quarta-feira, 8 de janeiro de 2025
A memória e... o esquecimento
A perda de memória torna-nos imbecis. A imbecilidade contemporânea, isto é, própria deste tempo fixo no presente, que esquece o passado e receia o futuro é o nosso esquecimento do que caracterizou o último século.
Devemos lutar contra a desmemorização e contra a memória imobilizada. Devemos regenerar constantemente a memória . A regeneração da memória parte justamente das necessidades vivas do presente.
Edgar Morin, " As grandes questões do nosso Tempo"
Para Michael Walzer, liberal não define o que se é, mas como se é
Sorrio. Estou no lugar certo: foi aqui, na Escócia, em pleno século 18, que a palavra "liberal" surgiu pela primeira vez em inglês com conotação abertamente política.
Um pormenor, porém, merece ser realçado: "liberal" nasceu como adjetivo antes de se tornar substantivo. Como explica o economista Daniel Klein, que tem estudado essas arqueologias conceituais, foram iluministas escoceses, como Adam Smith, que definiram como liberal um sistema de governo que permite a cada um procurar os seus interesses e fins de vida, desde que respeitando a lei geral.
A palavra acabaria por evoluir até se cristalizar numa ideologia política —o liberalismo— e num substantivo —o liberal. E, como normalmente acontece com ideologias, surgiram escolas, subescolas, sub-subescolas, que se guerreiam e se excomungam.
Mas haverá alguma vantagem em retornar ao adjetivo? E, em caso afirmativo, será possível encontrar espíritos liberais nos lugares mais inusitados?
O filósofo Michael Walzer, em ensaio testamentário, se ocupa dessas questões todas citadas.
O título e o subtítulo resumem o espírito da sua obra: "The Struggle for a Decent Politics: On ‘Liberal’ as an Adjective" (ou em português, a luta por uma sociedade decente: sobre ‘liberal’ como adjetivo, Yale, 184 págs).
Eis a proposta de Walzer: hoje, a palavra liberal deveria ter uma dimensão essencialmente moral. Ser uma pessoa liberal significa, em traços gerais, ter uma mente aberta, ser generoso, ser capaz de aceitar a ambiguidade, condenar o fanatismo e não tolerar a crueldade.
Como escreve o filósofo, "liberal" não define o que se é, mas como se é. É uma forma de estar na vida, de agir em sociedade, de nos relacionarmos com os outros. Com liberalidade.
Isso significa que o número de liberais pode ser bem maior do que Deirdre McCloskey imagina. No seu artigo, McCloskey fala em progressistas, libertários —e liberais "suficientes", como ela.
Mas Walzer é mais generoso (mais liberal?) com a fauna humana. Conservadores liberais, nacionalistas liberais, democratas liberais, até socialistas liberais têm espaço nessa arca de Noé. "Liberal", quando aplicado a cada um desses nomes, é uma forma de evitar que as ideologias degenerem nas suas piores versões, mantendo ainda um respeito primordial pela liberdade e dignidade humanas.
Usando os exemplos de Walzer, um democrata liberal respeita a vontade da maioria. Mas também entende que as maiorias necessitam de limites constitucionais que muitas vezes frustram as pulsões da multidão.
Há quem discorde. Há quem prefira uma democracia "iliberal", como acontece na Hungria de Viktor Orbán. É um desejo arriscado: quando tudo depende da maioria, é melhor você ter a certeza de que nunca estará entre a minoria que participa.
E que dizer de socialistas liberais, esse supremo paradoxo?
Walzer não fala, obviamente, de ideologias totalitárias, como o comunismo. Fala da tradição social-democrata que aceita a "liberdade civil burguesa" como forma de atingir uma sociedade menos desigual.
Um socialista liberal não abandona o seu desejo de igualdade; mas entende que esse destino deve ser trilhado por via democrática, sem atropelo de direitos fundamentais e fazendo uma distinção entre desigualdades toleráveis e intoleráveis.
Ou, como escreve Walzer, é tudo uma questão de convertibilidade: há coisas que o dinheiro pode comprar e outras que não pode. É indiferente se os mais ricos compram artigos de luxo que estão inteiramente vedados à restante população.
Não é indiferente se apenas os mais ricos têm acesso a saúde, justiça ou influência política.
Por último, Walzer dedica algumas linhas aos "professores liberais", esse artigo cada vez mais raro nos departamentos de humanidades. Como reconhecer um?
