quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


Além da imoralidade

A defesa deve ser sempre proporcional ao ataque. Quando há algo desproporcional, você vê uma tendência de dominar que vai além da moralidade
Papa Francisco

Coach — política neofascista e traumaturgia

O coach é a representação limite da financeirização do capital — a sua máxima abstração e pureza, dominando a produção e a guerra global — no âmbito da cultura. Psicólogo definido pelo incremento da produtividade de seu cliente, o coach teve origem na ruína do mundo do trabalho, das profissões e de suas éticas, no mundo da fragmentação e monadizacão do destino do trabalhador, vendedor de qualquer coisa que ninguém quer comprar.

Ele é o próprio sintoma encarnado da vida das classes médias sob o risco de não serem produtivas, por fim dispensáveis, pela presença da política permanente do desemprego. Neste mundo, o coach cumpre o serviço de exploração da insegurança universal. Ele medeia a violência normal na vida das empresas, promove falsa autoajuda como verdade humana, a única ajuda disponível, para pacificar um sujeito sem valor algum, cultural ou de troca, na cultura de sua máxima exploração, física e psíquica.

Como um dia me disse o CEO de uma gigantesca agência de publicidade, máquina que trabalhava no fundo da própria política do país: “na empresa você pode facilmente ganhar 100 mil por mês, não é difícil… basta você me produzir 300 mil por mês.” Este é o mundo dos valoresdo coach, é nele e por ele, sustentado em indivíduos, que o coach trabalha.


Mundo da pressão total da abstração do dinheiro, sem nenhum caráter ou valor para fora do retorno ao mercado, da tempestade tautológica do sistema da mercadoria se auto-referenciando, para justificar o terrorismo de sua própria vida social. Realidade dura dos vencedores, no limite da maior derrota, onde o coach pontifica.

Ele é um psicólogo clínico degradado na ideia fixa da autoajuda banal, pastor profano do elogio do trabalho e do dinheiro quando eles se tornaram impossíveis, psicanalista que negou o inconsciente e a transferência a favor do apego sugestivo ao próprio eu, confundindo subjetividade com produção de valor e sujeito com submissão ao racket psíquico pessoal.

O coach é o pastor cujo único deus é o sucesso abstrato na cultura dada, o psicólogo empresarial de Recursos Humanos pago particularmente para se suportar o risco da vida do trabalho, de quem ainda quer estar por cima, o psicanalista que vende a própria imagem, e a própria tabuada de razões ideológicas, radicalmente comprometidas com a reprodução da ordem que põe tudo em risco.

Não há dialética nem negatividade na existência do coach e sua “teoria” — instrumentalização do pior do elemento subjetivo presente em uma psicanálise. Há apenas aceitação, celebração tácita, adaptação como estratégia de vida, sob o cálculo e o projeto do truque, do golpe ou do balanço malando em meio ao dinheiro, para garantir a sobrevivência nele. Sobrevivência de vida que parte e se resolve no espetáculo, traduzida diretamente em fetichismo da mercadoria, consumo conspícuo.

Vendendo degradação de qualquer metafísica, desde que adaptada a tudo o que existe, o coach é o apoio limite do homem comum, quando ele não vai ao culto coach de uma igreja evangélica…, o amuleto transferencial mundano do filisteu cultural, normal, que, dispensável em todos os níveis da vida que não tenham a ver com mais valor, necessita de alguém que junte os seus pedaços, o pastor profano. Explodido pela própria sociedade esquizofrênica, que não pode negar, pensar em contradição, o cliente do coach o deseja como a liga de seu retorno ao próprio mundo impossível.

O duplo do coach, coach sem nenhum vínculo com o trabalho, é o promoter da vida permanente no gozo generalizado das imagens em fluxo, mas de kicks e de baques, de excitação vazia, o influencer da internet: o vendedor estridente, vulgar no último, de tudo e qualquer coisa que exista, ou seja, que excite alguém. O propagandista, da propaganda que se voltou sobre si mesma. A cultura do coach é a dasobrevivência para a sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida; a cultura do influencer é a daafirmação imanente da sociedade do espetáculo generalizado, da mercadoria como tudo na vida.

