quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Tasso avisa: trinquem os dentes

Na sua entrevista aos repórteres Renan Truffi e Vandson Lima, o senador Tasso Jereissati deu um aviso, coisa de quem conhece a política brasileira: “As instituições precisarão ser fortes, trincar os dentes”. Há uma semana vê-se o espetáculo da partida de Donald Trump num país de instituições fortes. Depois de um sobressalto inédito, Joe Biden assumirá a Presidência dos Estados Unidos. As instituições brasileiras não têm a força das americanas, e nos próximos dois anos elas passarão por um teste de estresse.

Jair Bolsonaro, com sua opção preferencial pelo apocalipse, já deu a pista: “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”. O inesquecível Chacrinha dizia que “não vim aqui para explicar, eu vim aqui para confundir”.

Ao confundir, Bolsonaro explicou: ele sonha com um problema na eleição presidencial. Ele já sonhou com saques na pandemia e com uma intervenção no Supremo Tribunal Federal. Um apocalipse viria do andar de baixo. O outro talvez viesse daquilo que ele chamou de “as minhas Forças Armadas”. Nenhum dos dois se materializou. Sabe-se lá o que Donald Trump tinha na cabeça, mas no dia 6 de janeiro os seus milicianos (“we love you”) bateram num muro e agora estão sendo recolhidos pela polícia.



A pandemia e os problemas sociais dela decorrentes não foram produzidos pelo governo de Bolsonaro, mas sua barafunda agravou-os. Outros, contudo, saíram dele e, se isso fosse pouco, não têm origem racional.

Bolsonaro já encrencou com os três maiores parceiros comerciais do Brasil. Ganha a fritada de morcego do mercado de Wuhan quem for capaz de dizer o que o Brasil tinha a ganhar metendo-se no processo eleitoral americano ou no argentino. Ganha duas fritadas quem encontrar uma razão plausível para as caneladas que dá no governo chinês.

Não se sabe de outro presidente brasileiro que tenha encrencado com qualquer um dos três sem motivo razoável. Isso acontece numa época em que poderosas empresas industriais como Ford e Mercedes-Benz vão embora do Brasil. Nenhuma das duas faz as malas por causa de Bolsonaro. As montadoras perderam dinamismo, e quem ganhou vitalidade foi o agronegócio. Sem ter tomado medidas relevantes para estimulá-lo, Bolsonaro associou-se aos agrotrogloditas e tisnou a marca das exportações nacionais.

O senador Jereissati mostrou o tamanho do problema e apontou uma conduta: “Temos que trincar os dentes e termos instituições bem fortes: Congresso, Supremo, imprensa”.

Serão dois anos de sobressaltos, mas não há caminho melhor.

Dá-lhe, Brasil!

 


Tempos estranhos

Só agora, com o início das obras de restauração do Cristo Redentor, é que me dei conta de que temos a mesma idade — somos, ele e eu, de 1931. As semelhanças, infelizmente, param por aí. O Cristo está mais bem conservado e, com a reforma, vai ficar novinho em folha para continuar de braços abertos sobre a Guanabara. Se antes ele já tinha sido eleito informalmente como uma das Sete Maravilhas do Mundo, imagina quando for recauchutado.

 Ele, não sei, não perguntei, mas, de minha parte, não me lembro de ter vivido tempos mais estranhos — e olha que “vivi” o suicídio de Getúlio Vargas, a renúncia de Jânio Quadros, a deposição de Jango, a ditadura militar, a redemocratização etc. O problema é que agora foram reunidas todas as crises de uma vez só, a começar pela pandemia — política, econômica, ambiental, ética.


Pessoalmente, não tenho do que me queixar. Enquanto mais de 200 mil brasileiros já foram impiedosamente exterminados pelo coronavírus, eu cheguei são e salvo a 2021, claro que em quarentena absoluta. O que que eu quero mais? Queria, por exemplo, que não houvesse uma mesquinha guerra pela vacina. A politização atingiu tal nível que o presidente chegou a ameaçar: “O povo brasileiro não será cobaia da vacina chinesa de João Doria”. 

