quarta-feira, 15 de abril de 2020

Triste Brasil

Atribui-se ao professor San Tiago Dantas uma observação mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um grande povo e uma elite de merda”.

Com certeza, San Tiago disse que “vêm se processando há séculos no Brasil um trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do exame cultural e político dos valores nacionais”.

No discurso de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites”.



Nunca a elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia de coronavírus. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da história nacional.)

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século 20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito.

A ponte aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas de milhagem que existiam há mais de uma década. Os fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que liderou a expulsão do Carrefour sumiu e o oligopólio das aéreas foi à garra.

Sendo velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da República diz que a Covid-19 é uma gripezinha, afrontando a ciência e a opinião pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque defende o isolamento.

Os inimigos de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo deverá vetá-lo.

Empresários beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá a recessão.

É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha. Se cada um continuar gritando, quem ganha é a Covid.

Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS (que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.

Todos os lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque havia gente interessada nisso.

Há hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê? Porque chegam mortos.

Imagem do Dia


O Brasil depois da covid-19

Como é natural, a quase totalidade das análises e dos comentários na imprensa falada, escrita, nas TVs e na mídia social se concentra hoje nos grandes desafios internos para superar a crise provocada pelo coronavírus. Depois de a pandemia passar, o Brasil e o mundo serão outros.

Do ângulo interno, os desafios econômico-financeiros, sociais, de logística, de modernização do Estado, do fim dos privilégios, da violência e da corrupção vão ter de ser enfrentados como nunca antes. O Brasil deverá ser reconstruído. O orçamento de guerra determinou despesas indispensáveis para atender aos trabalhadores formais e informais e as empresas afetadas pela quase paralisia da economia doméstica e global. Como tratar o déficit publico e fiscal? Como sair da recessão? Como gerar crescimento e reduzir as desigualdades e o desemprego? Como ficará o equilíbrio federativo? A sociedade brasileira vai ter de enfrentar um período de decisões profundas sobre as prioridades nacionais, as contas públicas, o funcionamento do Estado, a reativação da economia, a reindustrialização, enfim, essas e outras vulnerabilidades que, diante da crise, ficaram evidentes.


As incertezas são crescentes. Segundo os ministros de comércio exterior do G-20, a economia global em 2020 poderá reduzir-se em 5% ou 6% e o comércio externo, entre 5% e 30%. Como evoluirão a economia e o comércio internacional? Como as duas maiores potências globais, EUA e China, serão afetadas? Como evoluirá a governança global - ONU, OMC, BM, FMI e OMS, entre outros organismos? Como evoluirão a globalização e a dependência dos países e das empresas da capacidade industrial da China nas cadeias produtivas globais? A interdependência vai prevalecer ou as tendências e políticas nacionalistas e isolacionistas dominarão? Como ficará a disputa entre China e EUA pela hegemonia global no século 21? Como reagirão os países emergentes, potências médias, entre as quais se inclui o Brasil? Como os países enfrentarão a desigualdade entre as nações e dentro de seus territórios, cada vez mais uma ameaça à estabilidade política e econômica? Qual será, no mundo, o lugar desse Brasil que emergirá? Como as grandes transformações econômicas, comerciais e políticas afetarão os interesses nacionais? Como o Brasil se posicionará no contexto hemisférico e regional? Como o Brasil deveria reagir se a confrontação EUA-China continuar a se ampliar? Como o Brasil poderá contribuir para o fortalecimento da governança global? Como ficarão as políticas em relação ao meio ambiente e à mudança de clima em face da nova importância nas negociações comerciais, como Mercosul-União Europeia?

Levando em conta o peso da economia nacional, em especial no setor do agronegócio, e a necessidade de melhorar a competitividade do setor industrial e de serviços, com a tendência de descentralização da produção industrial da China, é provável que surjam oportunidades de investimento. Para isso - para competir com países em melhor posição, como Vietnã e outros asiáticos - os problemas internos políticos, econômicos e sociais deveriam ser rapidamente enfrentados para fortalecer a capacidade produtiva nacional. O Brasil vai depender de uma sólida base nacional para competir e para isso deverão ser adotadas medidas efetivas para reindustrialização e aumento da competitividade.

Controlada e superada a crise pandêmica, será importante ter uma visão estratégica de médio e longo prazos das perspectivas relativas à economia e à projeção externa do País. Todos os países vão estar afetados por crises em cascata. Como o Brasil poderá aproveitar as oportunidades e reduzir os riscos de modo a ter uma voz fortalecida no cenário internacional?

Não será fácil chegar a um consenso, pela polarização ideológica, pela divisão da sociedade brasileira e pela ausência de lideranças expressivas que possam inspirar essas discussões. O mundo não vai esperar pelo Brasil. A paralisia dos principais atores políticos e a falta de visão estratégica e de futuro levarão à marginalização e, mais uma vez, o País poderá perder uma oportunidade histórica para se afirmar como potência média a ser ouvida na defesa de seus interesses.

Em vista disso, a sociedade civil - empresários, trabalhadores, academia, junto com o Congresso, o Judiciário e o Executivo - deveria começar a discutir uma estratégia de médio prazo nas áreas interna e externa.

Pensando no Brasil em primeiro lugar e deixando de lado ideologias, os Ministérios da Economia, Agricultura, Itamaraty, SAE, Meio Ambiente e Infraestrutura, em especial, além da Escola Superior de Guerra, e os (poucos) think tanks existentes deveriam somar esforços e iniciar uma discussão com propostas e ações visando ao emprego e ao crescimento para serem postas em vigência em caráter emergencial no pós-pandemia. Um conselho gestor da reconstrução poderia ser criado para coordenar as “medidas de guerra”, que deverão ser tomadas - é bom lembrar - no período que antecede as eleições presidenciais de 2022.

O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo e devemos agir como tal, tendo como objetivo, pelo menos, manter o País nessa categoria.

Desde já, mãos à obra!