Muito fácil: um professor liberal é aquele que, apesar das suas convicções mais firmes, não as impinge aos alunos como a última verdade revelada. Ou, então, é aquele que apresenta visões contrárias à dele com a honestidade intelectual possível.
Imagine um professor progressista que apresenta argumentos conservadores sem hostilidade ou caricatura. Ou vice-versa.
Eu não disse que este era um artigo para lá de raro?
Sim, os liberais podem ser divididos em vertentes clássicas, modernas, ordoliberais, libertárias, neoliberais, o diabo.
Mas a questão decisiva é saber primeiro se estamos na presença de liberais liberais.
O 51º estado!
A terceira afirmação do próximo presidente diz respeito à demissão do primeiro-ministro Justin Trudeau, após dez anos à frente do Governo em nome dos liberais, por perceber que irá perder as próximas eleições para os conservadores. Trudeau saiu porque o seu ciclo político estava esgotado, e nada disso tem a ver com a insistência do quase presidente.
A primeira grande indelicadeza de Trump foi atribuir o cargo de «Governador» ao primeiro-ministro, depois de se terem encontrado — e não foi apenas mais uma tolice para esquecer. Desde então, e à medida que o dia 20 se aproxima, o presidente eleito e confirmado não abandona a ideia de integrar o Canadá na União americana, sem esquecer a Gronelândia da Dinamarca, talvez o 52º estado.
É bizarro e infantil, mas os Estados Unidos construíram-se através de lutas contra os mexicanos para conquistar território — Texas, Colorado, Novo México e Califórnia — e com a compra do Alasca à Rússia. Trump quer alargar horizontes e, para isso, não hesita em usar as armas que tem: taxas fronteiriças e controlo de pessoas. Canadá, México e Dinamarca são alvos primários. Um dia destes reclama os Açores! Por razões de segurança nacional, como na Gronelândia.
Os sinais que chegam de Mar-a-Lago não são promissores. Corremos o risco de Trump estar pior do que já estava.
Falta o essencial
Miguel Torga, in " Diário XVI"
Nenhum cessar-fogo à vista: Gaza 'parece um inferno'
Nos últimos 14 meses, a família de Zahra mudou-se de um lugar para outro no norte da Faixa de Gaza em busca de maior segurança. Em dezembro, a família de sete pessoas chegou à Cidade de Gaza.
“A guerra tem sido difícil desde o primeiro dia, mas agora parece um inferno”, diz Zahra, que pediu que o seu nome completo não fosse revelado, da Cidade de Gaza. A sua família encontrou refúgio numa casa parcialmente bombardeada no campo de refugiados de Shati. “Não sabemos se sobreviveremos ou morreremos antes que isto acabe”, disse ele à DW por telefone.
Apesar das repetidas ordens das Forças de Defesa de Israel (IDF) para se dirigirem ao sul da Faixa de Gaza, a família de Zahra decidiu ficar no norte, em parte por medo de nunca mais poder regressar a casa.
“Não saímos do norte mais cedo porque sabíamos que estavam bombardeando por toda parte e esperávamos que a operação militar no norte terminasse logo. No entanto, tornou-se ainda mais insuportável”, explica Zahra. “A nossa casa no campo de Jabalia foi completamente destruída há meses e agora estamos num estado de constante deslocamento.”
Agências internacionais e governos estão a pressionar Israel e o Hamas para concordarem com um cessar-fogo que permita a libertação do resto dos reféns detidos em Gaza em troca do fim da guerra e de ajuda humanitária à população civil. No entanto, o conflito parece não ter fim.
No fim de semana passado, as Forças de Defesa de Israel declararam ter atingido mais de 100 alvos em toda a Faixa de Gaza depois que o Hamas disparou foguetes contra Israel.
Em todo o território, o frio e as chuvas de inverno inundam tendas e outras casas improvisadas. Nas últimas semanas, as organizações humanitárias alertaram repetidamente que não chega ajuda suficiente à população, tanto devido ao bloqueio israelita como aos saques .
No domingo passado, as forças de defesa civil de Gaza relataram que ataques israelitas mataram agentes de segurança que protegiam comboios de ajuda humanitária no sul. As autoridades também alegaram que os militares israelitas bombardeavam bairros e detonavam edifícios residenciais no norte de Gaza, deixando vários mortos e feridos. Mais de 45.800 palestinos foram mortos desde que Israel lançou a sua ofensiva militar após os ataques terroristas liderados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza.