Desde pequeno, uma de minhas rotinas anuais era me vacinar. Foi assim, com uma picadinha no braço, que me livrei de poliomielite, coqueluche, varíola, catapora, entre outras doenças cujos nomes nem me lembro mais. Não há razão para explicar por que, apesar desse passado histórico, com um centenário instituto como o Butantan, com uma vacina dentro dos padrões da OMS, como a CononaVac, o governo demore tanto a iniciar o processo de imunização?

Enquanto isso, como se as milhares de mortes pela pandemia não fossem suficientes, a Polícia Federal expediu um recorde de 180 mil registros de armas de fogo em 2020, que servem, como se sabe, para produzir mortes, não para evitá-las. 

Tempos estranhos. Por isso, por essa preferência, Bolsonaro, que já declarou querer uma pátria armada, é também conhecido como “BolsoNero”.

Verdadeiros construtores do país


Escrevo sobre construtores, pedreiros, carpinteiros, artesãos em geral, porque são eles que erguem um país, e são mais interessantes
Ken Follett

Bolsonaro deve preparar-se para colher o que plantou

O ministro Paulo Guedes, da Economia, soube pela imprensa do fechamento das fábricas da Ford no Brasil e da retirada da empresa do país depois de mais de 100 anos. Foi a primeira montadora de automóveis a se estabelecer por aqui.

Guedes caiu na mais irresistível tentação que acomete os homens públicos – mentir ou exagerar. A primeira coisa que disse foi que o encerramento das atividades da Ford no Brasil destoa da forte recuperação econômica que vive o país.

Foi mais fundo o governador Rui Costa (PT), da Bahia, que sedia uma das fábricas que será fechada: “Não há planejamento. O que pensaram nos últimos cinco anos para aumentar os investimentos em tecnologia e industrialização? Nada.”

E concluiu com uma frase de efeito, mas não distante assim da realidade: “Estamos satisfeitos em nos tornarmos uma grande fazenda”. Bolsonaro preferiu criticar a Ford e esconder que seu governo aumentou os subsídios dados às montadoras.


No momento em que mais o governo hostiliza a China, o maior parceiro comercial do Brasil, chamando a Covid-19 de vírus chinês, desancando a vacina Coronavac e rejeitando a tecnologia chinesa para o 5G, a quem ele pensa recorrer no caso da Ford?

O Ministério da Economia já entrou em contato com outras montadoras sobre a possibilidade de elas assumirem as fábricas da Ford que serão fechadas em Camaçari (BA), Taubaté (SP) e em Horizonte (CE). E uma das montadoras é a Chery, chinesa.

Quando a necessidade aperta, às vezes o realismo prevalece mesmo em governos ineptos. O céu não é de brigadeiro, nem mesmo de paraquedista afoito capaz de saltar para a morte só porque lhe mandaram saltar, e ele se vê como um herói.

A Ford vai embora porque atravessa uma crise empresarial faz anos dentro de uma crise maior que atinge outras marcas famosas de veículos. Só falta o governo brasileiro imaginar que se Donald Trump tivesse sido reeleito isso não aconteceria.

O amigo dileto de Bolsonaro nada fez pelo Brasil enquanto presidente dos Estados Unidos – por que faria caso tivesse derrotado Joe Biden? E por que Biden socorreria o Brasil se Bolsonaro apoiou Trump e justificou a invasão do Capitólio?

No início do seu governo, Biden pretende convocar uma reunião da Cúpula das Democracias. Haverá lugares nela para Bolsonaro e outros chefes de Estado marcadamente autoritários? É de duvidar que sejam convocados. Seriam estranhos no meio.

O mundo dito civilizado não gostou do que viu nos primeiros dois anos de governo Bolsonaro e perdeu a esperança de que os próximos dois anos sejam diferentes. O presidente brasileiro prepara-se para começar a colher o que plantou.

Emmanuel Macron, presidente francês, outro governante destratado por Bolsonaro que chamou sua mulher de feia, deu uma ideia do que possa vir quando disse, ontem, em Paris durante a cúpula sobre a defesa da biodiversidade: Continuar a depender da soja brasileira seria endossar o desmatamento da Amazônia.

