domingo, 29 de março de 2020

Pensamento do dia


Impeachment pode ser pouco para Bolsonaro

Os desvarios de Jair Bolsonaro não cabem mais na esfera da política. Quando o presidente se torna uma ameaça à saúde pública, sabotando o esforço nacional contra a pandemia, seus atos devem ser submetidos aos tribunais.

Nos últimos dias, a Justiça começou a impor freios ao Capitão Corona. O Supremo derrubou duas canetadas odiosas: o corte de 158 mil benefícios do Bolsa Família e a MP que mutilou a Lei de Acesso à Informação.

Para surpresa de ninguém, Bolsonaro tentou usar a crise para garfar miseráveis e reduzir a transparência do governo. As medidas foram invalidadas pelos ministros Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes. Em tempo: nenhum deles foi indicado por governos do PT.


Depois das derrotas no Supremo, o presidente passou a apanhar na primeira instância. Na sexta, o juiz Márcio Santoro Rocha suspendeu a autorização para igrejas e casas lotéricas retomarem as atividades normais. Horas depois, a juíza Laura Bastos Carvalho mandou tirar do ar a campanha publicitária que incentivava a população a voltar às ruas.

Nos dois casos, o capitão driblou a lei para agradar a clientela. Na MP do Dízimo, ele subverteu o conceito de atividades essenciais para beneficiar mercadores da fé e empresários do ramo de apostas.

Em outra frente, a Secom planejava bombardear os cidadãos com propaganda contra a quarentena. A campanha “O Brasil não pode parar” torraria R$ 4,8 milhões num momento em que falta dinheiro para ampliar a oferta de leitos e equipar os hospitais.

As quatro decisões ainda podem ser revistas, mas apontam um caminho para frear o presidente pela via judicial. Ao torpedear políticas de isolamento que podem salvar milhares de brasileiros, Bolsonaro extrapola os poderes de chefe de Estado. Age como um líder de seita que tenta conduzir o rebanho ao suicídio coletivo.

Quando a epidemia passar, a abertura de um processo de impeachment pode ser pouco para enquadrar o presidente. Se sua cruzada contra a vida prosperar, ele se candidatará a uma denúncia ao Tribunal Penal Internacional, que julga crimes contra a Humanidade.

Responda, 'Cavalão'

Estamos preparados para o pior cenário, com caminhōes do Exército transportando corpos pela rua? Com transmissão pela internet?
Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde

A hora da solidariedade

“Esta é a crise de saúde global definidora dos nossos tempos”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, logo após declarar que o surto de coronavírus se tornara uma pandemia. “Os dias, semanas e meses à frente serão um teste para nossa determinação, um teste para nossa confiança na ciência e um teste para a nossa solidariedade.”


Todos podem doar algo – tempo ou dinheiro. Mas, para doar bem, é preciso ouvir as autoridades sanitárias, ponderando recursos e identificando os grupos vulneráveis. Na infraestrutura, os sistemas de saúde correm contra o tempo para evitar o colapso. Entre os grupos sociais, os mais pobres, em condições precárias de moradia e saneamento, estão mais expostos. Na distribuição geracional, a covid-19 é brutal com os mais velhos – além das pessoas com comorbidades. E na área econômica, autônomos e pequenos empresários veem o vírus desintegrar do dia para a noite sua fonte de renda.

O Fundo Emergencial para a Saúde foi organizado para prover equipamentos e insumos a entidades de saúde, como a Fiocruz e as Santas Casas. A Comunitas, uma organização da sociedade civil, juntou-se a lideranças empresariais para adquirir respiradores pulmonares para a rede pública de saúde. Até o momento foram arrecadados mais de R$ 23 milhões, e já estão garantidos 345 respiradores. O Comitê Executivo Covid-19 do governo de São Paulo já angariou R$ 96 milhões com o empresariado para materiais e serviços médicos. Indústrias de cosméticos estão produzindo álcool em gel para hospitais públicos e empresas de transporte estão disponibilizando vouchers para os profissionais de saúde. E é preciso não esquecer doações essenciais: os postos de coleta de sangue alertam para uma queda de 30% nos últimos dez dias.

A ONG Ação da Cidadania está arrecadando água, comida e produtos de higiene para comunidades carentes do Sudeste. A G10, uma cúpula de 10 grandes favelas, procura 420 voluntários para atuar no combate à epidemia distribuindo informações e produtos de primeira necessidade. A Central Única das Favelas angaria recursos para apoiar financeiramente as famílias inseridas em programas sociais e auxiliá-las nos cuidados com as crianças. O Instituto LAR oferece banho e comida para moradores de rua.