O vírus e a república

O presidente Jair Bolsonaro resolveu mais uma vez contrariar as recomendações de isolamento social feitas pelo Ministério da Saúde para conter a pandemia de covid-19 e saiu a passear por Brasília na sexta-feira passada, causando aglomerações e mantendo contato físico com eleitores, atitudes que podem facilitar a transmissão do novo coronavírus. Nada indica que não tornará a fazê-lo quando lhe der na telha. Questionado sobre seu comportamento, o presidente respondeu: “Eu tenho o direito constitucional de ir e vir. Ninguém vai tolher minha liberdade de ir e vir. Ninguém”.

De fato, o direito de ir e vir está entre os direitos e garantias fundamentais de todos os brasileiros, conforme a Constituição. No entanto, diferentemente do presidente da República, a maioria dos cidadãos está cumprindo as determinações dos governos locais, baseadas em consenso médico e científico, para que permaneça em casa e de lá só saia em caso de necessidade. Ou seja, milhões de cidadãos aceitaram um limite temporário a seu direito constitucional de ir e vir em nome da preservação de um precioso bem coletivo, isto é, a saúde pública.

Essa é a essência da ideia de república, em que o desejo pessoal de cada indivíduo, por mais legítimo que seja, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, expresso nas leis pactuadas por políticos democraticamente eleitos. Para que a república se realize plenamente, portanto, é preciso que seus cidadãos desenvolvam consciência cívica, isto é, tenham noção não somente de seus direitos, mas também, e sobretudo, de seus deveres.


Estamos muito longe da república ideal quando justamente o eleito para presidi-la se comporta como se não tivesse qualquer responsabilidade sobre o bem comum. Ao insistir na “volta à normalidade” muito antes do que a prudência recomenda, fazendo demagogia barata à custa da morte de milhares de compatriotas, o presidente Bolsonaro manda às favas seu dever irrenunciável de liderar os esforços para proteger a saúde da população diante da ameaça real da pandemia. Pior: inspira seus mais fanáticos seguidores a fazer campanha contra as determinações dos governantes estaduais e municipais destinadas a forçar o isolamento social.

Assim, não se trata somente de uma divergência em relação à melhor forma de enfrentar a pandemia; trata-se de uma verdadeira sabotagem aos esforços do Ministério da Saúde e de governadores e prefeitos para que o sistema hospitalar tenha condições de atender o máximo possível de doentes, poupando os médicos da terrível tarefa de ter que escolher quem viverá e quem morrerá.

Quando Bolsonaro, na condição de presidente da República, passeia por Brasília, confraterniza com simpatizantes e diz, no seu idioma peculiar, que “parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, estimula muitos brasileiros a imaginar que a crise esteja perto do fim ou que talvez não tenha a gravidade que as autoridades sanitárias – a começar pelo Ministério da Saúde – apregoam. Não à toa, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, queixou-se do comportamento do presidente em entrevista ao Fantástico. Ao defender um discurso “unificado” no governo, baseado na ciência e no bom senso, o ministro Mandetta disse que hoje o brasileiro “não sabe se escuta o ministro ou o presidente”.

Para os bolsonaristas radicais e o próprio Bolsonaro, contudo, não há dubiedade alguma. Não existe bem comum a ser preservado. Só existem os interesses particulares de Bolsonaro e de seus fanáticos seguidores, incapazes de aceitar os limites republicanos para suas vontades. Não por coincidência, são esses que vivem a vituperar contra as instituições republicanas, justamente aquelas que, felizmente, impedem Bolsonaro de realizar plenamente seu projeto de poder.

Afortunadamente, como mostrou um estudo de cientistas políticos divulgado pelo Estado, a maioria dos brasileiros – e dos eleitores de Bolsonaro – é favorável ao isolamento social pelo tempo que for necessário. Ou seja, o bolsonarismo antirrepublicano é minoritário mesmo entre aqueles que um dia votaram no presidente. Na hora da crise, a consciência cívica afinal parece falar mais alto – e as autoridades farão bem se ignorarem o alarido dos que só pensam em si mesmos.

Bolsonaro positivo

Já que faz os exames e não mostra os resultados, toda suposição é válida. Eis uma. O teste de Jair Bolsonaro para a Covid-19 deu resultado positivo no dia 12 de março. Positivo, mas assintomático. Significa que ele pegou o coronavírus, mas este não o afetou e, 15 dias depois, estava teoricamente imunizado. Os outros dois exames a que se submeteu confirmaram o resultado.


Isso explicaria que Bolsonaro possa saracotear à vontade, tirar ouro do nariz e despejar perdigotos em sua claque --sabe que não contaminará nem será contaminado. Passa por valente e mostra que "tinha razão". O fato de que seu exemplo pode levar a milhares de mortes longe dali não lhe diz nada. "Terão mortes", ele já admitiu, esfaqueando a língua. "Paciência", resignou-se. Veremos o que dirá quando essas mortes começarem a se dar em massa entre seus eleitores --será como se os tivesse contaminado um a um.

Mas esqueça o Contaminador nº 1, que estimula o povo a apostar a vida enquanto a dele está garantida pela imunidade física e presidencial. Pense nos que, por arrogância ou ingenuidade, estão desprezando o confinamento. Ao sair para passear, comprar cerveja ou bater papo com a turma na esquina estão esbofeteando um profissional da saúde —que, neste exato momento, trabalha nas mais dramáticas condições e arrisca sua vida por eles. O mesmo sujeito leviano e insensível que se julga invulnerável pode vir a lamentar a falta de médicos —que também se contaminam— no posto a que precisará recorrer quando chegar a sua vez.

É duro saber que o vírus de que tais idiotas serão portadores atingirá médicos, assistentes, enfermeiros, anestesistas, faxineiros e até motoristas de ambulância, por mais protegidos que estejam.

Não será preciso esperar o fim do pesadelo para que os profissionais da saúde sejam alçados, sem discussão, à única categoria a lhes fazer justiça --a de santos modernos.
Ruy Castro

Contra agente de funerária

Nós não vamos cultuar a morte. Nós não vamos cultivar óbitos. Nós vamos cultivar a saúde. Por isso, a nossa orientação é: fique em casa
João Doria, governador de São Paulo

'A democracia brasileira me parece um coxo fugindo a um temporal'

Minha ausência por duas semanas deste espaço, motivada pela Covid-19, realmente me deixou tonto com tudo isso que vem acontecendo. Não porque fui visitado por ele (não se assuste, leitor), mas porque o isolamento a que ainda me submeto (um pouco forçado por mim e pelas informações corretas que leio na imprensa profissional, mas muito forçado pela família), me fez diminuir o pique a que estou acostumado para encarar a hecatombe que se abateu sobre o mundo.