O coachlíder fascista é o que une o seu estatuto de pastor profano com a malandragem feliz de vampirizar qualquer fetichismo, de qualquer produto, fofoca ou crime nas redes, a arte do influencer. Realiza meta-morfose de si mesmo, virando em exemplo degradado, autocelebrado em fusão com a propaganda de tudo, a ser seguido por massas. O coach líder fascista é o líder político das micro-celebridades, auto geradas aos milhares nas redes. Quanto mais ele aparece, mais poderoso ele é, porque neste mundo basta aparecer para ser poderoso.

Vendedor do sonho de si mesmo, o produto do coach fascista, novo líder no limite da degradação política total — da manutenção do capitalismo de fronteira final, de extermínio de ambiente e natureza, porque os humanos já eram faz tempo… — é a venda da própria imagem, a figura de um rico grotesco brilhando, um sádico do gozo da vida má, deliberadamente estúpido, como modelo para a vida geral degradada. O coach político de internet, influencer e mercadoria a um tempo, vende o vento da sua pura excitação, como todo influencer.

Porém, sua excitação é o puro ar de si mesmo, a constelação ideológica positiva de amor sacrificial pelo mercado, ele próprio como o seu produto. De fato, pessoas compram de Pablo Marçal apenas cursos, golpes farsescos, exatamente para serem como Pablo Marçal; e Olavo de Carvalho sabia bem ser um coach fascista. Como no jogo, como dizia Marx, a ideologia vazia e o personalismo de espetáculo fazem o produto-ele-mesmo do coach funcionar diretamente como D-D’ — dinheiro imagem que faz mais dinheiro… — sem nenhuma mercadoria no meio. O coach funcionando como líder fascista é pura identificação, função de espelho do rosto da mercadoria, formula cultural do capital financeiro.

Antes de entrar na disputa política como alternativa verdadeira, pelo sucesso degradante e pela arrogância de vencedor em mundo de derrotas totais, o coach amealhou milhões de miseráveis do destino e da cultura, da vida e da história, em suas redes sociais na internet, de fato suas redes pessoais. Milhões de compradores do ar do coach, tentando reproduzir o seu brilho e sua riqueza mágica configuram de fato a sua indústria cultural particular.

De fato, milhões de demenciados de mercado, aos quais o novo malandro industrial, que aposentou a navalha, opera por desejo como entretenimento, como fantasia de ganho pela submissão ao seu desejo. Pagando pelo ar do coach, os milhões de idiotas do mundo como ele é confirmam pela raiz o seu poder: fundamentalmente o desejam.

A política do desejo, das coisas, do dinheiro circulante, e de seu show, se confirma absolutamente no desejo do coach. Ele tem seu próprio partido político, sua indústria cultural de propaganda fascista, sua rede de milhões de seguidores o desejando, e desejando ser o coach — que não é nada se não isso mesmo. Tais militantes e ativistas pagam milhões pela indústria cultural da personalidade, para que o coach apareça para eles como milionário, pelo desejo radical que isto exista.

Porque o mundo é isso, produção de riqueza sobre a produção de massas de excluídos, que pagam pelo acesso, quando não exterminados. Dono de um partido de massas da venda de si mesmo como a política do real, das coisas da vida social arruinada, o coach político de massas é a condensação da coisa cultural do neofascismo, esta nova ordem de razões políticas que intriga a tantos.

O coach é o vendedor na rede de uma pirâmide de si mesmo, em que ele é a imagem, o modelo e a mentira de que sua riqueza ridícula estará acessível a todos. Basta todos reconhecerem isso, e seu golpe neoliberal total, de sua excitação vazia de palhaço pop grotesco, chegará ao poder, o seu verdadeiro lugar, como Javier Milei na Argentina e Pablo Marçal tentando o golpe em São Paulo.

Basta ser como o coach, diz o coach, e para isto é preciso que a massa se cale e o assista, e ele enuncie sozinho sua violência antipolítica como política. É preciso ser como ele, por isso é ele quem fala. Por um naco imaginário da riqueza, e para pertencer ao código do dinheiro, palhaços de um circo pegando fogo tendem a entregar tudo ao coach. Como já entregaram quando compravam seus cursos, que não são nada. Por não ter nada a oferecer no âmbito da história, o coach só pode causar, chamar a atenção para si mesmo como um palhaço da indústria cultural que tem nas mãos, que de fato é.