Todos os asilos precisam de ajuda para encontrar máscaras, luvas e álcool em gel. Muitas pessoas estão se organizando para fazer compras, cozinhar e prover os idosos de seus prédios e bairros. Os comércios locais, como bares, restaurantes e cabeleireiros, serão severamente afetados pela quarentena, com o risco de desempregar seus funcionários. Muitos estão disponibilizando vales a serem pagos agora para serem consumidos depois.

Há plataformas digitais que conectam doadores e beneficiários e inúmeros projetos de crowdfunding. Na plataforma “Todos por Todos” do governo federal, empresas e associações podem oferecer serviços e produtos para o combate ao vírus. O Instituto Gerando Falcões disponibilizou um aplicativo para conectar doadores e famílias necessitadas. O Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), que reúne investidores sociais do País, prepara uma plataforma para agregar iniciativas na luta contra a epidemia.

O vírus devasta todo o planeta e, se não for incondicionalmente vencido, voltará a nos assombrar. A OMS lançou o Solidarity Response Fund, para agregar fundos e dados para dar uma resposta global à pandemia. Organizações como a Charity Navigator e o GlobalGiving avaliam cada iniciativa, auxiliando o doador a eleger seus beneficiários. A Cruz Vermelha, a Relief International e a Heart to Heart são especializadas em doações para a saúde. A World Central Kitchen distribui comida em comunidades impactadas por calamidades.

Há males que vêm para o bem – é um repetido chavão que nada alenta na hora em que o mal chega. Agora que ele veio, se virá para o bem, é algo que depende de todos e de cada um. As perdas de vidas e recursos são inexoráveis, mas, se nesta hora extrema o País souber implementar um surto de solidariedade, pode reduzir radicalmente estas perdas e sair maior do que entrou na crise.

Pecado mortal

Somente uma pessoa que deliberadamente trabalha contra o interesse da maioria agiria como o presidente Jair Bolsonaro agiu em diversos momentos dessa crise sanitária. Já disse outro dia que ele é um homem mesquinho e egoísta. Mas é pouco. Bolsonaro não gosta do ser humano, se lixa para o próximo e só se preocupa com sua família e sua corriola. Mexeu com a família ou com os parças, mexeu com ele. Fora isso, danem-se. Somente um homem assim baixaria um decreto autorizando a realização de cultos religiosos em meio a uma pandemia de coronavírus.


O que isso significa? Significa que Bolsonaro deu oficialmente argumento para que pastores e bispos de diversas igrejas evangélicas exijam a presença dos seus fiéis e das carteiras dos seus fiéis nos cultos. Os pobres e explorados filhos de Deus que podiam ficar em casa, orando solitariamente, sem pagar dízimos aos devoradores de poupanças, agora não têm mais essa desculpa. O presidente do Brasil baixou decreto estabelecendo que culto religioso é uma atividade essencial e como tal pode ser realizado mesmo em meio ao caos sanitário que o planeta vive. Nenhum problema se a aglomeração facilita o contágio. Deus protege, acredita o devoto capitão.

Os bispos da Universal e das suas igrejas-satélites já estavam tendo pane de criatividade para seguir sugando o suado dinheirinho dos fiéis que, por orientação do Ministério da Saúde, permaneciam em casa. Um deles, o televangelista R.R. Soares, cunhado de Edir Macedo, passa os dias na TV pedindo que os seus crentes depositem dinheiro na conta da sua igreja. Como Ancelmo Gois mostrou aqui na quarta-feira, R.R. mandou os fiéis que não entendem de internet ou não têm conta bancária pedir auxílio a parentes ou amigos para fazer a remessa. Mais do que uma exploração vergonhosa, trata-se de um pecado. Mortal.

Essa exploração de gente fiel, simples e ingênua, que nunca foi combatida pelos governantes brasileiros, mereceu agora espaço num decreto presidencial que além de ignorá-la ainda a estimula. Por que, em nome de Deus, o capitão faria uma sandice dessa? Como só age com a cabeça eleitoral, por puro medo de que as suas bobagens o tornem no primeiro presidente a não conseguir se reeleger no Brasil, é óbvio que ele quer agradar os chefes evangélicos para obter suas simpatias e merecer seus apoios em campanhas eleitorais.