No Brasil, em especial, como sempre, a crise ganhou feições próprias, sobretudo em razão de atitudes inacreditáveis do presidente Jair Bolsonaro, eleito pelo voto direto para representar todos os brasileiros.


Com isso, a crise deixou de ser apenas uma preocupação com a saúde, em primeiro lugar, ou com a economia, em segundo lugar, ou com as duas juntas e ao mesmo tempo. Transformamos a epidemia (ou pandemia) numa crise política grave e perigosa e, o que é pior, sem lideranças capazes de liderá-la. Um risco, sem dúvida, à democracia.

Tenho refletido muito, nesses dias realmente difíceis, sobre as crises por que já passei, ao longo de muitas décadas (para citá-las, precisaria de espaço e tempo). Já assisti à democracia renascer, fenecer e nascer de novo, num dos movimentos mais bonitos da história brasileira, que se deu na eleição do ex-presidente Tancredo de Almeida Neves – que soube liderar o país para retirá-lo das mãos dos insensatos.

A propósito, vêm-me à lembrança a entrevista da poeta mineira Adélia Prado, descoberta por Carlos Drumonnd de Andrade, ao jornal “O Globo”, na semana passada.

É dela este final realmente grandioso, que não resisto deixar de citar, talvez, quem sabe, para melhorar estas tristes e aflitas linhas: “A democracia brasileira me parece um coxo fugindo a um temporal. Manca, tropeça, toma chuva, enlameia-se, mas está viva ainda.

Nossos políticos são (na sua maioria, claro) inacreditavelmente inacreditáveis no seu primarismo, na sua voracidade pelo que há de mais desprezível. Apesar de tudo, ela não perde a fé. Vamos rezar e confiar”. O poeta enxerga mais do que nós…

Vamos rezar e confiar, pobres mortais que somos, e que, dificilmente, quando a vida plena de novo retornar, encheremos nossa boca com palavras como paz, empatia, compaixão, solidariedade, respeito ao outro etc.

O homem, essa criatura inventada por Deus, nunca teme o que poderá vir em consequência do despreparo, por exemplo, com a mãe natureza. Passada a hecatombe, infelizmente, tudo voltará como antes, com os ricos ficando mais ricos, e os pobres, mais pobres. Ou não é assim que sempre foi, leitor? Pessimismo?

Do poeta inglês John Donne (1572-1613): “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte do gênero humano. E por isso nunca perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram por ti”. E é só.

Pensamento do Dia


A Grande Devastação

Ainda é muito cedo para fazer projeções confiáveis sobre o estrago que a pandemia do novo coronavírus provocará nas economias, mas, lá fora, o pessimismo em relação ao Brasil é impressionante. A Economist Intelligence Unit projetou contração de 5,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro neste ano, em linha com a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgada ontem, de queda de 5,3%. O número do Institute of International Finance, entidade que representa os maiores bancos do mundo, é menos pessimista - recuo de 1,8% (ver tabela abixo).

No último boletim Focus, elaborado pelo Banco Central (BC) com base nas projeções feitas pelo mercado, a mediana das projeções prevê queda de 1,96% para o PIB do país em 2020, bem maior que a mediana das opiniões colhidas há uma semana (-1,18%). “Assusta ver uma instituição muito conservadora [o FMI] prevendo contração do PIB do Brasil maior do que a visão de consenso de mercado [no país]. Além disso, a recuperação do Brasil é lenta frente aos Estados Unidos, a Alemanha e por aí vai”, disse a esta coluna o economista Nilson Teixeira, sócio-fundador da gestora de recursos Macro Capital.


De fato, o FMI prevê, em seu Panorama Econômico Mundial, que em 2021 a economia americana, depois de levar um tombo de 5,9% neste ano, crescerá 4,7% no próximo ano, enquanto o Brasil deve ter avanço de 2,9%. A Alemanha teria crescimento negativo de 7% em 2020, mas teria expansão de 5,2% no ano que vem.

Em ambientes de incerteza como o que vivemos, a chance de as previsões errarem o alvo é enorme. Em favor dos economistas, e Nilson Teixeira é um que acerta com grande frequência as suas projeções - dos 18 anos que trabalhou no banco Credit Suisse, atuou como economista-chefe durante 14 -, diga-se que os cálculos não são meros chutes. As projeções são feitas com base na assunção de uma série de dados, a partir de um cenário que considera, inclusive, eventos políticos com força suficiente para interferir no funcionamento da economia.

O problema é que a pandemia do coronavírus é um fenômeno absolutamente inesperado, que não estava nas contas de ninguém. O vírus foi descoberto na China no último dia de 2019 e, apenas 20 dias depois, já havia se disseminado com velocidade incrível por várias cidades e províncias chinesas. O restante do mundo não se deu conta imediatamente da gravidade do que ocorria no país mais populoso do planeta e essa letargia, não se tenha dúvida, é a responsável pela contaminação devastadora que o vírus provocou em nações ricas como Itália, Alemanha, França e, por fim, Estados Unidos, onde está hoje o epicentro da pandemia.

A forma como a China decidiu enfrentar o avanço veloz do vírus - fechando a entrada e a saída de pessoas de cidades com até 15 milhões de habitantes - foi vista no Ocidente como coisa de país autoritário. Sim, o regime chinês é autoritário, mas, se tivessem olhado o tamanho do problema mais de perto, especialistas e autoridades da área de saúde teriam constatado rapidamente que o “lockdown” (o bloqueio das cidades, numa tradução imprecisa) promovido pelo governo chinês é a única estratégia à mão para de se conter a velocidade de contágio do coronavírus, um agente infeccioso novo e cujo DNA tem uma única missão: hospedar-se em células do corpo humano para se reproduzir.

A opção da China deu certo, uma vez que, à medida que os dias foram passando, a curva epidêmica do vírus foi sendo achatada, com o número de novos casos diminuindo dia a dia. O achatamento da curva não tem outro objetivo a não ser conter a evolução do contágio, alongar no tempo a chegada da contaminação ao seu ápice, de forma que o número de novos casos possa ser atendido pelo sistema de saúde de cada país.

