempo para avaliar uma gestão temerária de vida? Naquela, a vida ceifada por caminhos indiretos. Nesta, a vida apenas, sem apelação.

Bolsonaro se finge de tolo

Ninguém poderia se dar ao luxo de priorizar o supérfluo quando o essencial agoniza. Mas nem os 13,4 milhões de desempregados, a economia estagnada, beirando a recessão, a violência crescente, a miséria abundante, a saúde e educação em frangalhos, afastam o presidente Jair Bolsonaro de privilegiar uma agenda acessória, limitada aos seus fiéis.

Contrariando o bom senso para satisfazer sua visão particular entre o que é bom ou mal para o cidadão, Bolsonaro insiste em dar peso a matérias secundárias. Não raro, como fez na ressureição da ideia insana de uma moeda única para Brasil e Argentina - “uma trava para aventuras socialistas na América do Sul” -, parece estar enredando a todos em manobras diversionistas.

O mesmo vale para a suspensão da multa por transportar crianças sem cadeirinha. Ideia absurda que consumiu energia que deveria estar direcionada à gravidade dos problemas do país, que passam longe do assento infantil no banco de trás. Ainda que possam ser discutidas, mudanças no Código Nacional de Trânsito não são questões que mereceriam marcha do presidente ao Congresso Nacional para marcar o início da tramitação.

Além do perdão para os pontos na carteira de motorista, que ele próprio e o seu clã somam acima do permitido, Bolsonaro aposta na popularidade do afrouxamento de regras. Sabe que a maior parte delas deverá ser rejeitada no Parlamento, a quem ele atribuirá o ônus da derrota de parte da proposta estapafúrdia que fez. Ou seja, populismo puro.

Promessa de campanha, o projeto de lei que flexibiliza a posse e o porte de armas também vai na mesma linha. Mistura a crença pessoal discutível de que a arma protege a vida e o patrimônio – embora ele já tenha perdido sua arma para um bandido durante assalto -, com o prazer que o capitão e sua prole têm de dar tiros. 

Quem pode ter armas de fogo e andar armado, quantas armas cada um pode ter e quantas centenas de balas foram itens fixados sem qualquer critério técnico, na contramão de especialistas em segurança pública e sem o aval do ministro da área, Sérgio Moro. Quisera o ex-juiz que o presidente tivesse apenas um tiquinho do empenho dedicado às armas ao pacote anticrime e anticorrupção – dois pontos cruciais para um país mergulhado na violência e vitimado por toda sorte de roubalheira -, na prática, renegado pelo capitão a segundo ou terceiro planos.

Além de atirar, o presidente gosta de pescar. Multado em 2012 pelo Ibama por lançar seu anzol nas águas da Estação Ecológica de Tamoios, em Angra, Bolsonaro antecipou como costuma agir e como elege suas prioridades. Deputado federal à época, ele apresentou um projeto de lei que impedia fiscais ambientais de portar armas, algo nada condizente com o parlamentar pró-bala. Presidente, ele não só demitiu o fiscal como já anunciou que pretende transformar a sua área de pesca predileta em uma “Cancún brasileira”.

Em comum, todas essas questões têm a prevalência da motivação pessoal em detrimento da coletividade. Nem todos os números que mostram a descrença da população em armas – 73% dos brasileiros ouvidos pelo Ibope são contra a flexibilização do porte e 61% contra a posse -, ou os que apontam mais de 47 mil mortos no trânsito e outros 20 mil inválidos, são capazes de convencê-lo da estultice e irresponsabilidade de afrouxar regras em legislações que mexem com a vida e a morte.

Ele se move por voluntarismo, cujo efeito deletério o país já conhece, associado a agrados baratos e linguajar fácil para o “povão”, mesmo método que assegurou a popularidade de Lula, hoje preso em Curitiba. Parece ter aprendido ainda a arte de tergiversar. Lança uma ideia estapafúrdia por dia, ocupando todos os espaços com debates inócuos que acabam por escamotear sua incapacidade de governar.

Como bom populista, aposta na periferia, em questões que movem corações e copos nas mesas de bar e nos porres virtuais. Mas nada tem de tolo. Qualquer coisa que der certo - mesmo aquelas como a Reforma da Previdência, para a qual teve empenho próximo de zero -, o mérito será seu. O que falhar ficará na conta do Congresso.
Mary Zaidan 

Pensamento do Dia


Bolsonaro, muito pitaco e pouca noção de governo

Rei dos pitacos e das palavras fora de hora e de lugar, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu numa única semana dizer aos argentinos como votar, propor a extinção de multa para quem levar criança no carro sem cadeirinha, proclamar a inocência de Neymar no caso da acusação de estupro, defender o afrouxamento das normas de trânsito e entrar numa conversa muito estranha sobre moeda única para Brasil e Argentina. Do lado brasileiro, o Banco Central (BC) logo negou haver qualquer estudo sobre o assunto. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, condenou a ideia e foi atacado por internautas, presumivelmente bolsonaristas. A criação da tal moeda, por enquanto chamada peso real, é e será por muito tempo apenas uma fantasia, uma ideia muito distante dos problemas e prioridades atuais e previsíveis.

