segunda-feira, 5 de julho de 2021

O bolsonarismo e sua paixão mórbida pela Bíblia

Na Comissão do Senado que investiga os possíveis crimes cometidos pelo presidente Jair Bolsonaro por ocasião da pandemia, a Bíblia foi citada várias vezes. São especialmente os defensores de Bolsonaro que a usam como arma de defesa na chamada CPI da Pandemia.


Já o hoje presidente, quando era um simples deputado, defendeu no Congresso que o Estado é laico, mas “o Brasil é cristão”, e acrescentou: “E quem não gostar, pode ir embora”.

Quando foi eleito presidente, levantou a Bíblia nas mãos junto com a Constituição. Em seu lema como chefe de Estado, escolheu a frase bíblica: “a verdade vos libertará” e acrescentou: “Deus acima de tudo”. Essa paixão pela Bíblia do bolsonarismo raiz, além de mórbida, é perigosa, porque está próxima do teocentrismo de alguns países islâmicos envolvidos com o terrorismo. E nada é mais perigoso do que usar a Bíblia como instrumento de violência.

O Governo Bolsonaro já teve um ministro da educação que pretendia substituir os livros didáticos pela Bíblia nas escolas. O que os bolsonaristas ignoram é que é precisamente a Bíblia, e especialmente o Novo Testamento, que condena a mentira, que é um dos elementos mais usados pelo bolsonarismo.

O capitão genocida já nos habituou a usar as crianças para seus ensinamentos a favor da violência e das armas. Já durante sua campanha eleitoral, uma foto se tornou viral e escandalizou. Foi quando, rodeado de seguidores, tomou nos braços uma menina de cinco anos e ensinou-a a fazer o gesto de disparar um revólver com suas mãos inocentes.


É estranha essa paixão e simbolismo mórbidos de usar crianças em gestos relacionados com a violência. Assim foi dias atrás sua violência moral levada a cabo em sua visita ao Rio Grande do Norte, com uma menina e um menino de 10 anos. Pediu a ela, que ia recitar um poema, que tirasse a máscara. Ao garoto, que pegou nos braços, ele mesmo a arrancou em meio às pessoas, expondo ambos ao perigo do contágio. É difícil saber o que esses dois gestos de violência com essas crianças podem representar um dia em suas vidas.

O que está claro é que Bolsonaro usa até com os pequenos seu fascínio pela violência e pela morte. Não por acaso transmitiu aos três genros essa paixão desesperada pelas armas e pela morte. É impressionante, por exemplo, uma foto em que aparecem ele e seus três filhos, Flávio, Eduardo e Carlos, imitando com as mãos o gesto de disparar uma arma enquanto riem às gargalhadas.

Depois do novo escândalo de corrupção das vacinas que está aterrorizando o presidente, é visível seu nervosismo e seu pavor de que possa ser deposto do cargo. Aquele que se apresentou como o Savonarola contra a corrupção, alardeando que não existia em seu Governo, hoje aparece nu sem saber onde se esconder. Sua única defesa é o ataque, que a esta hora soa falso e revela mais sua fraqueza do que sua força.

Nas manifestações de protesto convocadas para este sábado contra Bolsonaro e sua política de morte na gestão da pandemia, deveriam ser destacados os escândalos de corrupção com as vacinas, considerado um crime sem perdão porque custou muitas vidas, bem como o gesto de violência cometido com as crianças a quem tirou as máscaras.

Bolsonaro, que gosta tanto da Bíblia, deveria ser lembrado de que a única vez que Jesus pede a pena de morte é contra aqueles que “escandalizam uma criança”. É uma passagem que também deveria ser destacada nas manifestações. Essa página bíblica em que Jesus pede a pena de morte para quem escandaliza uma criança, explica que seria melhor “que lhe pusessem o pescoço em uma roda de moinho e que o jogassem ao mar”.