Aperte os cintos, Bolsonaro.

Incógnitas e lutas caducas

Aos trancos e barrancos, em violentas erupções eles governam. Se o país está quebrado, é hora de comprá-lo. Barão de Rothschild vaticina: a riqueza troca de dono quando há sangue nas ruas. Os mercados lucram com a miséria humana, explica o New York Times, porque as bolsas estão bombando na pandemia.

Como o presidente libera sentimentos que ninguém quer ver e em geral destrói todos os que cometeram o erro de nele acreditar, há alguma coisa no ar que não fecha. Declarar a insolvência do Brasil sabendo da manipulação da descrença que a isso se segue permite supor que alguém já lhe deve mais do que ele jamais poderia dever.

Brasil e EUA vivem a moléstia do vitorioso mal-agradecido que debilita a glória de presidir o país pela mortificação pessoal de ocupar cargo acima de seu nível. Porque esse negócio de dizer que não pode fazer nada quer dizer que não pode fazer tudo em regime legal. Alusão ao mundo subterrâneo, motor da palhaçada ultrajante no Capitólio querendo produzir torpor na democracia.

A democracia não tem a velocidade maldosa do impune. Não detém sua esterilidade petulante, nem suaviza a dureza da pedra ou incute valores morais em atitudes destrutivas. Basta uma declaração para resumir a aversão ao diálogo, como campeão de lutas caducas.

Dois países, um mole, outro desarranjado, assistem ao êxtase de líder errado, num concurso de paixão sem razão e capacidade de frear. Impeachment é por crime de responsabilidade. De irresponsabilidade é interdição, desqualificação por circunstância. Como a sorte lançou votos em seu caminho, drenar o pântano é aposentar quem não entende as dificuldades da vida normal e fazer regredir a preferência pelo conservadorismo político desinformado e pelo liberalismo tosco.


O poder não se comove. Quando diz decência pode significar indecência. A confusão se amplia. O excesso de estimulação que recebe o governante produz um vazio extremo no governado que confunde poderoso como alguém de ego forte. Negativo. Forte é a circunstância do ambiente facilitador em que vive. A má autoridade não injuria ou zomba de ninguém. A agressão vem do lugar que ocupa.

Há uma inversão na ordem. Dois países gigantes perdem a fé na sua força por não saberem lidar com problemas pessoais de presidentes e o ambiente de fúria e inveja que propagam. Muitas autoridades trazem de casa seus costumes e ampliam a confusão entre o público e o privado.

O Brasil vive uma desnecessidade de poder. Como se os anéis justapostos do arbítrio, da criminalidade e do delito produzissem uma atividade motora que vai do indivíduo à autoridade, do crime ao tribunal, sem distinção ou limite. Quem julga o juiz em nossa pátria? Quem detém do governante o delito? Quem protege a paz do cidadão? As instituições começam a não desempenhar papel relevante na vida pública, com mãos soltas para executar o que for.

Erra também o Banco Central se deixa sua independência ser entendida como garçonnière de bolsa e suas fantasias. Alienação baseada em comodismo acadêmico supersticioso: considerar o mercado amante volúvel, sem emprego e produtividade. E supor economicamente irracional pensar também em metas de confiança, pleno emprego, crescimento econômico e estabilidade da moeda. Sozinha e paparicada, a moeda especulativa, dogma do iliberal brasileiro, é uma desmaterialização produtiva, que permite que valorização no mercado de ações seja desvinculada da economia real. A economia financeira do risco e som de canhão acha que a paz dá prejuízo.

Assim começa janeiro. A terceira pré-estreia desse filme de quatro anos. E a bagunça geral vai produzindo um País sem testemunha que não sabe que a sucessão no Congresso é a principal decisão econômica de 2021. Ou continuaremos a assistir a bolsa rica e bolso pobre; especulação subir, produção sumir; o empresário investir, o imposto comer; o jovem crescer, o emprego desaparecer. Agravado pelo erro de querer desvincular empresa e escola nas políticas para jovens vulneráveis. Trabalho sem estudo é gasolina na evasão escolar, ponte inútil para o futuro.