Mas o perigo nunca está afastado, uma vez que há o risco de haver uma nova onda de contaminação, uma vez que a China, por exemplo, começou a relaxar as medidas de isolamento social e o “lockdown”. Um possível retorno da pandemia, dizem especialistas, é muito perigoso porque, como ainda não se descobriu uma vacina contra o vírus e a maioria da população ficou isolada em suas casas, o organismo das pessoas não desenvolveu anticorpos contra o novo coronavírus. Uma segunda onda teria, portanto, efeitos ainda mais fortes sobre a saúde da população e devastadores no que diz respeito à economia, à medida que o isolamento social e a restrição ao direito de ir e vir das pessoas teriam que ser novamente postos em prática, paralisando uma vez uma economia já fragilizada pela parada súbita anterior.

O “lockdown”, evidentemente, paralisa a atividade econômica de forma radical. O isolamento social, estratégia recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pelo Brasil e muitos países, é menos rígido que o “lockdown”, mas também faz um estrago gigantesco na economia, especialmente no setor de serviços.

No documento divulgado ontem, o FMI assim definiu o momento vivido pela economia mundial: “O Grande Bloqueio: a pior crise econômica desde a Grande Depressão”. E nós que achávamos que a crise mundial de 2008 tinha sido mais profunda desde 1929

Nesse contexto, as projeções de recuperação rápida em 2021 soam frágeis. Se o Brasil, que está sendo atingido por este tsunami com a economia fragilizada depois de três anos de recessão, seguidos de um triênio em que não avançou acima de 1,3% ao ano, crescer os 2,9% previstos pelo FMI no ano vindouro será o melhor desempenho em quase dez anos.

A sinuca de bico em que Bolsonaro se meteu

Bolsonaro ignora a primeira lei do RH, que até dono de papelaria em Taguatinga conhece: “não demitirás antes de encontrar substituto”. Anunciada a demissão, tem que demitir, senão se desmoraliza.

Mas, se demitir, perde popularidade, deve abrir mão de boa parte da equipe do ministério da Saúde (exatamente quando se aproxima o momento mais crítico), traz as dificuldades futuras para dentro de seu gabinete e fica com um problema monumental: vai botar quem no lugar?

Consta que Bolsonaro quer um nome “incontestável” para substituir Mandetta. Dada a conduta do presidente, não será fácil encontrar alguém respeitável disposto a aceitar o convite (presidente da República ser esnobado é sempre constrangedor). Se encontrar, tal pessoa exigirá do presidente o compromisso de mudar radicalmente de comportamento.


Se Bolsonaro aceitar, e mudar, admitirá que esteve errado todo esse tempo, se desmoralizará e perderá votos até em seu núcleo mais duro. Se disser que vai mudar, mas continuar quem sempre foi, troca seis por meia dúzia e retoma o balé esquizofrênico de hoje, em que o ministro diz uma coisa, o presidente faz o contrário, e os dois continuam se bicando. (Se não conseguir encontrar alguém respeitável em 48 horas, Bolsonaro pode nomear o secretário-executivo do ministério da Saúde, João Gabbardo, como interino: se ele aceitar, continua o balé esquizofrênico).

Outra hipótese é dobrar a aposta e nomear um terraplanista como Osmar Terra. Nesse caso, afora a provável debandada no ministério, Bolsonaro sabotará completamente toda a política de saúde até aqui e tornar-se-á pessoalmente responsável pelo desastre sanitário que se aproxima. O desgaste será incomensurável e periga selar o impeachment.</span>

Bolsonaro meteu-se, sozinho, num beco sem saída. Há quem acredite que ele joga xadrez. Mas parece que joga jogo da velha — e consegue perder para si mesmo.

Na batalha contra o coronavírus, a humanidade carece de líderes

Muita gente atribui a epidemia de coronavírus à globalização e diz que a única forma de impedir mais surtos deste tipo seria desglobalizar o mundo. Construir muros, restringir viagens, diminuir o comércio. Entretanto, embora neste momento a quarentena seja fundamental para deter a epidemia, instaurar o isolamento em longo prazo provocará um desmoronamento econômico e não proporcionará nenhuma proteção genuína contra as doenças infecciosas. Pelo contrário. O verdadeiro antídoto contra uma epidemia não é a segregação, e sim a cooperação.

As epidemias matavam milhões de pessoas muito antes da atual era de globalização. No século XIV não havia aviões nem grandes navios e, apesar disso, a peste negra se propagou do leste da Ásia até a Europa Ocidental em pouco mais de uma década. Causou a morte de entre 75 e 200 milhões de pessoas, mais de um quarto da população da Eurásia. Na Inglaterra, faleceram 4 de cada 10 pessoas. A cidade de Florença perdeu a metade dos seus 100.000 habitantes.

Entre os que desembarcaram no México em março de 1520 havia um único portador da varíola, Francisco de Eguía. Naquela época, obviamente, não existiam trens e ônibus na América, nem sequer burros. Apesar disso, de março a dezembro a epidemia de varíola assolou toda a região e matou, segundo algumas estimativas, um terço da sua população.

Em 1918, uma cepa especialmente virulenta da gripe conseguiu se propagar em poucos meses até os cantos mais remotos do planeta. Infectou 500 milhões de pessoas, mais de uma quarta parte da espécie humana. Calcula-se que a gripe tenha matado 5% da população da Índia. Na ilha do Taiti, 14% morreram, e em Samoa foram 20%. Ao todo, aquela pandemia causou a morte de dezenas de milhões de pessoas —talvez até 100 milhões— em menos de um ano. Mais mortes que a Primeira Guerra Mundial em quatro anos de brutais combates.