Será que Bolsonaro ignora que estes mesmos pobres fiéis que estão sendo explorados pelas igrejas mesmo em meio a esta pandemia são, afinal, os eleitores de quem ele quer ganhar o voto? Claro que não. Ele aposta na ignorância dessa turma e na ascendência que os pastores têm sobre ela. O pior é que ele tem razão. Os cultos de algumas igrejas hipnotizam muitos fiéis de tal forma que eles ficam sem ação ou não conseguem encontrar alternativas. O infundado medo da mão pesada de Deus limpa suas carteiras e os torna em rebanhos de eleitores cegos.

Foi sobre esse caldo que Bolsonaro mergulhou ainda mais fundo sua colher ao decretar a essencialidade de cultos religiosos. Saúde a gente vê depois.

O coronavírus vai trazer um mundo desglobalizado?

A pandemia Covid-19 atingiu o comércio mundial numa altura em que ele já revelava fragilidades. A crise financeira internacional de 2008 – e a recuperação débil que se lhe seguiu – tinha abalado o ritmo de crescimento das trocas internacionais. Nos anos seguintes, o Brexit, a eleição de líderes populistas e o enfraquecimento do multilateralismo foram arrefecendo ainda mais a integração das economias, até à cereja no topo do bolo do protecionismo: a guerra comercial lançada por Donald Trump contra a China, a que se juntaram conflitos e tensões com muitos outros países. O coronavírus é mais um forte abalo a este modelo debilitado.

Para perceber o impacto do vírus na economia, é preciso primeiro reconhecer o elevadíssimo nível de integração da produção mundial. A versão simples – fábrica recebe matéria-prima e produz um bem que vende aos consumidores – é como se pertencesse à Idade da Pedra. Hoje, mais do que um longo fio, as cadeias de produção assemelham-se a uma teia altamente complexa, com uma enorme fragmentação dos fornecedores e muitos passos intermédios, que tornaram o processo mais rápido, barato e eficiente. Uma transformação alcançada através de mais cooperação, avanços tecnológicos e uma gestão mais sofisticada, mas que apenas foi conseguida devido à deslocação massiva da produção para países com salários muito mais baixos.

Veja-se a descrição que fazia o presidente da Associação Nacional de Vestuário e Confecção (ANIVEC/APIV) há algumas semanas à VISÃO: “Um casaco pode ter 20, 30 acessórios, de seis ou sete países. Basta faltar um para não se fazer”, dizia César Araújo. “O vestuário é o setor mais globalizado do mundo. 85% de todos produtos que se compram na Europa vêm da Ásia, seja o produto acabado ou as matérias-primas.”

Obviamente, não é só no têxtil que as coisas funcionam assim. Por exemplo, para a Autoeuropa construir um carro em Portugal tem de importar peças de 26 países diferentes, para depois o exportar para 56 países. Hoje, este é o modelo central de toda a indústria.

O problema é que aquilo que permitiu uma maior eficiência das cadeias de produção é o que agora as ameaça. Um choque num dos pontos que compõem essa teia compromete toda a estrutura. E quando esse ponto é o centro de gravidade do comércio internacional, os efeitos são ainda mais devastadores.


O mesmo César Araújo não tem dúvidas: a Covid-19 é a gota de água que exige que repensemos esta forma de organização das cadeias de produção, a dependência da China e a necessidade de voltar a debater uma política industrial europeia. “A Europa é grande demais para estar refém de um país com regras tão diferentes.”

Muitas empresas parecem a estar a pensar exatamente no mesmo. Alicia García-Herrero, investigadora do Bruegel, tem escrito abundantemente sobre o tema. Entrevistada pela EXAME, a economista aponta que o processo de saída da China já começou.

“As empresas já estão a pensar nisso há algum tempo, especialmente grupos japoneses, taiwaneses, coreanos… O motivo não era medo de um choque, mas o facto de os salários estarem a crescer mais rápido na China do que noutros países do sudeste asiático. A guerra comercial foi outro motivo de alarme”, explica García-Herrero. “Há quem me diga que é uma expressão infeliz, mas acho que faz sentido: o coronavírus é apenas o último prego no caixão. A China já estava a perder antes do coronavírus e vai perder ainda mais agora. O risco de excessiva concentração está na cabeça de todos os líderes de grandes empresas.”

À medida que a Covid-19 deixou de ser apenas um problema chinês e se transformou numa crise global, esta discussão também se alargou: mais do que debater a excessiva dependência da China, coloca-se em causa o próprio modelo económico.

Após décadas de consenso acerca de um mundo integrado – com mais movimento de pessoas, mercados a abrirem-se, economias ricas a terem acesso a bens mais baratos e milhões de pobres de países como a China a saltarem para a classe média – o otimismo com a globalização começou a desaparecer. “Nesta última década assistiu-se a um recuo dessa perspetiva optimista, com mais e mais pessoas dispostas a trocar eficiência, crescimento e abertura por autonomia e preservação do seu modo de vida. Como os brexiters dizem no Reino Unido, eles querem “recuperar o controlo””, escrevia Stephen Walt na “Foreign Policy”.

