quarta-feira, 6 de maio de 2020

Jogo de assombrações

Sabe-se, com certeza, apenas que golpe não é. Mas não se conhece o significado real da invocação do presidente Jair Bolsonaro às Forças Armadas, cujo apoio ele alardeia para ameaçar, exatamente, com o golpe.

Os comandos militares não atendem ao convite à intervenção consentida. Este é o modelo reclamado nos domingueiros e violentos piqueniques golpistas da Praça dos Três Poderes. As manifestações, animadas pelo presidente, sua família e amigos, descomprometidos com a civilidade, alimentam falsa tensão política.

Desviam, com crueldade, o foco da dura e letal realidade da pandemia que mata brasileiros e brasileiras. Até que ponto não passa de blefe o compromisso incondicional da força militar que o presidente propaga?

Os escalões profissionais das Forças pretendem manter-se no papel constitucional que cumprem, à risca, há décadas. Para o que pretende Bolsonaro, aí está o problema.

Por enquanto, ainda não se cansaram de redigir notas reafirmando a observância rigorosa das atribuições constitucionais. É um texto esperado, que surge sempre em seguida às manifestações de que participa o presidente, à frente de um grupo de fanáticos. Assim, de ameaça em ameaça, e explicação em explicação, o suspense é mantido. Por mais que se reúnam com Bolsonaro nas vésperas dos atos extremistas, permitindo-lhe mostrar força, os militares não parecem dispostos ao papel de algozes da democracia.


Reforça o enredo do terror o fato de terem quadros e indicações para todas as funções. Hamilton Mourão, Braga Neto e Fernando Azevedo constituem praticamente uma “junta” natural. Luiz Eduardo Ramos, da ativa, é regra três para assumir o comando da tropa, em substituição a Edson Leal Pujol. Apesar do seu veemente desmentido, a notícia de que daria a rasteira já havia cumprido seu objetivo de confundir. Em evidente relevância aos temores lançados nos comícios em que paira a ameaça de intervenção militar. Tudo se encaixa, nada é por acaso. Se a interpretação é exagerada, o que significam as insinuações de Bolsonaro de que dispõe dos militares para o que der e vier?

Selecionemos duas hipóteses de explicação adequadas à conduta do presidente. Numa, é possível concluir que os militares são vítimas e estão sendo provocados para aceitarem se engajar nas esquisitices do governo. Embora não estejam dispostos a tudo, não têm meios para reagir às pressões públicas de Bolsonaro.

Como resistem, ficam na mira. De quem? Do Gabinete do Ódio, o operador oficial, de dentro do Palácio, desse tipo de enredo. Atua sempre sob o comando do filho vereador e do professor virtual que, de Richmond, tutela o governo, em Brasília.

Bem-sucedido, o grupo já conseguiu, para ficar apenas no tema em questão, demitir Santos Cruz, abalar Hamilton Mourão, denegrir Rocha Paiva (melancia), irritar Villas Boas, e iniciar, agora, uma guerra contra Pujol. Acham que ele não atua politicamente e não coloca sua tropa a serviço do interesse do governo. Confiam que, se não conseguirem arrastar o comandante para o embate político, pelo menos promovem a divisão, pois consideram os escalões intermediários já engajados na dialética presidencial. Provocar a cizânia na tropa é o pior dos ataques a um comando militar.

Uma segunda hipótese, de significado também realista, mostra o presidente atormentado por inquéritos que o colocam, bem como a sua família, no alvo da incursão em crime. Ameaçado, ele ameaça.

E o que acossa Bolsonaro são, sobretudo, as investigações em três frentes: as das fake news, cujo aprofundamento pode retroagir a sua eleição; a dos gabinetes parlamentares controlados pela família e suas conexões, no Rio; e a das denúncias do ex-ministro Sérgio Moro.

De assombrado, Bolsonaro partiu para cima e virou assombração.