Nas manifestações, se voltará a exigir a saída de Bolsonaro do poder por conta dos escândalos de corrupção na compra de vacinas. Há quem peça a pena de prisão. Mas se o crime de corrupção é grave, não é menos grave o gesto violento de arrancar a máscara do rosto de uma criança inocente.

Desde suas origens a Igreja deu importância especial àquela passagem dos Evangelhos canônicos em que Jesus pede a pena de morte para quem escandaliza uma criança. Essa afirmação tão dura deve ter impressionado tanto os primeiros cristãos que aparece em três dos evangelhos canônicos (Mt, 18; Mc, 9 e Lc, 9), sinal de que foi um dos episódios da vida de Jesus que mais chocaram as primeiras comunidades de seus seguidores.

Se não há perdão para os abutres que se alimentam da carniça da corrupção das vacinas, tampouco deve haver para quem que escandaliza e corrompe uma criança. Que nem a CPI nem o Supremo se esqueçam disso, já que o Congresso aparece com os ouvidos surdos ao grito da rua que pede “fora, Bolsonaro, já”.

A lei e a família

O Estado Democrático de Direito exige a investigação de fatos suspeitos e indícios de crime. Ninguém está acima da lei. Para isso, é fundamental que as instituições possam, dentro de suas respectivas competências, funcionar de forma independente.

O governo Bolsonaro atua em sentido contrário à elucidação dos fatos, seja negando qualquer possibilidade de corrupção no governo federal – daí que toda investigação seria por princípio desnecessária –, seja tentando que as instituições operem dentro de uma lógica de lealdade pessoal. O critério já não seria apenas a lei, mas principalmente as relações pessoais.


Tal modo de agir do governo Bolsonaro não é nenhum segredo. Ao explicar no ano passado a escolha que havia feito para o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Bolsonaro foi explícito: “Kassio Nunes já tomou muita tubaína comigo. (…) A questão de amizade é importante, né?”.

Diante desse exercício do poder despudoradamente antirrepublicano, são especialmente relevantes duas recentes decisões do Supremo, determinando o prosseguimento de investigações que envolvem o presidente Jair Bolsonaro e três de seus filhos.

No dia 28 de junho, os senadores Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Fabiano Contarato (Rede-ES) e Jorge Kajuru (Podemos-GO) enviaram ao STF notícia-crime pedindo a abertura de inquérito para investigar se o presidente Bolsonaro cometeu crime de prevaricação no caso da negociação da vacina indiana Covaxin. De forma um tanto esquisita, tendo em vista a gravidade dos fatos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) não tomou nenhuma providência. Disse que era preciso esperar o término da CPI da Pandemia.

Diante dessa passividade – muito conveniente, por sinal, aos interesses do Palácio do Planalto –, a ministra Rosa Weber foi contundente. “No desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República. Até porque a instauração de Comissão Parlamentar de Inquérito não inviabiliza a apuração simultânea dos mesmos fatos por outros atores investidos de concorrentes atribuições, dentre os quais as autoridades do sistema de justiça criminal.”

Na decisão, a ministra Rosa Weber determinou a reabertura de vista dos autos à PGR. Então, só então, o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, pediu a abertura de inquérito contra o presidente Jair Bolsonaro a respeito da acusação de prevaricação. Vê-se como é importante insistir na defesa do Direito.

O segundo caso em que o Supremo precisou contornar o desinteresse da PGR em contrariar Jair Bolsonaro refere-se à investigação dos atos antidemocráticos. Apesar de a Polícia Federal ter encontrado indícios de crime, a PGR pediu o arquivamento do Inquérito (INQ) 4.828, que apurava a realização e o patrocínio desses atos.

Em deferência às atribuições do Ministério Público, o ministro Alexandre de Moraes acolheu o pedido da PGR, arquivando o INQ 4.828. No entanto, na mesma decisão, o ministro determinou a abertura de um novo inquérito com o objetivo de investigar grupos que atacam a democracia.