Este ambiente, somado à pandemia que está a varrer o mundo, pode trazer consequências muito mais vastas do que um mero repensar da dependência da China, avisa García-Herrero. “Estamos em modo de desglobalização. Ponto final. Não só de comércio, mas também de movimento de pessoas. Não queremos aceitar, mas está a acontecer”, sublinha. “No comércio, a liberalização tornou-o mais livre e com menos tarifas. Com as pessoas foi igual. Cada vez menos restrições ao turismo, toda a gente estava a aproveitar um mundo sem fronteiras para turismo e negócios. Acho que isso desapareceu. Estamos a caminhar para um mundo de menor movimento de pessoas.”

Essa é, aliás, uma diferença entre um choque como a guerra comercial EUA vs. China e a Covid-19: esta segunda está a atingir fortemente o movimento de pessoas. “Estamos um pouco distraídos com as notícias [do vírus] e não estamos a ver para onde estamos a caminhar. Os nossos governos vão ser mais ativos na restrição de movimentos”, explica. E muitas das decisões obedecem a uma lógica política. Veja-se a decisão de Donald Trump de, inicialmente, banir as viagens da União Europeia, mas não do Reino Unido ou a sua insistência de um muro com o México para combater a epidemia. “Muitos governos estavam ansiosos por começar isto”, frisa García-Herrero.

Ricardo Reis, professor da London School of Economics, admite que esse impacto na globalização se possa verificar, mas que “dependerá da reação política”. Por um lado, “esta crise pode ser agudizada e levar a um efeito mais permanente na globalização”. Por outro, “pode permitir perceber como a ajuda internacional e as trocas comerciais são importantes”.

O economista lembra que a Grande Depressão iniciada em 1929 foi mais intensa devido a dois motivos: insistência no padrão ouro; e protecionismo. “É um exemplo de como políticas erradas para lidar com um choque podem tornar uma recessão numa depressão”, diz à EXAME.

O economista reconhece, contudo, que “muitas empresas perceberam que têm de diversificar” a localização da produção. “Não podem ter toda a cadeia de produção na mesma província. Será uma lição que levará a uma reorganização da produção nos próximos anos.”

O debate não está apenas entre académicos. Começamos a assistir a algo que há poucos anos consideraríamos improvável: empresários a defender limites à globalização. “Sem pôr em causa as vantagens inerentes à participação das empresas nas cadeias de valor globais, justifica-se, do ponto de vista das estratégias empresariais, uma avaliação atenta dos riscos que lhe são inerentes”, escreveu António Saraiva num artigo de opinião no Dinheiro Vivo. Referindo-se ao sistema de produção “just in time”, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal – CIP deixa ainda a pergunta: “Até que ponto estará a preocupação pela redução de custos a tornar as cadeias de valor excessivamente rígidas?”

Perguntas como esta estão a ser feitas pela própria OCDE. A economista-chefe da instituição que junta os países mais desenvolvidos do mundo admite que a Covid-19 poderá trazer mudanças ao actual modelo, baseado numa gestão em tempo real de stocks e em cadeias de valor altamente integradas. “Da mesma forma que os bancos centrais podem rever o seu modelo de política monetária, acho que depois desta epidemia, as empresas vão provavelmente analisar a forma como gerem stocks e como organizam a produção por todo o mundo”, previu Laurence Boone. Tradução: a globalização, pelo menos como a conhecemos, poderá deixar de existir.

Alguns chefes de Estado não têm problemas em assumi-lo. “Vemos claramente que somos demasiado dependentes do fornecimento de países estrangeiros […] Vamos rever as nossas cadeias de produção industrial para ver como podemos relocalizar os negócios nas áreas mais estratégicas de forma a sermos soberanos e independentes”, afirmou o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, citado pela Bloomberg. A Covid-19, prevê, será um “game changer” para a globalização.

A Covid-19 não é a única fonte de pressão sobre a globalização. A integração económica internacional entrou numa fase de marasmo nos últimos dez anos. Num relatório que publicou no início de fevereiro no Bruegel, García-Herrero, explica que “parecem existir provas suficientes de que o processo de globalização, incluindo os fluxos de comércio, capital e pessoas, estagnou desde 2008”. Desde a eleição de Donald Trump, essa estagnação chegou mesmo a dar lugar a recuos.