Pensamento do Dia


Presidência obcecada

A frase síntese dita pelo presidente - “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma” - é reveladora da obsessão de interferência na Polícia Federal, mas não só. Mostra uma Presidência insana. Todos os graves assuntos de Estado para serem enfrentados, mas Jair Bolsonaro tinha uma preocupação. Era março, quando ele disse isso. A pandemia já estava infectando brasileiros. Em abril, quando ela se espalhou como uma grande tragédia humana, Bolsonaro aumentou a intensidade da pressão para nomear, a qualquer custo, o superintendente da PF no Rio de Janeiro.

No relato do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, o que impressiona é o conjunto e o contexto. O presidente briga, é capaz de derrubar uma peça-chave de seu governo, para escolher o superintendente da PF no Rio. Enquanto os governadores e prefeitos decidiam pelo isolamento social, construíam hospitais de campanha, ampliavam o número de UTIs, tentavam encontrar respiradores em qualquer lugar do planeta, as empresas doavam, as pessoas se mobilizavam, os profissionais da saúde iam para o campo de batalha, alguns para morrer, o que fazia o presidente do Brasil? Ofendia governadores, fritava o ministro da Saúde, encurralava o ministro da Justiça, participava de manifestações contra a democracia e continuava querendo interferir na Polícia Federal.

As versões do presidente para os fatos não ficam em pé. Ele diz que buscava apenas relatórios de inteligência na Polícia Federal. Ele sabe a esta altura do mandato a diferença de inteligência policial e inteligência estratégica. O presidente tem a Abin que dá informação de inteligência estratégica. Faz parte do SISBIN, Sistema Brasileiro de Informações.

Todos alimentam esse sistema, inclusive a Polícia Federal. Tudo deságua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que manda relatórios diários para a Presidência. Neles, se pode saber antecipadamente os riscos de fatos como, por exemplo, uma pandemia, para agir preventivamente. Somente ontem, a propósito, mais 600 brasileiros perderam a vida. Um perito no assunto me explicou que “quando a inteligência policial produz algo de interesse estratégico para o Estado, isso é pinçado pelos analistas da Abin para o relatório ao presidente”. E ele conclui: “Mas o presidente da República não tem nada com a inteligência policial”, ou seja, a parte investigativa, judiciária. Ele não tem que ter acesso a uma investigação da polícia judiciária.

Bolsonaro parecia naquele lamurioso pronunciamento, do dia 24 de abril, ter sido surpreendido pela demissão de Moro apresentada numa coletiva à imprensa. Ofendido com a “traição”. O relato circunstanciado de Moro mostra que o presidente já sabia que a saída dele era fato consumado, inclusive porque ele, Bolsonaro, o jogou para fora do governo.

Enquanto Bolsonaro trava uma guerra contra o seu ex-ministro, na economia, as notícias vão de mal a pior. A produção industrial despencou 9,1% em março, vindo abaixo do esperado, com uma queda de 3,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Nesse tipo de comparação, foi o quinto recuo consecutivo, o que mostra que o setor já não vinha bem muito antes da chegada do vírus. No início da noite, a Fitch, uma das três maiores agências de rating do mundo, colocou sob viés negativo a nota do governo brasileiro. Disse que houve piora dos quadros econômico e fiscal, e citou a renovação da crise política, “incluindo as tensões entre o executivo e o congresso e as incertezas sobre a duração e a intensidade da pandemia de coronavírus”. O Brasil atualmente é classificado pela agência como BB-, a três degraus do grau de investimento. Agora, está mais próximo de um novo rebaixamento.

Moro não pode se dizer surpreso. Foi para o governo Bolsonaro sabendo que seu ex-chefe jamais fora um combatente anticorrupção, que viveu anos em partidos cujos integrantes ele mesmo condenou. Quando Moro diz que não está acusando o presidente de crime, ele está se protegendo no campo que entende muito bem. Mas que crime o presidente pode ter cometido, isso dependerá da capacidade de investigação da Polícia Federal. Os ministros terão que depor e, ao contrário do presidente, não têm o direito de fazê-lo por escrito. A propósito, me disse ontem um procurador, essa prerrogativa do presidente nem deveria existir.