Jabalia e a área ao norte da Cidade de Gaza são alvo de um novo ataque das FDI que começou em outubro. As Forças de Defesa de Israel dizem que o Hamas e outros grupos militantes estão a reagrupar-se na área e que as suas ordens para evacuar os civis tinham como objetivo mantê-los fora de perigo. Mas os palestinianos e as organizações humanitárias dizem que não há lugar seguro em Gaza e que o deslocamento constante está a agravar a situação.
Gentes é evacuado do campo de refugiados de Jabalia. Gente é evacuada do campo de refugiados de Jabalia.
No final de Dezembro, uma delegação da ONU obteve autorização para viajar ao norte da Faixa de Gaza. Jonathan Whittall, chefe interino do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários em Jerusalém Oriental, disse em um vídeo postado no X que “as pessoas aqui não têm comida, nem água, nem saneamento, nada. para fornecer o básico para a sobrevivência.
Whittall acrescentou que as Nações Unidas apresentaram 140 pedidos de coordenação às FDI para visitar a área nos últimos dois meses, mas todos foram negados.
O Coordenador de Atividades Governamentais nos Territórios, a administração civil-militar israelense responsável pelo acesso a Gaza e pela ajuda humanitária, respondeu em X que “alegações recentes sobre pedidos de coordenação humanitária negados são enganosas”.
As Nações Unidas estimam que entre 10.000 e 15.000 pessoas permaneçam no norte da Faixa de Gaza sitiada, que inclui Beit Lahia, Jabalia e Beit Hanun, mas o número exacto é desconhecido. Acredita-se que grande parte da área tenha sido evacuada e arrasada, alimentando especulações sobre a intenção de Israel de mantê-la como uma zona de segurança fechada quando a guerra terminar.
As Forças de Defesa de Israel negaram estar a implementar o chamado Plano do General, que apela à expulsão dos residentes do norte de Gaza, rotulando todos os civis restantes como alvos militares e bloqueando o fornecimento de alimentos e medicamentos.
Na semana passada, membros do Comité de Negócios Estrangeiros e Defesa do Knesset exigiram, numa carta, que o Ministro da Defesa, Israel Katz, ordenasse a destruição de todas as fontes de água, alimentos e energia na área, queixando-se de que as FDI ainda não derrotaram o Hamas.
Os moradores disseram que já havia uma escassez extrema de alimentos e água, enquanto os constantes bombardeios e tiros tornavam quase impossível qualquer movimento, inclusive chegar aos corredores humanitários em direção ao sul.
Zahra disse que a sua família conseguiu chegar ao campo de refugiados de Shati, a noroeste da cidade de Gaza. Ao longo do caminho, tiveram que passar por um posto de controle israelense. “Permitiram-me passar com as minhas três filhas, enquanto o meu marido e os meus dois filhos tiveram de esperar cinco horas antes de também poderem atravessar”, diz ela.
Matar Zomlot e a sua família permaneceram no campo de refugiados de Jabalia durante a guerra, mas acabaram por ser forçados a abandoná-lo.
“Havia bombardeios e explosões o tempo todo, e o medo era constante”, disse Zomlot à DW por telefone. A família sobreviveu procurando comida em casas abandonadas. me disseram que tinham deixado comida ou conservas".
Em Dezembro, a família conseguiu chegar à vizinha Cidade de Gaza, apesar dos intensos combates.
“Tínhamos medo de que eles atirassem em nós”, continua Zomlot. “No dia em que decidimos partir, saímos à tarde e caminhamos em direção à rua Salah al-Din. Havia um tanque e soldados que nos pararam. Depois de verificarem a nossa identificação, deixaram-nos passar”, acrescenta.
Ele agora mora na Cidade de Gaza com parentes.
Em vez de se mudar para o sul, a família preferiu ficar no norte da Faixa de Gaza. O território está agora dividido pelo corredor Netzarim, uma estrada com postos de controlo militares que vai de leste a oeste.
Uma vez que os palestinianos atravessem para o sul, não poderão regressar ao norte. Uma reportagem investigativa do jornal israelense Haaretz cita soldados na área dizendo que vários palestinos desarmados que se aproximaram da área para retornar ao norte foram mortos a tiros.