Mentir a mentira que excita, ousadia tática e sádica, que convoca a atenção exatamente porque todos sabem que é mentira. Sua mentira política é apenas uma aposta, em um jogo vazio de verdade, pleno de poder que gera poder. Sua performance, da qual depende, é sua traumaturgia.

Com este choque vazio, se convoca a massa, submetida ao desejo do coach mercadoria. Um povo que deseja o fascista brand new, o espírito vazio do capitalismo como golpe e como crime, e seu grande líder, a vida pública da política como sonho de um coach.

Elogio da vida monástica

Outrora, uma pessoa retirava-se do mundo,
amortalhava-se em vida, fazia-se monge,
ou porque a vida lhe dera tudo e a agonia sobrevinha,
ou porque desistia de lutar com ela pelo que não vinha nunca
(nem mesmo sob a forma de agonia que facilitasse as coisas).
Depois, porque o espírito precisa de ocupar-se,
a pessoa tratava de salvar a própria alma,
de mortificar o corpo, e preparava-se para a morte
(um acidente para que só pelo acaso feliz de ter nascido,
uma pessoa, naquele tempo sem recurso algum,
estava, por estar viva, sempre preparada).
Era uma aposentadoria honrosa, olhada com respeito,
e que não podia deixar de encher a solidão
como gente e amor não tinham preenchido a vida.
Era um estar só, rodeado de calor humano,
sem os inconvenientes e a incomodidade
que o convívio humano traz consigo,
desde os sentimentos a mais aos sentidos a menos,
ou ao facto lamentável de quem amamos não cheirar
como quereríamos: a um misto de rosas e de sexo,
com alguma imaginação de como o amor cheira.

Hoje, não há mais mundo
de que uma pessoa possa retirar-se.
O mundo se retirou de nós. E a solidão
é como um convento gigantesco em que,
na rua, nos transportes coletivos, na cama,
olhamos a vizinhança com a mesma convicção
com que os carmelitas descalços ao cruzarem-se no claustro
mutuamente se saudavam dizendo
que era preciso morrer.
Na dor, na alegria, no prazer, em tudo,
somos monges laicos cuja morte sobrevém
de uma qualquer maneira estúpida e sem graça.
E o nosso olhar de espanto não é o de termos sido
colhidos de surpresa antes de estar salva a alma,
mas o de ela estar salva, desde que o mundo
se retirou de nós. É o olhar de espanto do funcionário público
que descobre, ao contarem-lhe o tempo de aposentadoria,
que nunca figurara na folha de pagamento,
nem no quadro dos funcionários efetivos,
ou mesmo sequer nas listas do comissariado
do desemprego. Não tem direito sequer
à agonia que todavia sente como antigamente
era sentida a que justificava tudo:
o prazer de decidir entre duas coisas:
o ir ou o ficar, o estar ou o partir,
O ter-se uma alma que jogar e perder.

Jorge de Sena, "40 Anos de Servidão"

A extrema-direita entre um passado perdido e um futuro irreal

O show deplorável de Pablo Marçal nos debates e nas redes, de um lado, e pesquisas que revelaram a competitividade de sua candidatura à prefeitura de São Paulo, de outro, aqueceram uma eleição que tinha tudo para ser morna. A ascensão de Marçal despertou sentimentos de medo e angústia que só podem ser comparados ao processo eleitoral que levou Jair Bolsonaro à presidência em 2018. Os absurdos contidos no discurso e na prática do ex-coach, suficientes para chamar a atenção e mobilizar um conjunto assustador de pessoas, lembraram a vitória inesperada do ex-capitão. Até a divulgação recente de pesquisas que mostraram a estagnação de Marçal, muita gente já via como provável a sua vitória.