“A análise dos fortes indícios e significativas provas apresentadas pela investigação realizada pela Polícia Federal aponta a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inquérito 4.781, com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito”, escreveu Alexandre de Moraes.

Na decisão, os três filhos mais velhos do presidente – Flávio, Carlos e Eduardo – são mencionados na condição de arrolados pela Polícia Federal como possíveis integrantes de organização criminosa destinada a atacar a democracia.

O Estado deve ser capaz de investigar com isenção todos os fatos suspeitos, sejam quais forem os envolvidos. Não existe imunidade ou impunidade por parentesco. Numa República, todo cidadão é responsável perante a lei pelos seus atos, sem discriminações nem privilégios.

Desmatar, matar e roubar

Matar e desmatar são verbos que têm uma forte relação entre si. Na verdade, a violenta tarefa de desmatar predispõe o ser humano a matar.

Uso o verbo desmatar num sentido mais amplo de devastação da natureza. Pensadores alemães, com diferentes trajetórias e visões políticas, chegaram a conclusões semelhantes ao analisar o país no fim da Segunda Guerra.

Martin Heidegger afirmava que, ao transformar o mundo num objeto de inescrupulosa dominação sobre a natureza, o sujeito humano acabava se concebendo como uma coisa entre coisas.

Num outro ponto do espectro ideológico, Theodor Adorno e Max Horkheimer, em “Dialética do esclarecimento”, argumentavam que a violência que se impõe à natureza acaba se voltando contra a própria natureza interna do ser humano.

Ambos queriam explicar, entre outras coisas, as atrocidades do nazismo.


Durante todo este período do governo Bolsonaro, matar e desmatar sempre estiveram no centro de nossa crítica. Animais queimados, árvores derrubadas e índios dizimados e amedrontados por garimpeiros e desmatadores foram apenas um lado da moeda.

O outro lado: mais de meio milhão de mortes parcialmente provocadas por uma política negacionista, agravada por uma absoluta falta de empatia.

Durante quase dois anos, fixamos nossas denúncias no eixo montado pelos verbos matar e desmatar. Não foi inútil, uma vez que quase um terço dos eleitores de Bolsonaro já se mostrou arrependido de sua escolha em 2018.

Creio que um número maior ainda poderia se descolar de sua base de apoio ao se convencer de que desmatar e matar são políticas com que não concordam.

Estávamos nessa toada quando surgiu um outro verbo em nosso escasso vocabulário: roubar.

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, caiu por causa de duas robustas investigações que apontam sua cumplicidade com desmatadores ilegais.

Logo em seguida, as denúncias que caem sobre a destruição da natureza e o negacionismo no combate ao coronavírus são associados a suspeitas de corrupção na compra das vacinas indianas.

Todo o paciente e diuturno esforço para descrever matar e desmatar, assim como a profunda relação entre eles, ganha um novo impulso com a aparição da terceira ponta do triângulo: o verbo roubar.

Pessoalmente, considero mais grave matar e desmatar. Mas a entrada do verbo roubar, nas circunstâncias brasileiras, torna a denúncia muito mais compreensível.

É ainda difícil estabelecer conexões entre o desmatamento e a perda da biodiversidade. Poucos se interessam por estarmos saindo da era dos mamíferos para a era da solidão, em que desaparecem as espécies em ritmo alucinante. Poucos se dão conta de que Homo sapiens se transformou no "Homo rapiens”.

Da mesma maneira, foi preciso o depoimento de cientistas na CPI da Covid para definir que poderíamos ter salvado um terço dos mortos se houvesse uma política correta no combate ao coronavírus.

Mas o verbo roubar, quando se trata de governo, é de uma simplicidade cristalina. Todos compreendem o que é pedir US$ 1 por vacina. Ou então, noutro caso, compreendem o que é tentar pagar US$ 45 milhões por um lote de vacinas que não foi entregue.

Ao longo destes anos, seja pela leitura dos jornais, seja pela experiência cotidiana, os brasileiros fizeram um doutorado em corrupção. Conhecem os mecanismos de desvio de grana, as desculpas do tipo “eu não sabia”, manobras para apagar os rastros.