Mas será prioritário para o Brasil, neste momento, facilitar a posse e o porte de armas ou reduzir o número de radares em estradas? Nem se trata apenas de saber se essas inovações são positivas. Antes de mais nada, trata-se de avaliar a importância desses assuntos na ordem dos problemas brasileiros. Quando se trata de prioridades, as decisões do presidente Jair Bolsonaro podem ser surpreendentes, como têm notado muitos políticos e analistas de assuntos públicos.


Falar de prioridades é falar de agenda, e agenda parece algo desconhecido para o chefe de governo, segundo o deputado Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ambos filiados ao DEM. “Se o governo não tiver agenda, e parece que não tem, vamos fazer a nossa”, disse Alcolumbre à GloboNews. “Não vamos ficar esperando”, acrescentou. O senador poderia mencionar sem dificuldade uma lista de trapalhadas, o desarranjo do Executivo e a desarticulação da chamada base parlamentar. Cumpridos quase cinco meses e meio de mandato, a conclusão parece inevitável: o presidente Jair Bolsonaro chegou ao governo sem uma ideia clara dos desafios mais urgentes, sem uma lista de objetivos bem definidos e articulados e, mais importante, sem entender as funções presidenciais.

Ao defender sua interferência em anúncio do Banco do Brasil (BB), o presidente usou um argumento simples, primário e revelador. “Quem indica e nomeia presidente do BB – não sou eu? Não preciso falar mais nada, então.” Não precisaria, mesmo. Essa declaração, de 27 de abril, mostrou muito claramente a confusão entre governar e mandar. Na cabeça do atual chefe de governo, a função presidencial, tudo indica, consiste em ordenar e proibir – segundo suas preferências, seus impulsos e suas concepções ideológicas e religiosas.

Isso explica suas tentativas de intervir também na política de preços da Petrobrás e, mais timidamente, na orientação da Caixa Econômica. Cabem no mesmo quadro as tentativas de eliminação ou redução de radares nas estradas, de aumento dos pontos na carteira de motorista e de alteração da norma sobre transporte de crianças em carros.

Sem discutir esses temas, sem consultar especialistas e baseado apenas em sua opinião, ou em seu impulso, o presidente se pôs a intervir em todos esses assuntos. O uso frequente de decretos, também característico do estilo Bolsonaro, é compatível com a confusão entre governar e mandar. Esse tipo de ação pode resultar em tropeços, quando as decisões presidenciais são contestáveis com argumentos legais. Esse tipo de resistência forçou, por exemplo, a revisão do último decreto sobre armas. Poderá levar à anulação de outras decisões, mas é difícil dizer se o presidente entenderá, em algum momento, os limites de seu poder.

Mas a ignorância desses limites é apenas uma parte do problema. A questão mais grave e mais ampla é o desconhecimento do significado de governo e das funções da Presidência. O presidente Bolsonaro erraria muito menos se consultasse funcionários competentes em cada área. Quando interveio na publicidade do BB e tentou fixar normas para anúncios de empresas controladas pelo Tesouro, foi salvo de mais um erro pelo ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz. A intervenção violaria, advertiu o ministro, a Lei das Estatais.

Sem uma agenda clara, com objetivos ordenados, hierarquizados e vinculados a interesses permanentes e condições de funcionamento do Estado brasileiro, o presidente Bolsonaro e sua trupe ideológica só produziram confusões e problemas. Forçado a enxergar e a admitir erros desastrosos, o presidente já demitiu um ministro da Educação, substituído, no entanto, por uma figura igualmente mal escolhida. Na diplomacia, acabou aceitando a intervenção do vice-presidente, general Hamilton Mourão, empenhado em consertar erros graves e custosos e em prevenir novos desatinos. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem igualmente procurado salvar o relacionamento com relevantes clientes do Brasil.

Não está claro, no entanto, se o presidente de fato percebeu as tolices cometidas por ele mesmo, pelo ministro de Relações Exteriores e pelo filho Eduardo Bolsonaro, porta-voz mais ostensivo da submissão bolsonariana às ideias do presidente Donald Trump.

Ao dar palpite sobre a eleição argentina e ao aceitar a conversa inconsequente sobre a moeda comum, o presidente Bolsonaro demonstrou, mais uma vez, sua dificuldade de perceber as limitações e obrigações de seu posto. Teria sentido estratégico, por exemplo, começar um esforço de resgate e de revigoramento do Mercosul.

Se iniciasse um trabalho firme e competente nessa direção, poderia, com apoio de Paraguai, Uruguai e de outros países da área, remodelar as condições de cooperação regional. Seria mais apropriado e eficiente do que agir como cabo eleitoral do presidente Mauricio Macri. Para ir além das declarações de ódio ao bolivarianismo e ao kirchnerismo, o presidente Bolsonaro precisaria, no entanto, formar uma visão menos tosca do governo, dos interesses do Estado e de suas potencialidades no quadro global. Quatro anos serão suficientes para isso?

Às cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações. A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira. E como qualquer de nós procura quase sempre apenas o concreto, cada coisa que toca deixa-lhe nas mãos o simples negativo da sua realidade 
Miguel Torga

Quem acha vive se perdendo

O trocadilho de Noel Rosa em Feitio de Oração — “Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ Meu pobre peito invade” —, como diria o colega Heraldo Pereira, ajuda a encaixar os fatos da conjuntura. O samba não se aprende no colégio, explica a canção antológica: “O samba na realidade não vem do morro/ Nem lá da cidade/ E quem suportar uma paixão/ Sentirá que o samba então/ Nasce do coração”. Entretanto, governar não é só paixão. Também se aprende no colégio.