Longe de ser carta fora do baralho da disputa, o fenômeno Pablo Marçal merece atenção por diversos motivos. Em primeiro lugar, o frenesi que ele tem provocado é sintoma de uma sociedade sensibilizada quase que exclusivamente pelo espetáculo. Diante de uma campanha que opõe duas faces tradicionais da política institucional, a fanfarronice eficiente e sem precedentes do ex-coach não poderia passar despercebida. Com efeito, a campanha em São Paulo era até então marcada por uma concorrência um tanto convencional. De um lado, um ex-vereador alçado a vice-prefeito em negociatas de bastidor e que, apesar de contar com o apoio ao mesmo tempo necessário e problemático de Bolsonaro, representa o que há de mais tradicional de uma direita fisiológica e apegada a esquemas no seio da máquina pública. De outro, a liderança mais arejada que a esquerda brasileira produziu no último período, mas que conta e depende do apoio do presidente da república e luta contra estigmas associados ao seu passado combativo no movimento social. Em um momento em que a atenção do consumidor (ou eleitor) é um ativo raro e disputado, havia espaço para o inusitado, o irreverente que pudesse articular a política ao entretenimento e ao espetáculo.

Do ponto de vista político-eleitoral, é quase intuitivo encontrar uma explicação para o crescimento repentino de Marçal. Conforme Bolsonaro aparenta covardia ao se submeter à candidatura preferida de Valdemar Costa Neto em meio à articulação de um grande acordo que envolve o centrão e os partidos da direita tradicional para livrá-lo da inelegibilidade e da prisão, ele deixa carente e incomodada uma base que ajudou a forjar e que cultivou a partir do conflito com o sistema. Ao aparecer como um outsider alheio a conchavos e privilégios que marcam os atores da ordem, Marçal renova o espírito subversivo do bolsonarismo e encanta seus eleitores mais radicais. Mas sua ascensão coloca outras questões que merecem ser pensadas. A mais óbvia diz respeito à adequação do termo “bolsonarismo” para descrever um movimento ou uma agenda política com atores, grupos e contornos bem definidos.


Jair Bolsonaro e depois o que se convencionou chamar de bolsonarismo têm sua origem como fenômeno político em um ímpeto eminentemente negativo: uma rejeição ao Partido dos Trabalhadores calcada nos efeitos dos governos petistas sobre a redução de desigualdades materiais e simbólicas. Bolsonaro se tornou uma figura que, como um significante vazio capaz de articular ressentimentos de ordem material e simbólica, sinalizava para diferentes grupos e expectativas conservadores. Setores médios incomodados com a ameaça de seu status social viram nele a chance de interromper movimentos que questionavam hierarquias históricas e um processo de redistribuição que apontava para uma sociedade menos desigual e com menos privilégios.

Enquanto força negativa, movida mais pelo imperativo da destruição do que da construção de algo novo, o bolsonarismo sinaliza uma traição de seu espírito anti-sistema original quando se vê compelido a negociar e acomodar interesses com as forças mais identificadas com a ordem que ele defendia suprimir. A ponto de ser contestado ou até ultrapassado por uma figura que resgata o apelo de uma alternativa original ao sistema. No momento em que o bolsonarismo parece se institucionalizar de maneira definitiva, curiosamente depois de deixar o governo federal, surge a dúvida quanto à capacidade de Bolsonaro e de seu grupo mais próximo de controlarem o monopólio da direita mais conservadora.

Mas para além da discussão acerca da natureza anti-sistema e da hegemonia bolsonarista sobre o eleitorado de direita, outros elementos devem ser pensados acerca da relação entre Bolsonaro e Marçal e sobre quanto há de ruptura ou continuidade entre ambos. Um deles é de ordem temporal e sugere uma diferença importante entre o movimento liderado por Bolsonaro e o incipiente estrago que Marçal vem fazendo na disputa paulistana. Grosso modo, não é um exagero dizer que enquanto o bolsonarismo tem seu horizonte no passado, Marçal interage com o presente e aponta para algum futuro – por mais distópico que ele pareça.