Será por esse caminho, a incrível transparência do verbo roubar, que talvez possamos também fazer justiça aos mortos na pandemia, às arvores derrubadas, aos animais queimados vivos.

Não sei se posso chamar isso de otimismo. Mas é o que as circunstâncias históricas nos oferecem, e temos de nos apegar a elas.

Como dizia Hannah Arendt, a democracia é sempre uma chance de recomeço, gente de origem e trajetórias diferentes pode se encontrar e recomeçar.

P.S.: Errei ao dizer que Inocêncio de Oliveira morreu. Fez uma operação complicada, discurso de despedida dizendo que ia para o céu, mas sobrevive. Perdão.
Fernando Gabeira

Pensamento do Dia

 


O genocídio invisível

Graças ao trabalho da CPI. O Brasil está confirmando o genocídio que vem sendo praticado há mais de um ano, por omissão e ação do Presidente da República e outras autoridades nacionais, provocando a morte de centenas de milhares de brasileiros. Comprova-se o descaso do governo, especialmente do Presidente, na compra de vacinas, na necessidade de distanciamento e uso de máscaras. Além da publicidade em defesa de drogas sem comprovação científica. O conjunto deste comportamento serviu para elevar o número de vítimas ao total de mais de meio milhão e das muitas vítimas que ainda teremos no futuro. A CPI servirá para mostrar ao Brasil e ao Mundo nossa triste versão de genocida.



Mas ainda fica faltando a investigação e a denúncia de uma outra forma de crime contra a humanidade, ao comprometer o futuro do Brasil pelo descuido com a educação de nossas crianças: o genocídio invisível de mentes e inteligências que assassina o futuro da nação.

Nenhum país teve suas crianças por tanto tempo sem aulas presenciais, nem acompanhamento tão deficiente no uso de aulas por vias remotas; sobretudo, em nenhum outro país houve desigualdade tão gritante na educação de suas crianças conforme a renda de suas famílias.


Talvez a atual CPI já não tenha tempo nem motivação para apurar este outro tipo de genocídio perpetrado por dolo contra o Brasil inteiro, decorrente do abandono e irresponsabilidade como está sendo tratada a educação de nossas crianças neste momento da epidemia. Ao deixarem as escolas fechadas por tão longo período, sem as medidas sanitárias necessárias e sem cuidados para utilizar-se as novas tecnologias da informática, estamos condenando 50 milhões de crianças a um atraso em parte irreversível na formação delas. Em consequência, sacrificando o futuro da nação brasileira nos próximos anos, talvez décadas.

A morte de meio milhão de brasileiros adultos é uma tragédia imensa do ponto de vista humanitário, mas o sacrifício da mente de 50 milhões de crianças, toda nossa infância, é uma tragédia de consequências abismais para o futuro do Brasil. Ameaçando a construção de uma sociedade eficiente, justa, sustentável, equilibrada, democrática.

Por esta razão, o Brasil precisa investigar e apurar a dimensão e a responsabilidade, por omissão ou ação, dos que provocaram este assassinato da mente, ao corromper a formação da inteligência brasileira. O Brasil precisa encontrar respostas para perguntas tais como:

– Quais as consequências para o futuro do Brasil diante da tragédia educacional que a epidemia provocou?

– Quais medidas poderiam ter sido tomadas e não foram para reduzir o tamanho desta tragédia?

– Quais as pessoas sobre as quais, por omissão e ação, pesa responsabilidade deste crime contra a nação?.