No século transcorrido desde 1918, a humanidade se tornou cada vez mais vulnerável às epidemias, devido a uma mistura de aumento da população e melhores transportes. Uma metrópole moderna como Tóquio ou a Cidade do México oferece aos agentes patogênicos umas reservas de caça muito mais ricas que a Florença medieval, e a rede mundial de transportes é muito mais rápida que em 1918. Um vírus pode abrir caminho de Paris a Tóquio e ao México em menos de 24 horas. Por conseguinte, deveríamos ter previsto a possibilidade de viver um inferno infeccioso, com uma praga mortal depois da outra. Entretanto, tanto a incidência como as repercussões das epidemias diminuíram de forma espetacular. Apesar de surtos horríveis como o de AIDS e ebola, no século XXI as epidemias matam muito menos gente que em qualquer outra etapa da história. O motivo é que a melhor defesa dos seres humanos frente aos agentes patogênicos não é o isolamento, e sim a informação. A humanidade está ganhando a guerra das epidemias porque, na corrida armamentista entre os agentes patogênicos e os médicos, os primeiros só podem recorrer a mutações cegas, enquanto os segundos contam com a análise científica da informação.

Quando a peste negra golpeou, no século XIV, as pessoas não tinham nem ideia do que a causava nem como curá-la. Até a época moderna, os seres humanos estavam acostumados a atribuir as doenças a deuses irados, a demônios perversos ou aos maus ares, e nem suspeitavam da existência de bactérias e vírus. Os indivíduos acreditavam em anjos e fadas, mas não eram capazes de imaginar que uma só gota de água pudesse conter toda uma frota de predadores letais. Por isso, quando a peste negra ou a varíola apareciam, o máximo que ocorria às autoridades era organizar rezas coletivas a diversos deuses e santos. E isso não servia de nada. Aliás, quando as pessoas se reuniam para as rezas coletivas, a infecção costumava ser propagar.
Um vírus pode abrir caminho de Paris a Tóquio e ao México em 24 horas


Durante o último século, cientistas, médicos e enfermeiros de todo o mundo reuniram e trocaram informações que lhes permitiram compreender o mecanismo de atuação das epidemias e os métodos para combatê-las. A teoria da evolução explicou como e por que doenças novas aparecem e as velhas se tornam mais virulentas. A genética permitiu que os cientistas examinassem o próprio manual de instruções dos agentes patogênicos. Enquanto na Idade Média nunca se descobriu o que causava a peste negra, os cientistas atuais não levaram mais de duas semanas para identificar o coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver um exame confiável para identificar pessoas infectadas.

Quando os cientistas compreenderam o que causa as epidemias, foi muito mais fácil lutar contra elas. As vacinas, os antibióticos, mais higiene e infraestruturas médicas muito melhores permitiram que a humanidade virasse o jogo contra seus predadores invisíveis. Em 1967 houve 15 milhões de pessoas contagiadas por varíola, das quais dois milhões morreram. Na década posterior se desenvolveu uma campanha mundial de vacinação com tanto sucesso que, em 1979, a Organização Mundial da Saúde declarou que a humanidade tinha vencido e que a varíola estava completamente erradicada. Em 2019 não houve nem uma só pessoa infectada ou morta pela varíola.

O que a história nos ensina para a atual epidemia de coronavírus?

Em primeiro lugar, nos dá a entender que não podemos nos proteger fechando de forma permanente nossas fronteiras. Recordemos que as epidemias se propagavam com rapidez já na Idade Média, muito antes da era da globalização. Portanto, mesmo que situássemos nossas conexões internacionais à altura das da Inglaterra em 1348, isso não bastaria. Se quisermos um isolamento que nos proteja de verdade, não basta o da época medieval. Teríamos que voltar à Idade de Pedra. Somos capazes disso?

Segundo, a história indica que a autêntica proteção se obtém com o intercâmbio de informações científicas confiáveis e a solidariedade mundial. Quando um país sofre uma epidemia, deve estar disposto a compartilhar as informações sobre o surto com sinceridade e sem medo da catástrofe econômica, enquanto que outros países devem poder confiar nessas informações e ajudar a vítima ao invés de repudiá-la. Hoje, a China pode oferecer muitas lições importantes sobre o coronavírus, mas isso exige muita confiança e cooperação.

Essa cooperação internacional é necessária também para que as medidas de quarentena sejam eficazes. As quarentenas e os isolamentos são essenciais para deter as epidemias. Mas, quando os países desconfiam uns de outros e cada um acha que está sozinho, os Governos não se decidem a tomar medidas tão drásticas. Se descobríssemos 100 casos de coronavírus em nosso país, fecharíamos imediatamente cidades e regiões inteiras? Em grande parte, depende do que esperamos de outros países. O fechamento das cidades pode conduzir à crise econômica. Se pensarmos que outros países irão nos ajudar, será mais provável que tomemos uma decisão tão radical. Mas, se acreditarmos que outros países irão nos abandonar, certamente hesitaremos e já será tarde demais quando agirmos.

O mais importante que as pessoas precisam saber sobre as epidemias é talvez que a propagação da doença em qualquer país põe toda a espécie humana em perigo. O motivo é que os vírus evoluem. Os vírus como o corona têm sua origem em animais —morcegos, por exemplo. Quando passam aos humanos, estão mal adaptados aos seus organismos. Depois, sofrem mutações ocasionais ao se duplicarem. Em sua maioria são inócuas, mas, de vez em quando, uma mutação torna o vírus mais infeccioso ou mais resistente ao sistema imunológico humano, e então essa cepa mutante se propaga a toda velocidade entre a população. Como uma só pessoa pode abrigar trilhões de vírus em processo constante de duplicação, cada pessoa infectada oferece ao agente patogênico trilhões de oportunidades de se adaptar mais aos seres humanos. Cada portador é como uma máquina de jogos que proporciona trilhões de bilhetes de loteria ao vírus, e para que este progrida basta que um desses bilhetes seja o ganhador.

Não se trata de meras especulações. O livro Crisis in the red zone (“Crise na zona vermelha”), de Richard Preston, descreve uma cadeia de acontecimentos semelhante na epidemia de ebola de 2014. O surto eclodiu quando alguns vírus do ebola saltaram de um morcego para uma pessoa. Eram vírus que faziam as pessoas adoecerem gravemente, mas que continuavam mais adaptados a viver nos morcegos que nos humanos.