Bolsonaro construiu sua imagem como liderança apegada a tradições, costumes e valores ameaçados. O ex-capitão ascendeu politicamente a partir do conflito com avanços que promoveram uma certa nostalgia em relação a um passado perdido. No centro do projeto e da comunicação bolsonarista sempre estiveram as noções de ordem e segurança. Não apenas a segurança pública contra a violência e o crime, mas a segurança de instituições como a família, a igreja, as forças armadas. O que ele sempre reivindicou foi a proteção de determinados setores sociais diante da insegurança trazida pela dissolução de referências culturais e de hierarquias sociais que asseguravam algum conforto. É bem verdade que o bolsonarismo, diferente de movimentos de extrema direita correlatos em outras partes do mundo, teve uma relação no mínimo ambígua com a agenda liberal no plano econômico. Enquanto em países do centro lideranças populistas acenam para políticas de proteção comercial e de direitos sociais, foi conveniente para a sua versão tropical uma aliança com as demandas liberais das elites financeiras. No entanto, Paulo Guedes é lateral no bolsonarismo, a agenda liberal não está, definitivamente, no centro de sua identidade.

Já em Pablo Marçal a cultura do empreendedor individual é definidora do que ele projeta enquanto movimento político. A partir do conflito mais ou menos explícito com o Estado, com a cultura do serviço público, de qualquer tipo de regulação da produção e do trabalho, Marçal tem no sucesso individual e no enriquecimento suas principais bandeiras. Ele parece responder aos imperativos de uma economia em transformação e que premia novos padrões e práticas no sentido da obtenção de recursos. Numa sociedade que normaliza uma renda proporcional ao esforço individual, ao estilo do motorista de aplicativo ou do entregador que ganham mais conforme mais trabalham, sem nenhum tipo de proteção, Marçal é referência. No Brasil, a informalidade sempre condicionou lógicas de produção alheias aos padrões legais da proteção trabalhista. Mas agora esse se tornou o padrão de uma cultura que não só aceita, mas normatiza o esforço infinito. Antes tratava-se de se virar para garantir um sustento mínimo, hoje é mérito encontrar diversas maneiras de obter recursos. Ganhar dinheiro é o imperativo, não importa como, se é investindo, empreendendo, apostando em sites esportivos e jogos eletrônicos ou enganando os outros.

Não se pode dizer que o ex-coach não está afinado ao espírito do tempo. É diferente do bolsonarismo, em que a luta de classes é feita olhando para baixo, por uma classe média que teme perder o status e os privilégios a partir da ascensão das camadas populares, e que idealiza um passado em que haveria algum senso de coletividade em torno de instituições como a nação, a família, a igreja. Na ideologia propagada por Marçal, a luta de classes é feita olhando para cima, não por parte de uma classe, mas de um indivíduo que pode reunir as condições de ascender socialmente de maneira atomizada.

E aqui nos deparamos talvez com o elemento mais intrigante do fenômeno Marçal. O ex-coach se conecta com um tempo em que o indivíduo, como empreendedor, influenciador ou qualquer outra coisa, está supostamente no centro da produção e do seu potencial enriquecimento. Diferente de uma sociedade marcada pela clivagem entre patrão-empregado, o sucesso partiria das ideias, do talento, da força e da capacidade do indivíduo. No que ele difere de um modelo teoricamente racional para a prosperidade e que inclusive já foi testado politicamente. No Brasil, figuras como Fernando Collor, João Dória e Paulo Guedes, entre outros, encarnaram a via “normal” de um capitalismo desprovido das amarras que o Estado colocaria sobre a liberdade econômica e o empreendedorismo. Projetos mais alinhados à teoria econômica hegemônica na academia e no debate público, mas que não prosperaram politicamente.

Marçal poderia ser entendido como a expressão de um sincretismo improvável entre um capitalismo contemporâneo excessivamente focado no indivíduo e manifestações localizadas no âmbito da fé. É como se depois de se depararem e se frustrarem com um modelo político-econômico que não entrega o que promete quando respeitada a via convencional e racional, restaria às pessoas apelarem para alternativas que estão à margem do espectro convencional, a soluções novas e mágicas para a prosperidade. Quando o padrão normativo de educação e trabalho e a renda são insuficientes para atender às demandas impostas por um modelo de consumo que cria desejos e necessidades de maneira incessante, restaria apelar a apostas, sejam elas econômicas, como os sites de apostas esportivas, sejam elas político-normativas, como Marçal.