O que fazer para reduzir a tragédia histórica adiante?
Cristovam Buarque

Longo inverno

A decisão estava tomada: mudar de assunto ao menos neste domingo de inverno, para não agravar ainda mais nosso estoque de dores e perdas, raiva e desalento. Embalado pelo poema “Um pouco sobre a alma”, da maravilhosa Wislawa Szymborska, o artigo de hoje tinha a intenção de trazer leveza. Até porque os versos da Nobel de Literatura, recebidos de véspera de um amigo querido, haviam me trazido acalento. Foi fácil levantar voo e planar por algum tempo com o poema que começa assim: “Às vezes temos uma alma./ Ninguém a tem o tempo todo/ e para sempre. /Dia após dia, /ano após ano/ podem se passar sem ela. / Às vezes ela só se aninha / por mais tempo/ nos enlevos e medos da infância. / Às vezes só no espanto de estarmos velhos…”.

Duro foi despencar do universo rarefeito da poesia, essencial à expressão humana, e voltar a pousar no cotidiano local que a cada dia se apresenta mais desumano — por doentio e doente. O Brasil está doente de Covid-19, cuja origem a ciência ainda não desvendou 100%, mas cuja feroz mortandade, em solo pátrio, já tem responsabilidade e origem escancaradas — o governo Jair Bolsonaro. Como doenças, mesmo as mais perversas, se curam ou são combatidas pela ciência, algum dia os sobreviventes do horror atual haverão de respirar melhor e sem medo, com o resto do mundo.

Já a violência nacional não é doença. É, sim, doentia, cria da própria sociedade e não curável pela ciência. Continuará a ser estrutural até que gerações futuras queiram mudar a história do país.


A semana começou em cavalgada. O desfecho da caçada ao assassino em série Lázaro Barbosa, com toques de “Götterdämmerung” tupiniquim, foi o retrato da ostentação policial do Brasil atual. Ao faroeste cinematográfico somou-se até mesmo uma deputada federal de 72 anos, Magda Mofatto (PL-GO), que apareceu nas redes sociais a bordo de um helicóptero, como se rumasse à caça ao bandido. Tinha um fuzil de uso militar em punho e envergava uniforme de campanha. O simulacro fez sucesso.

Para os moradores de Goiás e do Distrito Federal, onde o assassino múltiplo disseminara mortes e pânico ao longo de 20 dias, poder aplaudir a ação policial e festejar o fim do medo foi mais do que compreensível. Já a celebração de vitória por parte do presidente da República, via Twitter e em maiúsculas —“LÁZARO: CPF CANCELADO” —, ilustra a necropolítica miliciana do chefe da nação. Segundo registro da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás, Lázaro foi alvejado por 115 disparos: 58 com pistola Sig Sauer, 32 com pistola Taurus, 25 com fuzil Bushmaster.

Lázaro era um criminoso de alta periculosidade, talvez até psicótico. Era dever do Estado capturá-lo a todo custo. De preferência vivo, para melhor explorar suas eventuais conexões e rastros. Mas ainda não foi desta vez. Sempre foi e continua a ser raríssima no Brasil a captura com vida de bandidos com a cabeça a prêmio — seja porque morto não fala, seja porque matar é mais fácil, e rajadas são mais midiáticas. O método acabou se tornando prática corrente também no abate de pés de chinelo do crime, ou meros “suspeitos”, ou ainda infelizes moradores pretos, pardos e/ou pobres no caminho de operações policiais.

Nos últimos tempos, instituições criadas para proteger o cidadão de ameaças externas (Forças Armadas) e internas (Polícias Militares) têm dado sinais de desvio de função mais acentuado. À medida que Bolsonaro se dedica a seduzir o baixo clero do Exército, este pode vir a sentir algum compadrio com policiais militares. E, à medida que as PMs estaduais se sabem apoiadas pelo capitão de Brasília, mais elas podem vir a se aproximar de práticas milicianas. Quanto aos milicianos de raiz, estes já vivem no país que gostam de chamar de seu. E servem de modelo oculto a “cidadãos de bem” armados, apreciadores da violência.