O Brasil parece renunciar ao amor pelo seu povo. Não há melhores a imitar. Desde 1926, de Araraquara Mário de Andrade alertava: “Se três brasileiros estão juntos estão falando porcaria... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico... O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Trata-se de uma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas”. Enfim, estão aí o ano novo e o mesmo presidente sem horizonte.

Não é a primeira vez que o Brasil vive o amor devorante do narcisista que parece deixar-se amar para levar do outro os esforços em proveito de si mesmo. Diante do deboche e da audácia releiam Macunaíma. Para pular cedo da canoa, dar uma chegada até a foz do Rio Negro, buscar a consciência ali deixada e ajudar a tirar do buraco o ano novo.

No dia D. Na hora H

Quarentena ano 2. Confesso. Estou tomada de inveja. Primeiro, de quem mora à beira mar; de quem abre a janela e sente o cheiro do mar; de quem fez as malas, ligou o foda-se, e foi pra praia; de quem virou o ano com o pé na areia, pulou sete ondas e encharcou a roupa com a aguaceira de uma onda ousada. De máscara. Mantendo distância. Claro.

Mineiro já nasce com nostalgia do mar, padece de saudade atávica do mar, que tá ali pertinho, mas negou banhar Minas Gerais. Trem desacertado, sô! Na geografia, Minas é um dos quatro estados que fazem o sudeste.

Por que - valha-me Deus! - ficou sem mar? Cercada por São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo e seus mares, não dava pra trocar um pedacinho do grande nariz da terra mineira por uma nesgazinha que fosse de areia, praia e mar?

Enfim, não deu. Quis o destino que assim fosse. E os mineiros, até os que nascem e morrem sem nunca ver o mar, têm saudades atlânticas do Atlântico que é o mar mais perto e poderia ser um pouco também nosso.

Neste verão, nem queria, nem iria “glomerar”, só tirar uma casquinha do mar, da maresia, da brisa marinha.


A praia do verão é a inveja 1, neste janeiro. É meio eterna. Agora, inveja imensa mesmo, daquelas de envenenar o espírito, é de quem tem vacina, quem planejou comprar seringa, agulha e muitas doses da CoronaVac, da Sputinik, AstraZeneca, Janssen, Pfizer, Moderna. Sejam as de vetor viral ou de RNA. Com eficácia de 60 ou 90%. Com imunização de curto ou longo prazo. De uma dose ou 10.

Inveja de quem sabe e acredita que não há saída, ou imunizamos ao menos 70% da população ou o vírus segue comendo solto, adoecendo, mutando e matando – gente e o país.

Inveja monstra de Israel e Emirados Árabes Unidos onde a vacina avança em velocidade de Fórmula 1. Inveja de Portugal e da Inglaterra que avisam e marcam a vacina por WhatsApp. Inveja da Argentina e do Chile que têm presidentes se virando nos 30 para conseguir imunizar seus cidadãos.

Invejas dos países que se prepararam para a vacinação em massa e, mais rápidos ou mais lentos, estão empenhados em cumprir o dever humanitário de salvar vidas e devolver aos seus alguma normalidade possível em tempos de covid.

Inveja de ter um Presidente que junte o tico com o teco, que tenha um projeto – algum projeto de governo um pouquinho maior do que vender armas, brincar de pateta risonho, gravar lives e mentir diariamente pra seus iguais em obtusidade, que batem ponto matinal na porteira do Alvorada.

Inveja de ter um governo. Qualquer coisa à direita ou à esquerda, que, ainda que não agrade a todos, mostre-se governando, não batendo cabeça e continência para a incontinência verbal, para ignorância, para a inépcia.

Inveja dos que, na desgraceira da pandemia, têm um ministério atuando e um ministro da Saúde real, não um soldado cabeça de papel que, sem nem ficar vermelho, declare aos seus compatriotas, às famílias dos 200 mil mortos do covid, que aqui, no Brasil de hoje, teremos vacina no dia D, na hora H.</p>
Tânia Fusco