A escolha pela extrema direita “tradicional” não deixa de ser uma resposta política ao insucesso, ao fracasso, à inviabilidade de um modelo de sociedade que promove a frustração de não se ter aquilo que precisamos e desejamos. Não alcançar tudo o que se deseja, trabalhar mais do que se pode física e emocionalmente, lidar com a frustração imposta por uma cultura que coloca sobre o ombro dos indivíduos toda responsabilidade pelo sucesso e pelo mais provável fracasso de vontades não realizadas é penoso. Mas como dito acima, essa extrema direita olha para o passado, projeta uma luta de classes em que os estratos sociais miram para baixo, têm medo de cair e se assemelhar às camadas inferiores. Em suma, o populismo da última década projeta a preservação daquilo que se tem ou a recuperação daquilo que se teve. No centro, ganham força o controle da imigração, a xenofobia e também alguma regulação sobre a economia de modo a preservar direitos mínimos e o poder de compra dos setores médios. No Brasil, o desespero e o ressentimento descambaram para a proteção, a segurança, a família, a religião e a restauração de uma sociedade baseada em desigualdades materiais e simbólicas.

Pablo Marçal não é único e carrega características que podemos encontrar em figuras como Donald Trump, Najib Bukele – que ele tentou em vão encontrar – e até Bolsonaro. Não se trata de uma ruptura completa com o modelo anterior, afinal disputa segmentos parecidos da sociedade. Mas há também diferenças importantes. No movimento promovido por Marçal, a aspiração de enriquecer faz com que o olhar esteja dirigido para o topo da estrutura social, a aspiração de prosperar conta mais do que a defesa da família e dos costumes, embora ela também esteja presente. Não é um acaso a afinidade do ex-coach com a juventude que se espelha em influenciadores que enriquecem a partir das redes sociais e com setores do funk cuja identidade está muito associada ao consumo e à ostentação.

O mais curioso, porém, é que essa projeção de sucesso e prosperidade está assentada na fé, na “mentalidade”, não em um plano racional de desenvolvimento econômico e abertura de oportunidades de trabalho e carreira. Marçal é a resposta a desejos e vontades que a ordem econômica é incapaz de realizar da maneira que a teoria econômica hegemônica propala. É como se as pessoas soubessem que pela via “normal” defendida – da educação e do esforço profissional – é impossível alcançar o que se almeja. É daí a força de um apelo sobrenatural, de uma solução mágica. Marçal está atrelado a questões muito reais e concretas, desde o jovem que consegue fazer dinheiro a partir da viralização de vídeos nas redes até famílias cuja renda é insuficiente para as necessidades mais ou menos básicas. Mas o caminho que ele aponta está apoiado no intangível, na crença, no fantástico, pois o caminho “normal” já se mostrou inviável.

A resistência contra o desespero reacionário do bolsonarismo contou com os erros cometidos por Bolsonaro no poder, com o receio dos estragos que ele ainda poderia cometer e, sobretudo, com as lembranças de um período de melhores condições de vida. Diante de uma extrema direita que, embora fragmentada, dialoga ao mesmo tempo com a nostalgia de um passado desigual e com a aspiração de um futuro de prosperidade individual, será preciso apresentar saídas objetivas para angústias e receios que podem facilmente aderir a um desses dois registros. Em um mundo em que as soluções coletivas razoáveis disputam espaço e atenção com um espetáculo desprovido de compromisso com a racionalidade, é apontando caminhos críveis de progresso e bem-estar que algum contraponto pode ser construído. Melhores oportunidades de trabalho, salários maiores, maior poder de compra, menos impostos sobre a renda, em suma, a perspectiva concreta de uma vida melhor é incontornável para qualquer projeto político que busque adesão popular. É difícil prever o que vai acontecer com as eleições paulistanas em meio a brigas e cadeiradas, o que dirá com a disputa político-ideológica que se anuncia para o próximo período. O que se pode afirmar sem muito risco de errar é que alternativas que dialogam com a irracionalidade do apego a um passado perdido ou a um futuro idealizado continuarão atormentando o nosso presente.