A semana iniciada com o esperado desfecho para o matador em Goiás se encerra numa calçada de São Paulo com o exercício casual do pequeno poder policial. Na quinta-feira, um rapaz e outras dez pessoas esquentavam mãos e corpo em torno de uma fogueira no estacionamento de um varejão da capital. O frio já havia feito 12 mortos por hipotermia no estado, segundo o Movimento Estadual da População em Situação de Rua. Chega uma viatura de polícia, o grupo se dispersa, mas o rapaz de 18 anos não conseguiu escapulir. Foi agredido a pauladas de ripas de madeira e socos pelos PMs, e sua bicicleta foi jogada em cima da fogueira. A cena foi registrada em celular, e a vítima apresentou queixa na delegacia.

Já, já o Brasil completará 200 anos. Quantos invernos mais de violência doentia?

Exército marcha com Pazuello em ação por improbidade por desastres na Saúde

Ao assegurar a impunidade a Eduardo Pazuello, livrando-o das sanções disciplinares por ter participado de comício ao lado de Bolsonaro, o Exército meteu-se numa encrenca de mão dupla. Abriu as portas dos seus quarteis para a política. E marchou junto com Pazuello para dentro dos rolos judiciais que o general colecionou na sua passagem pelo Ministério da Saúde.

Ninguém disse ainda, talvez por pena. Mas o Exército faz companhia a Pazuello na ação por improbidade administrativa que o Ministério Público Federal protocolou contra o general na Justiça Federal de Brasília. Subscrita por oito procuradores da República, a peça corre em segredo de Justiça. Nela, Pazuello é acusado de produzir no Ministério da Saúde um desastre sanitário orçado em R$ 122 milhões..

Parte do Estado-Maior do Exército alega que Pazuello cumpriu missão civil na Saúde. Lorota. O argumento era de vidro, pois Pazuello promoveu uma ocupação militar no Ministério da Saúde como oficial da ativa, não como paisano.

A tese trincou quando o general Paulo Sérgio Nogueira, comandante do Exército, enviou para o arquivo o processo disciplinar que abrira contra Pazuello. O raciocínio estilhaçou-se na hora em que a blindagem de Pazuello ganhou o selo de segredo de estado, com prazo de validade de cem anos.

Ao enumerar os fiascos produzidos por Pazuello na Saúde, os procuradores sustentam que o general teve "comportamento doloso ilícito." Significa dizer que tinha noção dos danos que causou. Empilharam-se os erros do general.

Por exemplo: retardou a compra de vacinas anti-Covid, adotou um "tratamento precoce" cloroquínico, negligenciou a política de testagem, absteve-se de coordenar a compra de remédios e insumos vitais.

A certa altura, os procuradores anotaram que Pazuello tomou decisões sem critérios técnicos e "por força de influências externas" (pode me chamar de Bolsonaro. Ou de gabinete paralelo). Aos pouquinhos, o general vai descobrindo que, ao adotar o lema segundo o qual "um manda e o outro obedece", aproximou-se da beirada da Terra plana que dá para um precipício judicial..

Nesse contexto, o Exército marcha ao lado de Pazuello como um asterisco incapaz de deter a infecção que Bolsonaro impôs aos quartéis ao converter Pazuello num general de palanque. De repente, os bordões do "meu Exército" e das "minhas Forças Armadas" ganharam concretude.

Não matarás, não roubarás

A opção pela burrice e atraso, no Brasil, é escolha ideológica. Não é acaso ou acidente. Como justificativa, esconde-se atrás de preconceitos religiosos (sempre o cristianismo de oportunidade), da invenção de inimigos imaginários (ah, os comunistas) e de um astucioso patriotismo (de resultados).

Num registro mais amedrontador, uma vaga ameaça à família dó-ré-mi também é usada como pretexto. Cazuza, o grande poeta brasileiro da minha geração, ainda nos anos 1980, alertava os suspeitos de sempre: suas ideias não correspondem aos fatos. Certamente, Bia Kicis está informada de quantas famílias o Bozo montou nas últimas décadas.

Atrás de um patriota de galocha e de um tiozão da moto, sempre se esconde um miliciano digital.