“Depoimento tem que ser oral.” Hoje, Bolsonaro é um homem acuado. Só resta a ele a grosseria de mandar a imprensa calar a boca. Não será atendido.

O poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos

Alexandre O'Neill, "Abandono Viciado"

Justiça põe a nu o governo bolsonaro. E o que se vê é muito feio

Diz a lei que ninguém é obrigado a produzir provas que o incriminem. Ou o presidente Jair Bolsonaro não conhece a lei ou decidiu contrariá-la para ajudar a esclarecer o que de fato houve quando ele tentou intervir na Polícia Federal, provocando por tabela a saída do governo do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

De volta do expediente no Palácio do Planalto, no cercadinho à entrada do Palácio da Alvorada onde costuma confraternizar com seus devotos e mandar jornalistas calarem a boca, Bolsonaro sacou do seu celular e mostrou um fragmento de mensagens trocadas por ele e Moro. Ocorre que o que ele mostrou dá razão ao ex-juiz.

Moro disse em depoimento à Polícia Federal que Bolsonaro lhe enviara notícia publicada sobre um inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal para apurar malfeitos de um grupo de deputados aliados dele. E ao comentar a notícia, escreveu que era por isso que chegara a hora de trocar o diretor-geral da Polícia Federal.

Por que Bolsonaro assinou embaixo da acusação que, se provada, poderá servir para que o Procurador-Geral da República o denuncie pelos crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de Justiça e corrupção passiva? Sabe-se lá! Bolsonaro é seu maior inimigo.

Cadê a gravação em vídeo e áudio da reunião ministerial de 22 de abril passado? Só falta a gravação ter desaparecido, como Queiroz. Ou aparecer faltando trechos. O ministro Celso de Mello, do Supremo, deu um prazo de 72 horas para que uma cópia fiel da gravação lhe seja entregue pelo governo. Nem uma hora a mais.

Foi nessa reunião, segundo Moro, na presença de várias testemunhas, que Bolsonaro afirmou que se não pudesse trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio, trocaria o diretor-geral e o próprio ministro da Justiça. Desde agosto de 2019 que ele cobrava a Moro a substituição. Queria pôr ali um delegado de sua confiança.


A razão disso? Foi o próprio Bolsonaro, outra vez, que se complicou ao explicá-la ontem: “O Rio é o meu Estado. O Rio é meu Estado. Eu fui acusado de tentar matar [a vereadora] Marielle Franco, quer algo mais grave? A Polícia Federal tem que investigar. Por que não investigou com profundidade?”. Não, ele não foi acusado.

Talvez tema, um dia, ser. Investigados são os seus filhos Carlos, o Zero Dois, e Flávio, o Zero Um. E não pela morte de Marielle, mas por ligações com milicianos e apropriação criminosa de parte dos salários pagos a servidores públicos empregados em seus gabinetes na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio.

Em março último, Moro ouviu de Bolsonaro quase em tom de súplica: “Você tem 27 superintendentes [da Polícia Federal]. Eu quero apenas 1, o do Rio”. À época, Moro já fora avisado por Bolsonaro que o futuro diretor-geral da Polícia Federal seria o delegado Alexandre Ramagem, que cuidara dele depois da facada.

Só não foi porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, suspendeu a posse. Mas Ramagem indicou para substitui-lo o delegado Rolando Alexandre de Souza, seu braço direito na Agência Brasileira de Inteligência. E a primeira coisa que Rolando fez foi trocar o superintendente do Rio. Como Bolsonaro queria.

O autogolpe

O depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à Polícia Federal é como aqueles aftershocks, pequenos tremores de terra que acontecem depois de um grande terremoto, que foi o seu pedido de demissão do ministério da Justiça e Segurança Pública.

O terremoto tirou o chão do presidente Bolsonaro, que desde então está desvairado, sem controle de si e dos acontecimentos, que se sucedem sem que se possa saber aonde nos levarão.

Mas o aftershock, se não tiver o poder de provocar uma denúncia contra Bolsonaro, pela pouca disposição aparente do Procurador-Geral da República Augusto Aras, tem força política para desgastá-lo mais ainda.