O Brasil tem excelentes escolas de administração pública e uma alta burocracia muito bem qualificada, a quem cabe zelar pela legitimidade e consistência técnica das decisões. O achismo na gestão pública é uma perdição, ainda mais num país de dimensões continentais como o Brasil. A escritora norte-americana Bárbara Tuchman (1912-1989) escreveu um livro que trata do achismo e mostra a cegueira dos governantes em momentos decisivos da história: “Os seres humanos, especialmente as autoridades, costumam ser acometidos de um estranho paradoxo: tomar atitudes totalmente contrárias aos interesses da coletividade e, em última análise, a si mesmos, ainda que elas possam parecer o contrário”. Chamou o fenômeno de “a marcha da insensatez”, expressão que intitula seu livro.

A história está cheia de exemplos de decisões desastradas de governantes. A soberba dos papas da Renascença levou a Igreja Católica ao grande cisma protestante. O rei inglês Jorge III, ao tomar medidas extremamente impopulares em suas colônias americanas, impeliu-as a declarar a independência e a fundar os Estados Unidos. A ocupação de Moscou fez Napoleão perder a guerra na Rússia. As coletivizações forçadas de Stálin provocaram uma escassez crônica de alimentos na antiga União Soviética. O Grande Salto Pra Frente de Mao Zedong matou de fome milhões de chineses. A intervenção norte-americana no Vietnã levou os Estados Unidos ao seu maior desastre militar. Aqui no Brasil, recentemente, a “nova matriz econômica” da ex-presidente Dilma Rousseff jogou o Brasil na sua maior recessão e provocou seu impeachment.


O presidente Jair Bolsonaro está dando mais importância ao próprio achismo do que ao planejamento estratégico com base em estudos e pesquisas científicas, realizados para elaborar políticas públicas mais eficientes. As mudanças nas leis de trânsito, por exemplo, são eloquentes quanto a isso. A confrontação da legislação com seus resultados, em termos históricos e estatísticos, mostra que a política estava na direção correta ao desestimular o uso do automóvel e retirar das ruas os motoristas infratores contumazes. Não apenas devido aos indicadores de mortes violentas, mas também por causa do impacto físico e econômico dos acidentes de trânsito no sistema de saúde pública.

O mesmo raciocínio vale para a questão da liberação de venda, posse e porte de armas. O fato de o banditismo ter aumentado devido ao tráfico de drogas não justifica uma política que, em última instância, vai armar os mais violentos. O indivíduo que deseja ter uma arma em casa para se proteger numa situação específica é uma coisa: moradores de zonas rurais, por exemplo; outra, bem diferente, é o sujeito ter uma arma e portá-la nas ruas, simplesmente porque gosta de atirar e pretende fazê-lo se tiver motivação e oportunidade. A maioria dos especialistas em segurança pública é a favor do desarmamento da população. A política correta é desarmar os bandidos (como o nosso Exército fez no Haiti, por exemplo), não é armar quem gostaria de fazer justiça pelas próprias mãos. Além disso, a quebra do monopólio do uso da violência pelo Estado é um risco para a democracia, porque possibilita o surgimento de uma militância política armada, como no fascismo.

Há inúmeros exemplos de achismos desastrosos na condução de áreas específicas do atual governo. É o caso do meio ambiente, onde o desmantelamento da política de proteção ambiental já produziu índices alarmantes de desmatamento na Amazônia, além de reações internacionais à compra de produtos agrícolas brasileiros, por causa da liberação quase que indiscriminada da venda de agrotóxicos. A maior vítima do achismo, porém, é o Censo de 2020, cujo questionário foi enxugado pela nova orientação dada ao IBGE. A alteração da série histórica com relação a diversos indicadores de qualidade de vida da população é uma maneira de varrer para debaixo do tapete nossas desigualdades e iniquidades sociais e pode levar a erros estratégicos graves, com consequências colossais. Cinco dirigentes do corpo técnico do órgão já pediram demissão por causa disso.

As opiniões de pé de ouvido da “bancada da bala”, dos ruralistas e dos caminhoneiros têm mais peso no Palácio do Planalto do que décadas de estudos e pesquisas de cientistas e órgãos especializados, mesmo de estudos de estado-maior das Forças Armadas sobre temas estratégicos para a coesão nacional e o desenvolvimento do país. A última pérola do achismo é o “Peso Real”, a nova moeda que o presidente Bolsonaro anunciou que pretende criar em parceria com o presidente argentino Maurício Macri, que os técnicos do Banco Central (BC), de gozação, já estão chamado de “Sul Real”.

Brasil, sucesso de vendas


A Reforma da Natureza

Em A Reforma da Natureza, um dos livros da saga do Sítio do Pica-Pau Amarelo, Monteiro Lobato descreve como Emília, a partir de uma fábula contada por Dona Benta, se dispõe a mudar aquilo que ela julga estar errado na conformação da natureza. Tal como Américo Pisca-Pisca, o personagem da fábula, a boneca imagina alterar frutas, animais e tudo o mais e, na base da retórica inflamada e do voluntarismo, põe seu plano em marcha.

Pois Jair Bolsonaro parece ter se inspirado no método emiliano para decidir declarações e projetos de governo. Contra a tal “indústria da multa”? Aumentem-se os pontos para que se perca a carteira de motorista com 40, quiçá 60. Só faltou dizer que, liberados para correr, motoristas serão mais multados, e a tal arrecadação com multas pode subir.