Entre 2009 e 2018, o volume comercial cresceu 3,5% ao ano, quando a média pré-crise era de 7,6%. Nos últimos meses, ainda antes da pandemia, a travagem foi maior. “Estamos agora numa estagnação, o que é compreensível com a guerra comercial entre EUA e China e outras ondas de protecionismo, como aquela que existe entre os EUA e a Europa, mas também Japão e Coreia”, escreve a investigadora. Os fluxos de capitais também estão a recuar, com o investimento direto a cair desde 2015.

Ao mesmo tempo, assiste-se a um enfraquecimento do multilateralismo, com uma Organização Mundial de Comércio cada vez mais impotente. Desde 2016, a Administração norte-americana deixou de valorizar a OMC, procurando resolver as suas queixas comerciais de forma bilateral, normalmente com a ameaça de agravamento de tarifas. O “comércio livre” voltou a ser uma arma diplomática. Mas a responsabilidade não é apenas de Donald Trump. A entrada de novos membros e a postura da China foi dificultando a chegada a acordos alargados.

O movimento de pessoas era a característica da globalização que se mantinha com menos disrupções, ainda que a avançar a um ritmo mais lento e com movimentos anti-imigração a ganhar espaço, principalmente desde a crise de refugiados de 2015. A Covid-19 encarregar-se-ia de ajudar a derrubar esse pilar. É complicado viajar quando não se pode sequer sair de casa. O turismo, que não parava de crescer, está a ver a sua atividade cair para zero e os Estados entrincheiraram-se nas suas fronteiras.

“O coronavírus já está a forçar restrições de viagens, acusações entre governos e uma série de ataques xenófobos em vários países”, escreve Ian Bremmer, presidente do grupo Eurasia, na TIME. Dos EUA têm nascido várias teorias da conspiração sobre o papel de Pequim na eclosão da pandemia, com o secretário de Estado Mike Pompeo a referir-se constantemente a ela como “o vírus de Whuan”, enquanto Donald Trump fala num “vírus chinês”. Na China, o porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros tweetou recentemente uma teoria da conspiração que culpa as forças armadas norte-americanas por trazerem o vírus para a China.

Na União Europeia, velhas feridas voltam a abrir-se: os países do Sul pedem solidariedade sob a forma de emissões conjuntas de dívida, quanto os países do Norte mantêm a posição assumida na crise de 2010. António Costa considerou “repugnante” a atitude do ministro das Finanças holandês que, segundo fontes comunitárias, sugeriu que países como Espanha fossem investigados pela Comissão Europeia, para perceber porque lhes falta espaço orçamental para lidar com a Covid-19. O combate à pandemia está a revelar-se uma luta pela futuro da própria Europa.

Quanto tempo durarão as restrições de movimentos de pessoas? Quando a emergência desaparecer, todos os países irão eliminá-las ao mesmo ritmo? “Dependendo dos danos humanos e económicos que o vírus irá provocar por todo o mundo, o coronavírus pode um dia ser considerado um ponto de viragem para toda a economia mundial”, acrescenta Bremmer.

É provável que essa viragem já esteja a acontecer. O que ainda não sabemos é qual será a nova direção e se, coletivamente, ela nos deixará melhor.

Imagem do Dia

 "Ninguém deve sair de casa", cartaz de menina em Mumbai(Índia), Rafiq \Maqbool/AP

Sopa para o azar

No Brasil, a ideia de morrer pela coletividade é um conceito distante. A complacência com a morte e a violência é o que expressa melhor um traço da nossa sociedade – basta observar como nós, brasileiros, conseguimos conviver com taxas horrendas de criminalidade há tanto tempo. Enquanto nos orgulhamos e exaltamos a nossa cordialidade, bom humor e alegria de viver.

Com decisiva ajuda do presidente Jair Bolsonaro, mas não só dele, o debate sobre a crise do coronavírus e suas consequências aqui descambou para um ácido maniqueísmo entre saúde das pessoas versus saúde da economia. Debate que, no fundo, mal encobre uma falsa dicotomia. Não dá para separar uma coisa da outra.


No extremo lógico do argumento abraçado por Bolsonaro vamos chegar a uma questão ética que ele provavelmente nem percebe, e que está contida na expressão “darwinismo social”. Simplificando bastante, significa tolerar que os mais frágeis sucumbam, pois assim determinam as “leis” da evolução social – além da noção (pouco difundida na nossa sociedade) do “bem comum”.