Evidente a intenção de Bolsonaro de controlar a Polícia Federal do Rio, e seria óbvio que a investigação dos procuradores de Aras fosse na direção desses interesses, num Estado que é a base eleitoral dos Bolsonaro e tem sérios problemas de segurança pública, de crime organizado e milícias, público alvo da família presidencial em termos eleitorais. 

Se o ex-ministro Moro não acusou Bolsonaro de crimes em seu depoimento, eles estão tão evidentes que o próprio Procurador-Geral os elencou quando pediu a abertura do inquérito. Caberia a ele investigar um a um para ver se ocorreram: obstrução de justiça, falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção passiva.

Na verdade, o único crime de deveria ser descartado seria o de denunciação caluniosa incluído contra Moro. Mas o depoimento é uma bomba política, que só desmoralizará quem não quiser investigar. O presidente Bolsonaro parece saber exatamente o que pode ser descoberto em uma investigação criteriosa, não apenas nesse inquérito, como nos dois outros que correm no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre fake news e manifestações antidemocráticas.

A gritaria com que atacou os jornalistas ontem pela manhã na frente do Palácio da Alvorada mostra uma pessoa completamente desesperada, sem noção do que sejam instituições, nem a real separação de poderes e o papel de cada um deles. Não admite que o STF tenha a palavra final, mas tem. Descontrolado, conta com a leniência de militares inclusive da ativa, que trabalham com ele.
Toda vez que passa dos limites, o ministério da Defesa dá uma nota oficial colocando as coisas no seu devido lugar, mas sendo condescendente com o presidente, considerando que as manifestações são atividades políticas, e a livre expressão tem que ser protegida.

Mas não se pode proteger quem pede o fim da democracia. Isso não é política, é tentativa de golpe. Assim como a lei não deixa defender o nazismo em praça pública, não se pode defender intervenção militar.

Certos grupos militares têm tanto medo do comunismo que aceitam a ideia de que a atuação de Bolsonaro é no sentido de enfrentar comunistas, para não deixar o PT voltar ao poder, e assim vamos indo a uma situação limite.

Vai chegar o dia em que as notas oficiais dos militares serão dispensáveis, por não terem efeito prático no comportamento do presidente Bolsonaro. Não vejo no mundo ambiente para um golpe militar tradicional, mas constato que Bolsonaro está constrangendo os poderes que o limitam, com a compreensão de militares.

Tudo o que o Congresso faz é contra ele, no STF a mesma coisa. A imprensa profissional independente virou saco de pancadas de Bolsonaro e seu acólitos. Temo que Bolsonaro esteja indo para um caminho tipo Chavez na Venezuela, não botando tanque na rua, mas tentando controlar o STF, o Congresso e a imprensa.

Está cooptando o centrão, com métodos que já se mostraram prejudiciais ao país e à democracia, para tentar eleger o próximo presidente da Câmara ano que vem, na substituição de Rodrigo Maia, que tem sido um garantidor da independência da Câmara. 

Se conseguir, unindo o centrão e outros que certamente aderirão - porque o poder atrai - pode controlar a Câmara pelos métodos da velha política. O presidente do STF, Dias Toffoli tem uma posição muito conciliadora com ele. Com a desculpa de querer agregar, fazer acordo para preservar a “governabilidade”, vai aceitando os avanços de Bolsonaro, que já cometeu crimes suficientes para ser impedido. Impeachment é solução democrática para evitar um autogolpe.

República Troglodita do Brasil


Emergência e fricção

Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.

Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situação como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.

Os números revelados até ontem são eloquentes: 7.321 mortes e 107.780 casos confirmados, dos quais 32.187 em São Paulo, com 2.654 mortes. Com a subnotificação, calcula-se que o número de pessoas contaminadas no país pode se aproximar de 1 milhão. Uma conta simples, usando como base o índice otimista de que 3% necessitarão de internação, projeta uma demanda próxima de 30 mil vagas em leitos hospitalares nos próximos 30 dias. Essa é a bucha na mão de governadores e prefeitos de todo o país. Em Manaus, Recife, Fortaleza e Rio de Janeiro, já há gente morrendo por falta de vagas nas UTIs, o que pode se reproduzir nos demais estados, a começar por Santa Catarina, a bola da vez.