Segundo a ONU, cerca de 90 por cento dos 2,1 milhões de habitantes de Gaza foram deslocados, muitos deles várias vezes, e uma das muitas incertezas é se Israel lhes permitirá regressar às suas casas.
“Não sabemos o nosso destino”, diz Zahra, acrescentando: “Não sabemos o que nos espera. Mas rezamos a Deus para que esta guerra acabe logo e possamos regressar aos nossos bairros e às nossas casas, mesmo que tenham foram reduzidos a escombros."
A IA de 2025 não é como a do ano passado
Durante o período das festas de fim de ano, se tornaram populares nas redes os videozinhos com Lula e Bolsonaro sorridentes, se abraçando, suéteres natalinos e taças de espumante à mão. Foram várias versões no entorno do mesmo tema e não tiveram só eles como personagens. Elon Musk com Bill Gates, Donald Trump com Joe Biden, Zelensky e Putin — imagine um par improvável, e estavam lá. Essas imagens confessam, evidentemente, um desejo. Tem muita gente cansada da polarização na qual nos metemos. Mas, para além de retratar o Zeitgeist, é preciso haver uma explicação para vídeos assim surgirem às dezenas agora e não antes. A razão é uma só: o Grok.
Do ponto de vista da tecnologia, não há motivo para que Dall-E (OpenAI), Midjourney ou Gemini, as IAs mais populares para geração de imagens estáticas, não possam criar retratos de pessoas famosas nas situações mais mirabolantes. Não fazem isso porque há limites, filtros colocados pelas companhias para evitar deepfakes. As falsificações são tão realistas que podem se confundir com a realidade. O Grok não tem esses filtros por uma decisão do dono da xAI. Musk incorpora à defesa que faz da liberdade de expressão a ideia de que parodiar pessoas públicas é do jogo. O que Grok 2 não faz, ainda, são imagens ultrarrealistas. A promessa era que a versão 3 viria à tona ainda no ano passado. Não aconteceu.
O debate sobre se paródias com pessoas públicas fazem parte do exercício legítimo de expressão numa democracia é antigo. E, em boa parte das democracias, a ideia de que, sim, pode parodiar, está bem consolidada. Mesmo que a paródia seja bastante ofensiva, se os personagens são políticos ou gente muito relevante no debate público, é do jogo. Lula e Bolsonaro aos beijos pode soar de mau gosto para uns, mas é manifestação de um desejo ou de uma ideia. Não sendo ultrarrealista, e a cena sendo absurda o suficiente para que ninguém confunda com fatos, tudo certo. O problema se forma quando a linha é cruzada para além da paródia. Para construir uma imagem falsa, plausível, que sirva para falsificar a verdade. Confundir o debate público. No limite, por conta, fraudar uma eleição ao enganar eleitores em número suficiente.
Deepfakes ainda estavam bastante difíceis de produzir de forma realista. Em 2025, vai ficar mais fácil e periga se tornarem realistas o suficiente para enganar muita gente. Ainda não havíamos lidado com uma IA assim, agora acontecerá com mais frequência. E é aí que entra o dilema apresentado pela IA chinesa DeepSeek.
A empresa foi criada por Liang Wenfeng, um jovem cientista da computação chinês que fez uma grande fortuna ainda antes dos 30 desenvolvendo algoritmos para investir na Bolsa. Com sua fortuna, comprou dez mil microprocessadores para treinar IAs antes de os Estados Unidos criarem limites para exportação dessa tecnologia para a China. Os chineses podem importar os chips, mas não aqueles com a tecnologia necessária para treinar os algoritmos atuais. Ainda assim, a turma da DeepSeek comprou mais chips — mesmo que limitados. E treinou seu modelo de linguagem com menos dinheiro e menos tempo de processamento do que as rivais americanas. Fizeram o que ninguém havia feito antes.
Ciência e tecnologia sempre se moveram com mais originalidade perante a escassez de recursos. Se os testes iniciais se comprovarem, pelo menos uma empresa chinesa saltou os limites impostos pelos americanos e está com uma IA superior na praça. Com a diferença que ela é um modelo de código livre, outras empresas podem baixar e adaptar para usos diversos.
Modelos de IA com código livre podem ter seus filtros extirpados e produzirão tudo aquilo que a imaginação do usuário desejar. Sem limites para criação e com novos desafios para a sociedade. O ano promete.