O amigo Maurício Macri passa apuros na eleição argentina? Que tal dar uma forcinha reformando não a natureza, mas a moeda dos dois países? Mais! De todo o Mercosul. Assim como Emília rebatizou os bichos conforme sua conveniência, Bolsonaro também deu nome à sua moeda sonhada: peso real (que imediatamente virou surreal, porque os memes não perdoam).

Como se dará a sonhada integração monetária? Ele não sabe. Afinal, nosso reformador da natureza não entende de economia, como não se cansa de dizer. Mas acha, sabe-se lá baseado em que, que o peso real pode ser uma couraça para evitar a volta da esquerda aos países que o adotarem. Quase um amuleto.


O mais engraçado dos surtos de reformismo da natureza de Bolsonaro é que sempre há os acólitos desesperados para lhes conferir algum sentido. Então, no projeto da mudança nas regras de trânsito, os criativos passadores de pano viram um moderno liberalismo presidencial. Afinal (tentem acompanhar o raciocínio), não é função do Estado multar quem não colocar crianças em cadeirinhas, e deve ser interesse dos pais zelar pela segurança dos filhos.

Como se o trânsito fosse uma pista de autorama em que se controlam todas as variáveis e funcionasse no âmbito doméstico, em que as relações privadas – de fato – não carecem de regulação do Estado.

E para explicar para os liberais da brigada do Twitter – que diante de menções a John Locke ou Adam Smith perguntariam de que temporada de Game of Thrones eles eram – que os países com as economias de fato liberais do mundo têm leis de trânsito duríssimas simplesmente porque uma coisa não tem nada a ver com a outra?

Com a revogação do bom senso, lei número um da reforma da natureza bolsonarista, o óbvio deixa de ser assim tão óbvio. Como o fidalgo Visconde de Sabugosa, que tentava conferir alguma lógica às diatribes da Emília e tirá-la de enrascadas, ficam os providos de lógica no entorno presidencial tentando evitar o constrangimento de desmenti-lo ou minimizar o estrago de suas declarações. Nessa função se revezam os militares e os ministros que não duvidam que a Terra seja redonda, como Sérgio Moro, Paulo Guedes e Tarcísio Gomes de Freitas.

Já os entusiastas da reforma da natureza, que no reino bolsonarista às vezes ganha ares de cruzada pelos rabanetes ou qualquer outra bobajada ideológica, se sentem livres para voar diante dos inputs do chefe. O problema é que os arroubos desses reformadores não colocam abóboras no lugar de jabuticabas, como no sonho do Américo Pisca-Pisca da historinha da Dona Benta, mas religião, ideologia binária, vontade familiar e preconceito no lugar de dados, evidências, políticas públicas e pesquisas científicas.

É preciso que alguém convença o presidente que suas palavras e atos têm consequências. E que não se governa um País na base do achismo sem base concreta nenhuma.

A miséria invade as calçadas de São Francisco

As últimas cifras são do mês passado, embora nem fossem necessárias. O número de pessoas sem casa em São Francisco aumentou 17% nos últimos dois anos. A lista, elaborada por voluntários e serviços sociais, indica que há 8.011 pessoas vivendo nas ruas da cidade. Uma quantidade ainda muito inferior à de Los Angeles, a capital dos sem-teto nos Estados Unidos. Mas São Francisco é uma península (cercada por água) com 800.000 habitantes. Ou seja: de cada 10 pessoas que andam pela rua, uma não tem onde dormir.


A Prefeitura reagiu às cifras prometendo destinar mais cinco milhões de dólares (cerca de 20 milhões de reais) do orçamento aos serviços para os sem-teto. Mas isso não era nenhuma surpresa. Faz alguns anos que a chuva de milhões que cai sobre a pequena cidade da baía deixou milhares de vítimas colaterais nas ruas, tornando o combate contra a miséria uma prioridade política inevitável. O orçamento do novo governador da Califórnia, Gavin Newsom, apresentado na semana passada, prevê nada menos que um bilhão de dólares (quatro bilhões de reais) para abordar o problema.

Um dos grandes nomes do Vale do Silício, Marc Benioff, fundador da Salesforce, prometeu no último mês 30 milhões de dólares (120 milhões de reais) para projetos contra a pobreza aguda. O anúncio de uma taxa específica para lutar contra a miséria, em novembro passado, provocou a ira das grandes empresas de tecnologia (acabou sendo aprovada nas urnas). A Prefeitura quer construir o que chama de Navigation Centers, lugares de serviços integrais para os sem-teto. Mas esbarrou na oposição dos moradores de uma cidade onde uma casa custa em média 1,6 milhão de dólares (6,4 milhões de reais), e ninguém quer que a sua própria seja desvalorizada. A situação gerou uma verdadeira sensação de urgência política.

Pelas ruas, veem-se os novos banheiros portáteis instalados pela Prefeitura, pois a situação nas calçadas é também um problema sanitário. É normal observar seringas, fezes e preservativos a poucos passos das ruas mais turísticas da cidade. “Certamente é uma preocupação”, afirma por telefone Cassandra Costello, encarregada da comunicação do São Francisco Tourist Board, o lobby turístico da cidade. “É a principal preocupação expressada pelas pessoas que visitam São Francisco”. Costello diz que ainda não se observa um impacto no turismo, já que em 2018 foram registrados recordes no número de visitantes e no dinheiro gasto na cidade. “São Francisco tem uma taxa de retorno de 96%”, afirma.