É inequívoco que o país está sofrendo as consequências do relaxamento da política de distanciamento social, que é estimulado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, com eco no desespero da parcela da população que perdeu suas fontes de renda. Com o agravante de que os R$ 600 aprovados pelo Congresso ainda não chegaram à parcela considerável dos que têm direito ao benefício, por dificuldades operacionais da Caixa Econômica Federal, que centralizou, desnecessariamente, o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos recursos. O desespero nas filas das agências da Caixa revela a outra face do drama humano que estamos vivendo.


Entretanto, o custo econômico do colapso total do sistema de saúde, provocado pela volta atabalhoada às atividades do comércio e dos serviços, seria muito maior do que o da atual política de distanciamento social. Essa dimensão do problema o presidente Bolsonaro não quer aceitar, assim como a bolha de apoiadores fanatizados com a qual interage. Ninguém sabe como sairemos dessa crise. Com certeza, porém, teríamos perspectivas mais otimistas se não houvesse tanta fricção no combate à epidemia, principalmente política.

Quem mais protagoniza essa fricção é o presidente da República, que parece sabotar os próprios esforços do governo para combater a epidemia e criar um ambiente de cooperação entre os Poderes e demais entes federados, para mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Até mesmo as relações com os parceiros internacionais, dos quais dependemos para obter mais equipamentos e insumos, notadamente, a China, sofre os efeitos dessa fricção. Na cena internacional, o Brasil voltou a ser um país exótico e, agora, politicamente isolado. A construção de gerações de diplomatas do Itamaraty está sendo implodida pelo chanceler Ernesto Araújo.

Essa fricção agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, deteriorado por crises criadas dentro do próprio governo, pelo presidente da República. Ontem, Bolsonaro nomeou a toque de caixa o novo diretor da Polícia Federal, delegado Rolando Alexandre de Souza, que decidiu trocar a chefia da superintendência do Rio de Janeiro. Carlos Henrique Oliveira, atual comandante do estado fluminense, foi convidado para ser o diretor executivo da Polícia Federal, deixando a Superintendência do Rio, cuja direção Bolsonaro sempre quis indicar. Por sua vez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que autorize novas diligências no inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.

Relator do caso, cabe ao ministro Celso de Mello autorizar a oitiva de pessoas citadas por Moro em depoimento; a recuperação de áudio ou vídeo que comprove a suposta tentativa de interferência; e a perícia nas informações obtidas a partir do celular de Moro. Dez pessoas do alto escalão do governo serão ouvidas, entre as quais os ministros Luiz Eduardo Ramos (Governo); Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil); a deputada Carla Zambelli (PSL-SP); o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo; e os delegados da PF Ricardo Saadi, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira e Alexandre Ramagem Rodrigues. O que se investiga? “O eventual patrocínio, direto ou indireto, de interesses privados do Presidente da República perante o Departamento de Polícia Federal, visando ao provimento de cargos em comissão e a exoneração de seus ocupantes”. Mais fricção à vista.

Ignorância empossada

Quando se fala da resposta à covid-19 - ou à falta dela -, Bolsonaro tem uma categoria própria, como o líder de ultra-direita mais ignorante e mais isolado do mundo
Cas Mudde, professor da Universidade da Geórgia (EUA)

Política brasileira é tão esculhambada que os brazilianistas desistiram de entendê-la

A política brasileira é a maior esculhambação. Até mesmo para os brasileiros fica muito difícil acompanhar e entender a evolução da conjuntura, por isso é necessário haver tradução simultânea. Antigamente a política era menos complicada, surgiram muitos analistas internacionais que passaram a estudar e a escrever sobre o país. Eram tantos estrangeiros a se dedicar a isso que foi até criada uma denominação para identificá-los, e passamos a chamá-los de “brazilianistas”.