Bolsonaro e a defesa que faz da “saúde da economia” (simploriamente, ele deixou-se identificar com um lado na falsa dicotomia) espelham o fato de a sociedade brasileira tolerar a convivência com brutalidade (e desigualdade e miséria), mas, como cálculo político, traduz um perigoso erro de leitura da realidade. Pois, em política, mesmo com nossas notórias hipocrisias, ninguém conseguirá sobreviver associado à noção de que os mais frágeis precisam perecer pelo bem comum da economia.

Bolsonaro não é um jogador de xadrez e, por isso, é difícil assumir que seus atos sejam uma sequência de lances. Ele é um ser político intuitivo que reage a estímulos dados por um grupo restrito de “conselheiros” obcecados por posturas ideológicas que pouco passam de fantasias perigosas, à paranoia das “conspirações” e ao cálculo prático de quais vantagens políticas se oferecem no prazo mais imediato.

Além de copiar o deus Trump, que viu os índices de popularidade subirem quando começou a falar que as pessoas querem voltar a trabalhar.

No caso da crise do coronavírus, ele a enxerga como uma ameaça pessoal trazida pela deterioração provável (só se discute o tamanho) da economia e, consequentemente, dos seus índices de aprovação e chances eleitorais. Ocorre que, nessa competição para superar adversários eleitorais reais ou imaginários – governadores de Estado –, ele abriu uma fissura institucional de consequências políticas difíceis de serem antecipadas (só se discute o tamanho).

É o fato de que passaram a existir várias autoridades no enfrentamento da crise, em vários níveis da Federação. Sem que exista – além da formalização de comitês vários – uma liderança central que seria essencial para enfrentar o que vem por aí, em qualquer sentido. Ao contrário do que parece supor Bolsonaro, o público dificilmente fará uma distinção entre quem disse o quê neste momento sobre como combater a crise.

“Quem tinha razão” vai importar muito pouco lá na frente, pois o País – parte-me o coração ter de dizer isso – já entrou na dupla catástrofe de saúde pública e de economia devastada. A questão da liderança surge mais uma vez como um peso negativo no enfrentamento de nossos problemas – faltaram lideranças consequentes em todos os graves episódios e, sobretudo, lideranças com visões além dos seus interesses políticos mais próximos.

Terminei o texto da semana passada afirmando que o coronavírus era uma ameaça grave para Jair Bolsonaro. Entendido, como ele foi, como uma liderança surgida numa onda disruptiva, a onda de 2018.

Não calculava, porém, que a crise pudesse diminuí-lo com tanta rapidez. É o que acontece, como se diz em gíria, quando alguém se empenha em dar tanta sopa para o azar.

Quem se habilita?

O Brasil precisa discutir quem será o fiador das mortes
João Doria, governador de São Paulo

Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974

Aulas suspensas e eventos esportivos transferidos, algumas das consequências da atual pandemia do novo coronavírus, já marcaram a história recente do Brasil, por conta de outra doença: a meningite.

Em 1974, durante o período da ditadura militar, o Brasil enfrentava a pior epidemia contra a meningite de sua história. O país já tivera dois surtos da doença - um em 1923 e outro em 1945 -, mas, nenhum deles tão grave ou letal.

Isso porque o Brasil foi vítima não de um, mas de dois subtipos de meningite meningocócica: do tipo C, que teve início em abril de 1971, e do tipo A, em maio de 1974.

Para evitar o contágio, o governo tomou medidas drásticas: decretou a suspensão das aulas e suspendeu eventos esportivos. Os Jogos Pan-Americanos de 1975, que estavam marcados para acontecer em São Paulo, tiveram que ser transferidos para a Cidade do México. Hospitais, como o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ficaram superlotados.

A que viria a ser a maior epidemia de meningite da história do Brasil teve início em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Logo, a população mais carente começou a se queixar de sintomas clássicos, como dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.

Meningite, a epidemia sob a guarda militar
Em novembro daquele ano, o que parecia ser um surto restrito a uma determinada localidade logo se alastrou e, aos poucos, ganhou proporções epidêmicas. Dali, não parou mais.

Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes. Algo semelhante só se via no "Cinturão Africano da Meningite", área que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia.

Das regiões mais carentes, a epidemia migrou para os bairros mais nobres. Até julho daquele ano, um único hospital em São Paulo atendia pacientes com meningite. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas tinha 300 leitos disponíveis, mas chegou a internar 1,2 mil pacientes.

"Não houve quarentena porque o período de incubação da meningite é muito curto", explica a epidemiologista Rita Barradas Barata, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Na época, Rita trabalhava como aluna do internato em medicina no Emílio Ribas. "O atendimento foi além de sua capacidade máxima. Trabalhávamos muitas horas por dia", recorda.