Em todas as maiores cidades dos EUA existe miséria extrema, mas é preciso procurá-la. Em São Francisco, uma península sem escapatória, a miséria é vista em toda esquina, incluindo nas zonas mais turísticas. São duas a tarde de um dia de maio e, na esquina das ruas Mission e 16, dois jovens enchem uma seringa agachados contra uma parede. Não se escondem, estão na calçada, e ao lado deles a vida continua normal – passam estudantes e até bebês em carrinhos. Do outro lado do quarteirão há uma escola primária e, a poucos passos dali, bares e restaurantes que estão na moda. A cerca de 20 minutos a pé ficam a sede do Uber e a Prefeitura, na rua Market, a artéria de São Francisco por onde passam ao redor de 25 milhões de turistas por ano.

A poucos passos dos jovens com a seringa, Orlando Webb, um homem que leva todos os seus pertences num cesto de lixo, improvisa um sanduíche e encolhe os ombros quando lhe perguntam por seus vizinhos de calçada. Webb, de 56 anos, poderia ser qualquer desses milhares de novos desabrigados. A morte de sua mãe, único familiar que lhe restava, além de um gasto inesperado e da perda do emprego como supervisor na empresa ferroviária, deixaram Webb sem recursos suficientes nem para alugar um quarto. Ele gastou 9.000 dólares (36.000 reais) em motéis tentando evitar a rua durante meses. Queixa-se do nervo ciático e da perda de dentes. Nenhuma esmola vai tirá-lo daqui. “Não se trata de dinheiro. Basta ter uma oportunidade”, diz Webb.

Ele vive no distrito de Mission, a histórica zona ao sul do centro, um antigo bairro de artistas e famílias que se transformou num dos grandes laboratórios da gentrificação extrema na costa da Califórnia. “Nos últimos 10 anos, houve um deslocamento das pessoas de baixos recursos” dessa região, explica Ruth Núñez, diretora de serviços prestados aos sem-teto pelo Mission Neighborhood Health Center, um centro onde essas pessoas podem descansar e lavar a roupa de dia. A instituição ajuda a providenciar lugares onde elas podem comer e dormir.

O perfil que Núñez encontra entre os que procuram sua ajuda não é o de marginalizados ou com problemas mentais, que também existem, mas “pessoas que viveram aqui a vida toda e passaram por algo em determinado momento”, terminando na rua. “Vemos famílias e adolescentes nos albergues.” Nem sequer seriam pobres em outro lugar. “Muitos dos que vêm aqui têm trabalho, mas não têm casa”, diz Núñez. Em outras cidades eles teriam algum lugar para onde se mudar. Em São Francisco, não.

Há dois anos, Núñez voltou a trabalhar em São Francisco depois de uma década morando fora. “Não reconhecia [o bairro] Mission”, diz. “Na rua Valencia havia lojinhas e restaurantes familiares. A maioria desapareceu. Gente que nasceu no bairro já não pode morar aqui, enquanto alguns dos apartamentos novos estão vazios. É imoral.”

“São Francisco é uma cidade que expulsou os pobres na última década”, afirma. “As empresas de tecnologia pagam enormes salários aos seus funcionários” e distorceram completamente o mercado imobiliário. Logo que pode, um proprietário expulsa inquilinos da vida inteira para multiplicar sua renda ou vender o edifício e fazer apartamentos novos onde o aluguel mensal de um quarto gira em torno de 3.600 dólares (14.400 reais). Núñez recomenda observar também o que acontece em outros lugares. “Oakland e Berkeley estão na mesma situação. É uma crise de toda a baía”. O trabalhador normal da cidade já não mora nela. As pessoas estão se mudando para Vacaville, 80 quilômetros ao norte, diz Núñez.

“O problema dos sem-teto em São Francisco não é novo”, afirma a diretora. O que acontece, segundo ela, é que já não restam edifícios de aluguel baixo para morar, nem praticamente nenhum lugar sem urbanizar. “Nos lugares onde antes ninguém queria viver agora há apartamentos que custam milhões de dólares”, afirma. Não apenas há mais pessoas sem casa; elas “já não têm onde se esconder.”

São Francisco está se tornando a versão mais extrema, ou pelo menos a mais óbvia, da desigualdade nos EUA, onde uma das maiores concentrações de fortunas do Ocidente convive nas ruas com uma miséria atroz. “Acredito que seja uma crise de todo o país, onde as pessoas que têm dinheiro estão bem e as demais podem ficar sem casa a qualquer momento.”

Um país dividido

Os governos petistas acostumaram o País à divisão. Foi o célebre “nós” contra “eles”, os “progressistas” contra os “conservadores”, além de outras versões da acepção do político enquanto distinção entre amigo e inimigo. Apesar de estes governos terem tido, na prática, uma política de negociação e, mesmo, de corrupção com os mesmos “conservadores” e “eles” tão vilipendiados, a narrativa dominante foi a do combate incessante. No imaginário nacional, prevaleceu a narrativa da guerra política, até ela ser desmontada pela Operação Lava Jato, ao expor as entranhas destes compromissos. É esta narrativa, aliás, que continua a nortear o PT ao colocar o ex-presidente, julgado e condenado, como “vítima” e “perseguido” político.