Nos últimos anos, porém, a política brasileira foi ficando tão bagunçada que eles simplesmente desistiram de acompanhar o que acontece aqui no Brazil, que é a maior filial da matriz USA, a ponto de já ter até adotado oficialmente o nome de Estados Unidos do Brasil, que era uma maneira educada de denominar o Brasil dos Estados Unidos. E hoje não temos mais brazilianistas.

Realmente, o grau de dificuldade para entender o Brazil é gigantesco e desanimador. Nem mesmo a eleição de um presidente americanófilo como Jair Bolsonaro, a ponto de achar que Donald Trump é genial, foi capaz de incentivar a formação de novos brazilianistas.
Mas como é que um estrangeiro pode entender um pais cujo presidente foi condenado em vários processos por corrupção e lavagem de dinheiro, ficou um tempo preso numa suíte privê, onde podia receber visitas variadas e íntimas diariamente, assistir TV e dar entrevistas?

Como entender que o mau elemento foi solto, porque na filial Brazil criminoso só pode ser preso após julgado quatro vezes? E como entender que ele tem direito a dois carros de luxo blindados e oito assessores, ganha uma elevada pensão do partido, paga com recursos públicos, e pode viajar livremente ao exterior?

Da mesma forma, como entender que uma ex-presidente da República tenha sido cassada e sofrido impeachment, mas continua a ter direitos políticos e dispor de dois carros blindados e oito assessores, com licença para viajar com eles pelo exterior, para falar mal do Brasil?

Aliás, como entender um presidente que era capitão paraquedista, liderou uma rebelião, queria explodir bombas em quarteis, foi “inocentado”, elegeu-se presidente, anuncia apoio a uma golpe militar para se transformar em ditador, e não acontece nada?

Como entender que esse presidente incentive a população a quebrar o isolamento social determinado pelas autoridades internacional e pelo Ministério da Saúde, jamais use máscara protetora e estimule aglomerações, porém nada lhe acontece?

Também não é possível entender por que ele afirme ter apoio das Forças Armadas, ameace os outros poderes da República, dizendo que estão descumprindo as leis do país, e proclame: “Eu sou a Constituição!!!”. E ainda pior: por que até agora não foi examinado por uma junta médica capaz de dizer se ele tem condições de governar ou não?

O Brazil tá matando o Brasil

O titulo é verso roubado da musica Querelas do Brasil, uma das muitas letras do Aldir Blanc, mestre em desenhar desditas e querelas da história brasileira. Um vai e volta sem fim.

O Brazil não conhece o Brasil. O Brasil nunca foi ao Brazil. (Assim, com Z mesmo, ironia do autor, traduzida em deboche gingado na voz de Ellis Regina). A cantora gaúcha, que foi embora cedo, era a mais perfeita interprete da poesia de Aldir.

A música é de 1878. Lembrava que o Brazil com Z não conhece o Brasil com S. O lado rico desconhece – ou ignora – o lado pobre. Simples assim. Não mudou quase nada.

O Brazil não merece o Brasil. O Brazil tá matando o Brasil.


Quarenta e dois anos depois, Aldir foi um dos mais de sete mil brasileiros mortos pelo covid 19 – 16 por hora. Na luta contra a pandemia, o Brasil – do S e do Z – encara um presidente desembestado que, dia sim dia não, sem máscara, ameaça com a volta da ditadura que, em 1978, vigorava, mas prometia ir embora.

Na rua, desembestados partidários do desembestado-em-chefe tocam o terror, surrando opositores, jornalistas, urrando ameaças. Sem constrangimento, sem contenção. Sem voz forte a dizer: Não. Passou da conta!

A pandemia e a violência política assombram o Brasil – do S e do Z.

Como se ainda fosse 1978, as Forças Armadas são seguidamente convocadas e seguidamente se manifestam – sem clareza, dizem pouco, negam menos ainda.

No auge da pandemia, o soturno médico ministro, publicamente, derrapa para vestir a máscara de proteção obrigatória contra o vírus sorrateiro e mortal. É o soturno quem comanda (?) a guerra brasileira contra a doença. Ainda sem remédio, nem vacina de salvação.