O que fez o ebola deixar de ser uma doença relativamente incomum para se tornar uma epidemia brutal foi uma só mutação em um só gene de um só vírus de ebola em uma só pessoa, em algum ponto da região de Makona, na África Ocidental. A mutação permitiu que a nova cepa —chamada cepa de Makona— se vinculasse às moléculas transportadoras do colesterol, que, em lugar de colesterol, começaram a introduzir ebola nas células. Como consequência, a cepa de Makona se tornou quatro vezes mais infecciosa.

É possível que, enquanto você lê estas linhas, esteja ocorrendo uma mutação similar em um só gene do coronavírus que contagiou alguma pessoa em Teerã, Milão ou Wuhan. Se for assim, trata-se de uma ameaça não só para os iranianos, os italianos e os chineses, e sim para todos nós. As pessoas de todo o mundo têm o mesmo interesse, de vida ou morte, em não dar esta chance ao coronavírus. E isso significa proteger todas as pessoas em todos os países.

Na década de 1970, a humanidade conseguiu derrotar o vírus da varíola porque todo mundo se vacinou, em todas as partes. Se um só país não tivesse vacinado a sua população, poderia ter posto em perigo a toda a humanidade, porque, enquanto o vírus da varíola existisse e evoluísse em algum lugar, sempre poderia se propagar por todo lado.

Na luta contra os vírus, a humanidade precisa vigiar rigorosamente as fronteiras. Mas não as fronteiras entre países, e sim a fronteira entre o mundo humano e o mundo dos vírus. O planeta Terra está cheio de inumeráveis vírus, e constantemente aparecem e evoluem muitos outros devido às mutações genéticas. A linha que separa esta virusfera do mundo humano se encontra no interior do corpo de todos os seres humanos. Se um vírus perigoso consegue atravessar essa linha em qualquer lugar da Terra, põe toda a espécie humana em perigo.

No último século, a humanidade fortificou essa fronteira como nunca antes. Os sistemas modernos de saúde foram construídos para murar essa fronteira, e os enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que patrulham e repelem os invasores. Entretanto, a fronteira tem grandes trechos que, infelizmente, estão descobertos. Há no mundo centenas de milhões de pessoas que carecem dos cuidados sanitários mais básicos, e isso é um risco para todos. Estamos acostumados a falar dos sistemas de saúde do ponto de vista nacional, mas proporcionar uma saúde melhor aos iranianos e chineses também contribui para proteger israelenses e norte-americanos de uma epidemia. Isto deveria ser evidente para todos, mas infelizmente é algo que escapa inclusive a algumas das pessoas mais importantes do mundo.

A humanidade enfrenta hoje uma grave crise, não só devido ao coronavírus, mas também pela falta de confiança entre as pessoas. Para superar uma epidemia, é preciso confiar nos especialistas científicos, os cidadãos precisam confiar nas autoridades, e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis solaparam deliberadamente a fé na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Assim agora enfrentamos esta crise sem nenhum líder mundial capaz de inspirar, organizar e financiar uma resposta global coordenada.

Durante a epidemia de ebola de 2014, os Estados Unidos desempenharam essa liderança. Também o fizeram durante a crise financeira de 2008, e conseguiram pôr suficientes países de acordo para evitar uma crise econômica mundial. Nos últimos anos, pelo contrário, os Estados Unidos renunciaram a esse papel. O Governo atual reduziu as ajudas a organizações internacionais como a OMS e deixou muito claro que os Estados Unidos não têm amigos, só interesses. Quando estourou a crise do coronavírus, os EUA se mantiveram à margem, e até agora relutam em assumir a iniciativa. Mesmo que afinal queira fazê-lo, a confiança no Governo norte-americano atual se erodiu a tal ponto que poucos países estariam dispostos a se deixar guiar por ele. Seguiríamos um chefe cujo lema é “Eu primeiro”?

O vazio deixado pelos Estados Unidos não foi preenchido por ninguém. Pelo contrário. A xenofobia, o isolamento e a desconfiança são hoje as principais características do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade mundial não poderemos deter a epidemia de coronavírus, e certamente veremos mais epidemias deste tipo no futuro. Mas cada crise representa também uma oportunidade. Confiemos em que a atual ajude a humanidade a ver o grave perigo que a desunião causa.

Por exemplo, a epidemia poderia servir para que a União Europeia recupere o apoio popular que perdeu nos últimos anos. Se os membros mais afortunados da União se apressarem em enviar dinheiro, material e pessoal médico rapidamente a seus sócios mais golpeados, isso provaria o valor do ideal europeu melhor do que todos os discursos. Se, pelo contrário, se deixar que cada país se vire como puder, a epidemia poderia prenunciar o fim da União Europeia.

Neste momento de crise, a batalha crucial está sendo travada dentro da própria humanidade. Se a epidemia criar mais desunião e desconfiança entre os seres humanos, o vírus terá obtido sua maior vitória. Quando os humanos brigam, os vírus se duplicam. Em troca, se a epidemia produzir uma maior cooperação mundial, essa será uma vitória não só contra o coronavírus, mas contra todos os futuros agentes patogênicos.
Yuval Noah Harari

Brasil da bomba-relógio


Quem é o inimigo?

É mais comum e plausível atribuir problemas e dificuldades a inimigos externos do que a sentimentos, indecisões e frustrações que vêm de dentro de nós mesmos. Bruxos, feiticeiros, demônios e inimigos são extravagantes. Pessoas deformadas, seres intermediários, gênios ou estrangeiros. Recriminamos quem não sabe bem o seu lugar; ou quem simplesmente não cabe num sistema classificatório.

Basta um mínimo de saber psicológico para desvendar o problema: os inimigos nem sempre vêm de fora. De fato, quem regularmente nos ataca somos nós mesmos — ou um pedaço não percebido de nós que inevitavelmente vira quinta-coluna ou carrasco. Seja porque é negado, seja porque jamais é levado em conta e, eis um problema capital: seja porque nós somos inseguros ou ignorantes.

O coronavírus vem de fora para dentro, mas torna-se letal quando se instala dentro de nós. Então, como um pesadelo, ele nos tira a paz. É muito mais fácil lutar contra um inimigo claramente marcado do que enxergar os mecanismos que usamos para nos adoentar.