O curto mandato do presidente Temer caracterizou-se por uma acepção do político diferente, voltada para a negociação e a pacificação. Foi evitado qualquer confronto que pudesse pôr em questão a estabilidade institucional, por meio de diálogos e compromissos. Tornou-se, assim, possível realizar um ousado projeto de reformas de cunho liberalizante, que colocou o Brasil num novo patamar, tendo faltado o seu desfecho na reforma da Previdência, torpedeada por aqueles mesmos que procuravam manter os seus privilégios. Serviu de álibi a luta “salvacionista” contra a corrupção, embora nada tenha sido provado. Os efeitos midiáticos, porém, foram enormes.

A campanha do atual presidente Bolsonaro, por sua vez, caracterizou-se por uma retomada da acepção do político enquanto contraposição entre amigo e inimigo, construindo uma narrativa de luta contra a “esquerda”, sob as suas várias significações derivadas do politicamente correto. Retomou os valores conservadores que foram brandidos contra os supostos progressistas, insistindo num combate sem tréguas que continua a se desenvolver no novo governo. Interessante observar que o cenário eleitoral foi de tal maneira construído que o governo Temer foi eleitoralmente considerado enquanto inexistente. Isso por uma razão bem simples. A “nova política” precisava de um inimigo e nada melhor para isso do que Lula e o PT. A narrativa estaria, assim, bem ancorada.

Contudo, o novo governo está retomando em seu perfil econômico as linhas-mestras do governo Temer. Parte de seus pressupostos, como a reforma trabalhista, o teto dos gastos públicos e o projeto de concessões de aeroportos, agora realizado segundo as condições elaboradas no governo anterior. Destaque-se, aqui, que um dos não menores méritos do governo Temer consiste em ter tornado transparente a crise fiscal e, em particular, o caráter imprescindível da reforma da Previdência. Se hoje há clareza sobre isso, o crédito deve ser atribuído ao ex-presidente.

A dificuldade maior do atual governo consiste em ter retomado como regra de ação o combate ao inimigo, espraiando-se essa orientação não apenas à oposição, mas a todos os que dele divergem, sem que se saiba ao certo quem são “aqueles” que são tidos por divergentes. Explico. As divergências maiores, que adquiriram contornos agudos, residem dentro do próprio governo e entre os seus aliados potenciais, que nada têm de simpatizantes da “esquerda”. Foram as lutas incessantes entre “olavistas” e “militares”, com estes sendo objeto de uma campanha de difamação nas redes sociais. Foram igualmente os embates contra a “velha” política, contra aliados potenciais que passaram a ser vistos como inimigos.

Torna-se uma missão quase impossível governar com tal fratura no interior mesmo do governo, sobretudo por estar baseado numa forte presença militar. Se até eles vieram a ser chamados de “comunistas” ou outros nomes considerados como impróprios, nem faltando os piores palavrões, é porque uma unidade de ação não consegue ser construída. Note-se que o apaziguamento destas últimas semanas fez com que o governo conseguisse avançar tanto na comunicação com a opinião pública, transmitindo uma imagem de estabilidade, quanto na construção de negociações que viabilizem a reforma da Previdência. O presidente Bolsonaro soube colocar-se acima das disputas, pondo-lhes um término, e não atuando enquanto parte delas. Seria fundamental para o País que persista nesta via.

A narrativa do confronto está sendo também substituída pela da negociação com parlamentares e partidos, o que pressupõe que estes deixem de ser considerados como representantes da “velha política”. É totalmente incompatível considerar parlamentares enquanto inimigos e, ao mesmo tempo, como parceiros de negociação em prol do bem do País. Ou se negocia ou se elimina o “inimigo”. Não é possível manter juntas ambas alternativas. Isto é, não há como avançar uma pauta econômica liberalizante se a narrativa for a de inviabilizar uma mesma negociação necessária. A vida democrática tem como condição o diálogo incessante entre o Executivo e o Legislativo, este último não podendo ser tido por inimigo.

O Brasil só caminhará decisivamente rumo às reformas necessárias se a política for a do apaziguamento. A pauta econômica não avançará se tiver como pressuposto político uma concepção que inviabilize a própria negociação parlamentar. Os impasses destes primeiros meses de governo, em muito, se devem a essas contradições, que estão levando o Brasil à paralisia. Não é demais atentar para o fato de que o desemprego é elevadíssimo, o PIB foi negativo no último trimestre e há um desalento e uma falta de expectativas crescentes. Não dá para brincar de fazer política tendo como pano de fundo um cenário social deste tipo.

Os sinais são auspiciosos de que a reforma da Previdência será aprovada em curto prazo no plenário da Câmara dos Deputados. Espera-se que isso se confirme, sob pena de o País sofrer mais uma vez. E isso está sendo agora possível graças a uma redução visível da alta combustão política. Se o presidente perseverar nesta via, o novo governo dirá, então, ao que veio.

Paisagem brasileira

Canto de praia com canoas em Niterói, Mauro Ferreira

Na briga sobre Previdência dos Estados e municípios, você entra com o bolso

Os governadores começaram a sair do armário no debate sobre a reforma da Previdência. Num par de cartas, posicionaram-se a favor da manutenção de Estados e municípios na proposta em tramitação no Congresso. Alguns defendem ajustes no texto. O problema é que a grossa maioria dos governadores ainda não arregaçou as mangas para conquistar os votos dos parlamentares dos seus respectivos Estados.