De agosto em diante, outras 26 unidades passaram a fazer parte de uma rede de atendimento a pacientes com sintomas de meningite. "Depois de um ou dois dias recebendo tratamento injetável, os casos mais leves eram transferidos para outras unidades, onde recebiam a medicação oral. Já os pacientes mais graves permaneciam no Emílio Ribas", complementa a médica.

Até então, uma pequena parcela da população, quase nula, sabia da existência da epidemia. O governo procurou escondê-la ao máximo, segundo explica quem acompanhou o caso de perto.

"Assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença", afirma a jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora da tese A Construção Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira (1971-1975). "Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas".

Durante os anos da ditadura, alguns temas foram proibidos de serem divulgados - através de notícias, entrevistas ou comentários - em jornais e revistas, rádios e TVs. A epidemia de meningite que castigou o Brasil na primeira metade da década de 1970 foi um deles.

Sob o pretexto de não causar pânico na população, a censura proibiu toda e qualquer reportagem que julgasse "alarmista" ou "tendenciosa", sobre a moléstia.

Em 1971, quando foram registrados os primeiros casos, o epidemiologista José Cássio de Moraes, doutor em Saúde Pública pela USP e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, integrava uma comissão de médicos de diferentes áreas, como epidemiologistas, infectologistas e sanitaristas. Juntos, detectaram um surto da doença e procuraram alertar as autoridades. Não conseguiram. Em tempos de 'milagre econômico', o governo se recusou a admitir a existência de uma epidemia. "Os militares proibiram a divulgação de dados. Pensavam que conseguiriam deter a epidemia por decreto. Se eu não divulgo, é como se não existisse. Não sabiam que o vírus era analfabeto e não sabia ler Diário Oficial", ironiza o médico.

Dali por diante, médicos de instituições públicas foram proibidos de conceder entrevistas à imprensa. O jeito era dar declarações em "off" para jornalistas de confiança, como Demócrito Moura, do Jornal da Tarde. Mesmo assim, as poucas matérias publicadas, alertando a população dos riscos da meningite, eram desmentidas pelas autoridades.

"Ao governo não interessava a divulgação de notícias negativas. Negar a existência da epidemia foi um erro porque facilitou sua propagação e atrasou a adoção de medidas necessárias ao seu combate. Numa situação dessas, quanto mais rapidamente essas medidas forem adotadas, menores serão as perdas de vidas e os danos à economia", afirma o historiador Carlos Fidelis Ponte, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Em 1974, quando a verdade veio à tona, pelo menos sete Estados totalizavam 67 mil casos - 40 mil deles só em São Paulo. A população, quando soube da epidemia, entrou em pânico. Com medo da propagação da doença, as pessoas evitavam passar na frente do Emílio Ribas. De dentro de carros e ônibus, fechavam suas janelas. Na falta de remédios e de vacinas, recorriam a panaceias milagrosas, como a cânfora.

"Naquela época, não havia rede social, mas já existiam 'fake news'. A boataria atrapalhou bastante", recorda José Cássio.

O governo suspendeu as aulas e mandou os estudantes de volta para casa. Quando era registrado algum caso nas dependências das escolas, as autoridades sanitárias passavam formol nas mesas e carteiras. Em algumas cidades, as escolas públicas foram transformadas em hospitais de campanha para atender os doentes.

Nos hospitais, a epidemia sobrecarregou especialistas em doenças infecciosas. Médicos de outras áreas, para evitar a contaminação, usavam capacetes, óculos e botas. Outros, ao contrário, atendiam pacientes sem qualquer tipo de proteção. Um terceiro grupo preferiu mudar para o interior, com suas famílias.

Uma das primeiras medidas foi prescrever sulfa. Na esperança de deter o avanço da epidemia, a população passou a tomar o antibiótico por conta própria. "O estoque acabou rapidamente e a bactéria ficou resistente", recorda José Cássio.

Todos os dias, a comissão médica da qual o médico fazia parte procurava atualizar os números e divulgá-los no quadro de avisos do Palácio da Saúde, onde funcionava a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Os setoristas da área até tinham acesso às informações, mas não podiam divulgá-las.

Os números de casos e de óbitos são contraditórios. O estudo A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX: Características Epidemiológicas, de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, calcula que, no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1,6 mil óbitos. Já a edição de 30 de dezembro de 1974 do jornal O Globo divulgou que, só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2,5 mil em São Paulo.
Ministério censurado

Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência no lugar do general Médici. Para ministro da Saúde, ele nomeou o médico sanitarista Paulo de Almeida Machado.