E nisso o Brasil, que experimentou todos os regimes políticos, tem sido campeão. Pois se mesmo nas democracias originais e consolidadas é complicado ser democrata; imagine fazer isso tendo como base um regime monárquico e escravocrata no qual os negros eram seres legalmente classificados como semi-humanos. Um sistema, ademais, cujos intelectuais estavam convencidos pela ideia simplista (para não dizer cretina) de que num lugar idealizado chamado “Europa” existiam sociedades perfeitas.


Apesar dos dissabores, falamos com mais objetividade da Covid-19 do que com o que ela, como um hóspede execrável, demanda. O problema não é só a letalidade do vírus, mas como, num país de mandões, organizar as autoridades que eventualmente politizam o vírus para tirar da pandemia pequenas desforras como se fossem crianças disputando bolas de gude — quando, na verdade, a doença nos obriga a enxergar os frutos podres de um país desgraçadamente arruinado por uma desigualdade interna pela qual ele é o único responsável.

Como se a aposta no tanto pior melhor e todo esse desamor pelo Brasil não fossem suficientes, assistimos abestalhados um teatro de horrores produzido pelo próprio presidente da República, que, conscientemente, sabota o bom senso, a racionalidade e as esperanças de quem o elegeu.</p><p>Eis um líder que não sabe quem é o inimigo nesta lamentável sociedade de patrões que ainda discute se o socialismo de Estado inevitavelmente autoritário é melhor do que um liberalismo econômico probo fundado na igualdade como um valor e coadjuvado por filantropia. Essa inconsciência sobre quem é o inimigo revela como somos os maiores inimigos de nós mesmos.

Eu vivi o suicídio de honra de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros — suicídios políticos que quase destruíram as esperanças de mais igualdade numa democracia incipiente. Guardando as singularidades, em ambos os casos o maior obstáculo não veio de fora, mas de dentro.

Tal como a Lisboa dos 1800 viu a família real e a sua corte abandonar o reino, estamos vendo hoje um eleito dilapidar com gosto epidêmico e sem piedade o seu capital eleitoral. Se Vargas se matava por motivos morais, se Jânio Quadros abandonava o palco por conta de “forças ocultas”— fantasmas que podem ser atribuídos mais a Jânio do que ao sistema político —, hoje assistimos estupidificados a um presidente usar o seu papel mais para discordar, desafiar e agredir do que para executar as regras que jurou solenemente levar a sério.

Há um conhecido adágio na área da administração. Em geral, o medíocre prefere a mediocridade. Escolher quem é melhor pode causar o desconforto do confronto inevitável com a sua própria burrice, mas traz felicidade para a categoria ou para a terra que você lidera.

Caso contrário, faça como o personagem de Machado de Assis, o Dr. Simão Bacamarte, que se internou no manicômio criado por ele próprio porque, depois de alienar todo mundo, ele agora sabia que o louco era ele.<

Assombrações

Depois aquela fase passou, mas agora eu tinha mais mortos na memória do que na infância — quantos conhecidos e amigos meus haviam partido depois de terríveis doenças –, e mesmo as angústias se centuplicaram, tanto que às vezes, em Milão, eu acordava de chofre, certo de que ladrões e assassinos estavam na minha casa, e perambulava insone pelos cômodos, estremecendo quando um reflexo de luz projetava na parede a folhagem móvel das árvores do pátio como se fosse uma presença feroz
Domenino Starnone, "Assombrações"

Não há lado bom na tormenta

Está muito difícil. Desesperador para os mais necessitados. A linha de miséria no Brasil atinge os piores níveis. Mais de 52 milhões de brasileiros viviam até 2019 com menos de $ 500 ao mês. Hoje, a situação é ainda mais grave, escoltada pela multiplicação dos casos de Coronavírus, e seus mortos. Esses sim, com nome e sobrenome.

Quem diz que há um lado bom, não sabe o que diz. Aprender a tocar violão, exercitar o inglês, organizar a casa, ficar mais perto da família, dos filhos...  Válvulas apenas, instinto de sobrevivência para encarar o caos instalado no mundo. Questão de sanidade, higidez. Justíssimo. Quem pode, deve faze-lo.

Os miseráveis não tem essa brecha. O tempo e a fome tem pressa. Eles se amontoam nas filas da Receita Federal para regularizar a vida fiscal. Depois, se enfileiram, grudados um no outro, para receber a doação do governo, R$ 600,00.



Não, não há lado bom. O presente é incerto. O futuro não existe. Os isolados não vem filhos, netos, amigos. E há quem diga que o vírus maldito irá circular por muitos meses assombrando a população. Não apenas os idosos, ou os chamados grupos de risco. Todo o mundo, literalmente, vai conviver por meses com o espectro da doença e da morte.

Que lado bom é esse quando se tem no Brasil um desatinado eleito por mais de 50 milhões de brasileiros que se recusa a liderar o país no combate ao que mais aflige o mundo? Catástrofe anunciada. Lunático, amputa qualquer efeito do único remédio capaz de frear o mal, contrapondo-se à ciência e aos especialistas.

O lado bom na desorganização irresponsável desse governo poderia ser Luiz Henrique Mandetta. Ainda que de olho nas urnas, Mandetta estava num caminho mais seguro, com informações precisas e orientações relevantes para a população temente à tragédia. Seu brilho, apesar de fortuito, ofuscou ainda mais o raciocínio de um Bolsonaro parvo e incapaz.

Mandetta não é santo. Nem burro. Deixar agora o governo é a alternativa mais confortável para quem quer se candidatar em 2022 ao governo do seu Estado, ou num salto mais ambicioso, à presidência da República. Mandetta quer sair antes que os cadáveres se amontoem nas portas dos hospitais. De caso pensado, subiu o tom contra o chefe, em entrevista ao Fantástico, nesse domingo.

Entre o estúpido e o afetado, o lado ruim e o lado bom, ficamos nós. Mandetta tem todo o direito de pegar o chapéu. Cansou de ser desmoralizado publicamente. Quer abandonar o paciente. Quando o paciente morrer, ele já não terá nada a ver com isso. Resta saber se Bolsonaro demitirá Mandetta, como prefere o ministro. Ou aumentará a fervura. A corda está esticada, e não há lado bom.