Aldir, o poeta das 500 músicas, não deu conta de respirar tantas tragédias somadas.

O ar pesado também tirou de cena o ator Flávio Migliacio. Desistiu de respirar. “Me desculpem, mas não deu mais. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este”.

“Cuidem das crianças”, pediu Migliacio, sem fazer comédia da morte.
“Do Brasil, SOS ao Brasil”. Valia em 78. Vale hoje.
Tânia Fusco

Bolsonaro semeia a anarquia militar

Quando Jair Bolsonaro falou que “o povo está conosco. As Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia, da liberdade e da verdade, também estão ao nosso lado”, não disse coisa nenhuma. Foi apenas uma construção astuciosa mas, como o capitão não consegue parar, acrescentou: “Não tem mais conversa. Daqui para frente, não só exigiremos. Faremos cumprir a Constituição. Será cumprida a qualquer preço.” Logo ele, que se julga “realmente, a Constituição” e se referiu às “minhas Forças Armadas”. Ganha um resfriadinho em Caracas quem não conseguir juntar lé com cré.

Para quem vive uma pandemia com a marca dos dez mil mortos batendo à porta e uma inédita recessão já instalada na economia, esse tipo de encrenca não era necessária.

O capitão passou mais tempo no baixo clero da Câmara do que no Exército, onde conheceu melhor as sendas da indisciplina do que as normas da corporação. Nelas também não se enquadrava, por exemplo, o major e ex-deputado Curió do Araguaia. Levado ao Planalto por um sentimento antipetista, Bolsonaro flerta com a anarquia militar.

Essa anarquia, resultante de divisões dentro das Forças Armadas, se fez sentir na política brasileira do século passado, até que perdeu ímpeto em 1977 e desapareceu com a redemocratização.

Na crise que Bolsonaro incentiva misturam-se ingredientes tóxicos. O primeiro deles é a influência de sua família no governo.

Ilustração publicada por Rogéria Bolsonaro, ex-mulher de
 Bolsonaro, prestes a retomar a política como vice de Marcelo
 Crivella à prefeitura do Rio ou como vereadora

O que restava do prestígio militar do marechal Henrique Lott, poderoso ministro da Guerra de 1954 a 1959, esvaiu-se em 1962, quando sua filha Edna elegeu-se deputada estadual. Com três dos cinco presidentes-generais (Castello Branco, Emílio Médici e Ernesto Geisel) a história foi outra, e seus familiares não se metiam no governo. Castello demitiu um irmão porque aceitou um presente e não moveu um dedo quando a Marinha negou ao seu filho a promoção a almirante.

O segundo ingrediente tóxico vem a ser o “núcleo militar” formado no Planalto. É composto por militares da reserva e por um general da ativa agregado. Governos que não tiveram essa bizarrice funcionaram: José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Os que a tiveram: Costa e Silva e, de certa forma, Figueiredo, deram-se mal. Fora da linha de comando só há a bagunça.

O terceiro ingrediente é a simpatia de Bolsonaro pela opinião de sargentos e suboficiais, somada ao expresso apoio dado a policiais militares amotinados. A ele se junta uma militância parruda e agressiva.

Nos últimos 50 anos o Brasil teve dois tipos de chefes militares no Exército, aqueles de quem se sabia o nome e aqueles de quem não se sabia. Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves estiveram no primeiro grupo. Um enquadrou os generais depois da anarquia de 1969, na crise da doença de Costa e Silva. O outro, comandou-os no governo Sarney, quando baixou o chanfalho no capitão Bolsonaro. Depois, no segundo grupo, vieram dois chefes que comandaram a Força por treze anos. Deles não se fala e eles também não falam. Quem cruzar com os generais Gleuber Vieira e Enzo Peri na rua, não saberá quem são.

A ambos aplica-se a lição que Ernesto Geisel deu a um paisano que lhe perguntou quem era um general que ele promoveu à quarta estrela.

“Um grande oficial, e a prova disso é que você não sabe quem é.”

Chamava-se Jorge de Sá Pinho.