Desculpe, eu sei, é uma análise sofisticada para flagrar gente tosca. Mas, entre uma motociata e uma comunhão sem confissão, os bons cérebros escapam do Brasil, aos borbotões, em reação à dilapidação empreendida pelos bozofrênicos.

Além dos mais de 520 mil mortos, o Brasil enfrenta a tragédia de uma diáspora de pessoas bem preparadas e um massacre estruturado à educação. Se antes eram solteiros com ensino superior a deixar o país, agora são mestres, doutores, casais e até famílias inteiras. Em relação a 2013, apenas em 2019, mais que o dobro (alta de 125%) de pessoas resolveu pular fora definitivamente do barco brasileiro. O número é bem maior se pensarmos na quantidade daqueles que tentaram entrar ilegalmente somente nos Estados Unidos.

Pelo jeito, só nos sobrarão o capacho do Lira, o murista do Pacheco e as falsas orações (com trilha sonora) da Zambelli. Ah, também os negócios imobiliários do Flávio Bolsonaro.


Não é só na desesperança do presente que opera a ação maléfica do bozonazismo. Na educação ocorre o desmonte do futuro. Discutem-se ideias bozofrênicas como a escola sem partido, o homeschooling e o conteúdo das questões do Enem.

Imagino o Malafaia e o Bozo, secundados pelo André Mendonça e pelo Milton Ribeiro, criando as perguntas das próximas provas.

— Ô Malafa, precisamos de uma pergunta sobre a Idade Média —diz o Bozo.

O sempre serviçal do André Mendonça se antecipa e oferece:

>— Que tal “quais foram as últimas palavras de Cristo?”

O lobista evangélico Milton Ribeiro corre com sua sugestão sobre a Idade Média:

— Em qual ano o catolicismo se tornou religião oficial em Roma?

— Mas não são questões ao tempo da Idade Média? —pergunta o garçom que serve o café.

— Deixe de ser ímpio, moleque —ralha Malafa. —Cristo não tem idade.

— Deus seja louvado — grunhe o Bozo.

Como se percebe, nossos problemas acabaram. O homeschooling, outra obsessão tamanha, como o voto impresso e o amor hétero, paira como ameaça às melhores práticas educacionais. Basta imaginar como o ogro da Fundação Palmares distribuiria seu conhecimento em seu sacrossanto ambiente doméstico.

— Pai, Jesus era comunista?

— Tá louco, moleque?

— Então, por que ele dizia que somos todos iguais?

— Sei lá.

—Ele também disse para dividirmos nosso pão…

— Bem, isso é bem complexo para a sua idade —disfarça o ogro.

— Pai, o tio Malafaia é comunista?

— Nada disso, ele é cristão.

— E Cristo não era comunista?

— Por hoje chega, todos para a cama —vocifera o educador bozonarista.

Parece brincadeira, ilação religiosa, mas é sério. Porque é estratégia. Cazuza refletiu à sua maneira e com licença poética: “Transformam um país inteiro num puteiro/Pois assim se ganha mais dinheiro”. Ele já prenunciava o manjaléu da Fundação Palmares.

Em prova viva do axioma posto por Pedro Malan (no Brasil, até o passado é incerto), o cuca da Fundação Palmares denunciou a doação de títulos de autores supostamente comunistas, pedófilos e perigosos à família. E anunciou títulos de alguns autores negros. Uau. Entre eles, Luís Gama, Cruz e Souza e Carolina de Jesus.

De novo, mostrou que estava brincando de amarelinha ou tira a meleca no dia em que o professor deu a aula sobre o movimento abolicionista. Para ter ideia, estivesse vivo, Luís Gama consideraria Freixo um tipo de direita. E o que achar do simbolista Cruz e Sousa, autor de “O emparedado”: “…acordando chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres… pela condenação do Pensamento, dentro de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos… Tu és dos de Cam, mal dito, réprobo, anatematizado!… Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações”.

— Pai, o que é báratro?
Miguel De Almeida