E como se tudo isso não bastasse, lá se vai Moraes Moreira. Leva nossa pouca alegria e o exato sentido de liberdade. Não pode haver lado bom. É o Brasil descendo a ladeira.

É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável?

Se hoje o presidente da República batesse à porta das pessoas sugerindo estricnina para tratar cólicas, possivelmente não seria removido em uma camisa de força. Provavelmente surgiria aí um debate nacional. Especialistas de coisa nenhuma sairiam dos bueiros para adulá-lo, o bom senso se insurgiria, carreatas de novos e velhos ricos cafonas enfeariam as ruas e estaria instalada mais uma balbúrdia.

A atual pandemia já matou mais de 100 mil pessoas, com uma média subestimada de cerca de 100 mortos por dia no Brasil. Brincar com isso, desprezar isso, é só irresponsabilidade?


Entre um passeio e outro à padaria, Bolsonaro se insurge contra o mundo e busca sabotar o trabalho do ministro que se recusou a aderir ao batalhão dos paspalhos.

Em um caso que envolve vidas, muito mais de cem mil, você prefere estar ao lado da ciência, do bom senso, da razão ou ao lado da ala cafajeste do empresariado e de gente como o profeta Osmar Terra, que há alguns dias disse que a Covid-19 mataria menos gente do que a gripe sazonal do Rio Grande do Sul. Era uma aposta corajosa, que, em suas próprias palavras, poderia desmoralizá-lo por completo —e nesse ponto não podemos negar que ele estava coberto de razão.

Poupem-me da suposição de que Bolsonaro esteja preocupado com os miseráveis. Em toda a sua longa carreira política,só se lembrou de pobres para defender a sua esterilização em massa. O presidente nem esconde que seu real temor é ser culpado pela debacle econômica, levando seu governo, de vez, para o beleléu.

Não há, em um momento como esse, "ninguém em sã consciência preocupado com popularidade", assegurou nesta segunda (13) Sergio Moro, mestre em dizer pouco falando muito e em dizer muito não falando nada.

Embora também odeie artigos que deixam as perguntas no ar, transfiro ao leitor e à leitora a conclusão.É correto chamar Bolsonaro só de irresponsável? Como diziam e dizem colegas muito mais gabaritados do que eu, cartas à Redação.

Na mensagem de Páscoa, Bolsonaro mentiu e insultou a inteligência da nação

No domingo de Páscoa nas redes sociais se cruzavam em todo o mundo mensagens de empatia, compaixão, solidariedade, esperança e medo em relação à tragédia do novo vírus. Chegaram a viralizar vídeos em que os heroicos médicos e enfermeiros que se expõem para salvar vidas ganham aplausos e canções.

Enquanto isso, no Brasil, seu presidente, Jair Bolsonaro, em sua mensagem de domingo de Páscoa, mentiu à nação e insultou a inteligência das pessoas ao afirmar, contra todos os prognósticos médicos e científicos, que aqui o vírus “parece estar desaparecendo”, e continua provocando para que as pessoas saiam às ruas para trabalhar.


A realidade é totalmente o contrário. No Brasil a curva de infectados e mortos está apenas começando e segundo ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, os meses mais críticos serão maio e junho. E mais, os especialistas afirmam que, pelo escasso número de testes realizados, os números do coronavírus já devem ser dez vezes mais altos.

Enquanto as pessoas passaram a Páscoa tristes e solitárias, Bolsonaro pareceu insensível à dor alheia. O presidente sempre se diz católico e evangélico. E o dia de Páscoa representa aos cristãos a vitória da vida sobre a morte, da esperança sobre o pessimismo.

Nesse dia Bolsonaro se limitou a dizer que o importante é que “nós aqui na terra, quando chegar nosso dia, estaremos ao lado de Deus”. De qual Deus? Porque no Brasil são professadas muitas religiões diferentes. E os sem Deus? Os agnósticos e ateus e seguidores dos ritos africanos não são brasileiros? Não somos um Estado laico pela Constituição?

O presidente em suas mensagens comentando o drama do coronavírus revela, na verdade, seus instintos de matiz nazista ao não dar importância ao problema dos idosos e dos mais frágeis que já possuem alguma doença crônica e que seriam os mais atingidos. Instigando outros a sair às ruas aumenta o perigo de contaminação dessas pessoas do grupo de risco dentro das famílias. Ele só faltou evocar os campos de concentração de triste memória.

A falta de empatia do presidente com os mais frágeis ofende o espírito da comemoração pascal que fala da redenção de todos os considerados inúteis à sociedade. Eles são vistos mais como um peso morto ao ex-capitão para quem parece que só têm direito à vida os jovens, os saudáveis e os produtivos.

Enquanto em todo o mundo todas as forças da nação sem distinção de credo político tentam se juntar para ganhar a guerra ao vírus, o presidente brasileiro fica cada vez mais isolado em seus sonhos de que a pandemia é uma bobagem e um engano, que conduz somente à quebra da economia e que, no máximo, poderá eliminar os que menos importam.

Em sua mensagem de domingo o presidente se limitou a dizer: “Vivemos um momento difícil e sabemos quem pode nos curar: Deus, sempre acima de tudo”. Desse modo, e continuando em confronto e desmentindo a cada dia seu próprio ministro da Saúde, se alguém não o parar, sua mão pode acabar conduzindo o país a uma crise e a uma hecatombe sem precedentes.

Manter o empenho em continuar considerando o presidente como um desequilibrado com cada vez menos crédito que parece falar somente por seus instintos de morte e suas alucinações paranóicas, deixando-o no poder, é abandonar um país como o Brasil a sua própria sorte. E isso quando a nação mais precisaria de uma liderança segura compartilhada com todas as outras forças da nação.

O presidente brasileiro, que se diz católico, não só desafiou em sua mensagem os brasileiros levando-os a minimizar a tragédia, como a seu próprio Deus. Deveria lembrar, por exemplo, as palavras de Jó na Bíblia quando se pergunta: “Quem poderá desafiar a Deus e sair vitorioso?”. Na verdade, o presidente saudoso da ditadura já foi derrotado em sua teimosia de querer negar a luz do sol.

Os desafios contínuos de Bolsonaro não somente a Deus como à vida das pessoas já o tornam, ele querendo ou não, um claro perdedor.