Ao apoiar a reforma apenas por carta, esses governadores passam a sensação de que desejam assistir ao espetáculo com o distanciamento de estudiosos acadêmicos. O diabo é que o buraco da Previdência dos Estados, que roça os R$ 100 bilhões anuais, já não permite aos governadores observar a cena conflagrada do Legislativo como se nada fosse com eles. Incomodados, os parlamentares continuam dispostos a retirar os servidores estaduais e municipais da reforma previdenciária.

Com isso, governadores e prefeitos seriam obrigados a providenciar seus próprios ajustes, imprimindo suas digitais em projetos de ajuste enviados aos legislativos locais. O pano de fundo desse jogo de empurra é a eleição de 2022.

Convém prestar atenção nesses governadores que tratam de Previdência mais ou menos como o sujeito que quer pregar um prego sem se machucar e segura o martelo com as duas mãos. Não se deve descuidar também de parlamentares que reclamam da pressão política como comandante de navio que se queixa da existência do mar.

Você talvez imagine que esse assunto não tem nada a ver com o seu café com leite. Engano. Nessa briga, os políticos entram com o cinismo e a hipocrisia. E você entra com o bolso que vai cobrir o rombo previdenciário dos estados e municípios se eles ficarem de fora da reforma.

Egoísmo tapa todos horizontes

O mal e o remédio estão em nós. A mesma espécie humana que agora nos indigna, indignou-se antes e indignar-se-á amanhã. Agora vivemos um tempo em que o egoísmo pessoal tapa todos os horizontes. Perdeu-se o sentido da solidariedade, o sentido cívico, que não deve confundir-se nunca com a caridade. É um tempo escuro, mas chegará, certamente, outra geração mais autêntica.

Talvez o homem não tenha remédio, não tenhamos progredido muito em bondade em milhares e milhares de anos sobre a Terra. Talvez estejamos a percorrer um longo e interminável caminho que nos leva ao ser humano. Talvez, não sei onde nem quando, cheguemos a ser aquilo que temos de ser. Quando metade do mundo morre de fome e a outra metade não faz nada... alguma coisa não funciona. Talvez um dia!
José Saramago

Bolsonaro e Guedes demonstram uma irresponsabilidade que surpreende o país

O hoje acadêmico e imortal Edmar Bacha ganhou notoriedade em sua carreira de economista por criar a expressão “Belíndia”, ao descrever a realidade brasileira, quando escreveu um artigo assinalando que o regime militar estava dividindo o país entre os que viviam em condições similares às da Bélgica e aqueles que tinham padrão de vida da Índia. Era e ainda é uma realidade social que não pode ser contestada, porque perdura até hoje e tão cedo não sofrerá transformação.

É evidente que manter uma Belíndia em caráter permanente tem contraindicações, embora possa ser altamente benéfico para as elites empresariais belgas, que enriquecem à custa dos baixos salários pagos aos trabalhadores indianos, e também para a nomenklatura estatal belga, que é generosamente sustentada com altas remunerações e mordomias bancadas pelos contribuintes de dupla nacionalidade, que em sua esmagadora maioria são muito mais indianos do que belgas.


É nessa esculhambação social que vivemos. Quem tem dinheiro, vai “morar lá fora”, como já ameaçou fazer justamente o ministro que deveria melhorar as condições de vida aqui dentro. Aliás, não está no gibi o número de falsos belgas hoje vivendo no exterior, mas sustentados com dinheiro ganho aqui, graças ao trabalho dos falsos indianos. Na verdade, esses elitistas nem são mais brasileiros. Julgam-se cidadãos do mundo, nem reparam o papel ridículo que fazem.

Quem realmente gosta do Brasil tem de encarar essa realidade, cuja primeira contraindicação é a insegurança. Evidentemente, não é possível tentar conviver a miséria absoluta e a riqueza total. Não há possibilidade de coexistência pacífica, abre-se uma guerra civil não-declarada.

Sem haver Polícia nem cadeia para tantos criminosos de colarinho branco ou pé de chinelo, quem acaba encarcerado é o pessoal da classe média, a grande vítima que mora atrás de muros e grades, enquanto as elites e a nomenclatura circulam alegremente, porque têm carros blindados e seguranças privados ou estatais.

Acreditava-se que Bolsonaro tivesse sido eleito para resolver isso e unificar o país. Cinco meses depois, percebe-se que foi um engano. Ele não tem noção de suas obrigações presidenciais, e o militares que o cercam não demonstram coragem para chamá-lo à razão, simplesmente se adaptaram à situação.

Ainda há quem acredite em Bolsonaro, mas é ilusão. Ele vive rindo, como se interpretasse o personagem “Cândido”, com o ministro Guedes perfeito no papel do “professor Pangloss”, dizendo que os dois estão no melhor dos mundos, que o genial Voltaire adorava ridicularizar.

Não existe um projeto Brasil – aliás, jamais houve, desde o regime militar. Quando Carlos Lessa assumiu o BNDES no governo Lula, pediu o programa econômico do PT, e não existia. Junto com seu vice Darc Costa, o criativo Lessa criou um projeto e um dos destaques era a indústria naval. A economia reagiu. Ao deixar o governo, Lessa avisou a Lula que seria “um voo de galinha”. Mas Lula era como Bolsonaro e nada entendia de economia.

Quanto seu chocolate encareceria sem trabalho infantil?

Qual é o preço que os consumidores deveriam pagar para eliminar o trabalho infantil da cadeia de produção dos deliciosos tabletes de chocolate? Dois economistas norte-americanos calcularam quanto o preço do cacau teria que aumentar para que continuasse gerando a mesma renda a seus produtores sem a necessidade de empregar crianças, que são mais baratas e manejáveis: 2,8%. Esse é o preço de tirar um menor da escola para que vá trabalhar na lavoura.

Jeff Luckstead e Lawton L. Nalley conceberam um modelo econômico para calcular o impacto deste comércio mais justo sobre o preço final. "Desenvolvemos um modelo de lar rural, em que a renda é gerada pelo cultivo de cacau. Para este trabalho, o lar pode usar o tempo dos adultos, o das crianças ou o de trabalhadores contratados", diz Luckstead. Estes 2,8% se referem ao aumento resultante após eliminar as formas de trabalho infantil mais "extremas" (que incluem tarefas perigosas ou implicam mais de 42 horas semanais). Suprimir as tarefas "normais" (jornadas de 14 a 42 horas semanais) elevaria o preço em 12%, ao passo que desligar por completo os menores da produção de cacau (jornadas nunca superiores a 14 horas semanais) faria o produto aumentar 47%. A Organização Internacional do Trabalho estabelece estas três diferenças refletindo critérios de duração da jornada de trabalho e a periculosidade das tarefas. A pesquisa foi divulgada na revista Plos One.

"As discussões sobre o preço do cacau e de outros produtos básicos são complexas, mas necessárias. Proporcionar um preço justo ao agricultor pode ser um ponto de partida crucial para enfrentar a pobreza e o trabalho infantil. No entanto, este não é o único problema a ser abordado. O acesso a serviços de qualidade, como educação, saúde e registro de nascimentos, é igualmente importante", diz Muhammad Rafiq Khan, do escritório do UNICEF em Gana.

Economistas desenvolveram seu modelo no contexto de Gana, o segundo maior produtor de cacau (20% do total mundial), que emprega diretamente dois milhões de pessoas. "O modelo que adotamos poderia ser adaptado a outras situações, mas, dependendo do tema e do mercado, seria preciso fazer modificações", ressalva o pesquisador.

Neste país da África Ocidental, o UNICEF estima que existam cerca de 200.000 crianças trabalhando no setor em condições muito duras. Toda a região da África Ocidental é responsável por 70% da produção mundial de cacau, um setor que emprega 2,2 milhões de crianças, de acordo com o CacauBarômetro de 2018, um relatório de 15 ONGs europeias. No topo está a Costa do Marfim, país que contribui com 40% deste produto.

O Governo de Gana lançou em 2017 um plano para reduzir esses números. "Temos de abordar as situações de pobreza que levam as famílias a depender da renda que as crianças podem trazer e mudar as percepções sociais que consideram o trabalho infantil como normal, aceitável ou mesmo necessário", diz Blanca Carazo, chefe de programas do Comitê Espanhol do UNICEF.


"São mão de obra barata, obediente, muito rentável e, para muitas famílias, a única alternativa para sobreviver", complementa David del Campo, diretor de Cooperação Internacional da Save the Children. No total, 30% das crianças de Gana abandonam o ensino primário e 15% nunca puseram os pés em uma escola, segundo dados da Unesco.

"É extremamente difícil aplicar a lei do trabalho infantil sem empurrar as famílias para a pobreza, e é por isso que criamos esse modelo, porque os lares que dependem do cacau estariam mais dispostos a reduzir essas práticas se isso não implicasse uma sobrecarga financeira. Além do mais, os consumidores querem produtos obtidos eticamente, incluindo o cacau", explica um dos autores do estudo.

A pesquisa se insere no Cocoa Livelihood Program, um projeto da Fundação Mundial do Cacau, patrocinado pela Fundação Bill e Melinda Gates e destinado a melhorar as condições de vida de mais de 200.000 pequenos agricultores na África Subsaariana, por meio de capacitação, a diversificação de cultivos e a organização dos agricultores. "Tradicionalmente, o sistema tem focado seus esforços na resposta (isto é, retirando as crianças do trabalho infantil), mas as evidências mostram que uma abordagem mais abrangente e preventiva, que contemple mais poder econômico, o desenvolvimento, a educação e a proteção infantil, é mais eficaz", enfatiza Rafiq Khan.

A pesquisa não analisa se os consumidores estariam dispostos a assumir esse aumento de preço e quais mecanismos de controle teriam que ser estabelecidos para garantir que o aumento se traduza de fato na redução do trabalho infantil. "Seria necessário acompanhar essa medida de intervenções para a mudança social e com mecanismos de proteção que não dependam do mercado ou da produção", diz Carazo. "Também temos que pôr a ênfase nos produtores que compram o cacau para fabricar seus produtos e que, às vezes, se baseiam em relações comerciais abusivas. São eles que exigem que os agricultores continuem a produzir mais a baixo custo", diz Del Campo.

O coautor do estudo cita um fato interessante: "Se for bem-sucedido em reduzir ou eliminar as piores práticas de emprego infantil, o Conselho de Comercialização do Cacau de Gana poderia rotular seu produto como livre de trabalho infantil, o que diferenciaria seu cacau do de outros países e melhoraria sua comercialização".