Naquele ano, a jornalista Eliane Cantanhêde, então na revista Veja, conseguiu uma exclusiva com o ministro, em Brasília. Pela primeira vez, uma autoridade admitia publicamente que o Brasil vivia uma epidemia. Mais que isso. Ele alertou sobre os riscos da meningite e ensinou medidas de higiene à população.

De volta à redação, Cantanhêde começou a bater a matéria e a enviá-la, via telex, para a sede da Veja, em São Paulo. Dali a pouco, ficou sabendo que a entrevista tinha sido censurada. Motivo? "Não havia vacina para todo mundo", explica Eliane. "As pessoas não sabiam o que era meningite. Muitas delas morriam e, por falta de informação, não sabiam do quê".

No dia 26 de julho de 1974, o jornalista Clóvis Rossi também teve um de seus textos censurados. No espaço reservado ao artigo A Epidemia do Silêncio, a direção da Folha de S. Paulo se viu obrigada a publicar um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões. "Desde que, há dois anos, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações e reduzir os números a proporções incompatíveis com a realidade", alertou Rossi no artigo censurado.

Naquele mesmo ano, o governo brasileiro assinou um acordo com o Instituto Pasteur Mérieux e importou em torno de 80 milhões de doses da vacina contra meningite. "O laboratório francês precisou construir uma nova fábrica porque a que existia não comportava uma produção tão grande", relata o historiador Carlos Fidelis. "Foi a partir dessa emergência que se criou, na Fiocruz, a fábrica de fármacos, a Farmanguinhos, e a de vacinas, a Bio-Manguinhos".

Em 1975, o Brasil deu início à Campanha Nacional de Vacinação Contra a Meningite Meningocócica (Camem). Foi quando, para estimular a ida em massa da população aos postos de saúde, o governo passou a divulgar os números da doença.

"A letalidade da meningite é de 10%, mas, no auge da epidemia, caiu para 2%", afirma Rita Barradas Barata. "O diagnóstico era feito de maneira precoce e o tratamento com antibiótico reduzia o risco de morte".

Em apenas quatro dias, foram aplicadas 9 milhões de doses na região metropolitana de São Paulo. Logo, estenderam a campanha para outros municípios e estados. A imunização não era feita com seringa e agulha e, sim, com uma "pistola" injetora de vacina. "Conseguimos uma cobertura vacinal de quase 90% da população", orgulha-se José Cássio.

Além de superlotar hospitais e de fechar escolas, a epidemia de meningite teria causado outros "estragos". Um deles é a transferência dos Jogos Pan-Americanos de 1975, da cidade de São Paulo para a do México. Bem, pelo menos essa é a versão oficial. A extraoficial é contada pelo advogado Alberto Murray Neto. "Em 1975, o número de casos já tinha reduzido e o que se dizia é que a epidemia estava controlada. Em tese, a meningite não seria um impeditivo para os Jogos", revela Alberto.

Seu avô, Sylvio de Magalhães Padilha, era o então presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e vice do Comitê Olímpico Internacional (COI). Durante reunião em Brasília, foi avisado pelo ministro da Educação, Ney Braga, que não teria recursos do governo federal para os Jogos. Em suma: o Pan deveria ser cancelado, a três meses de sua realização.

"Meu avô cancelou os Jogos, sem esconder que a questão crucial era o corte de verbas", relata Alberto. Os Jogos Pan-Americanos de 1975 deixaram para a cidade o velódromo, a raia olímpica e o Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPEUSP)".

Coronavírus e a pandemia política

Todos os presidentes da Nova República, de 1985 a 2020, governaram dentro da frigideira da política. Nenhum deles, diante da gordura quente, se comportou com mais serenidade do que José Sarney. Não amaldiçoou a realidade, não botou para quebrar, não convocou passeata, não agravou a crise mundial, não ameaçou a democracia. Antes, encurtou seu mandato.

Temos certa má tradição de cada presidente eleito que chega ao Palácio mudar a mesa de lugar, o quadro da parede, os heróis nacionais, como se fosse comum, por arbitrárias escolhas, vestir o omofhorion ortodoxo dos seus costumes familiares.

Abra os olhos e veja. Infelizmente, embora o fenômeno seja mundial, não estamos na crise do mesmo jeito. Basta observar a forma desgraciosa de governar do Presidente da República para poder dizer que vivemos um pesadelo e estamos submetidos a duas leis em cada Estado.
Um presidente que tem mais retórica do que recursos de poder não passa de prego no isopor. Mas não perde o poder de furar.


Onde o governador é médico, político experiente, sério e determinado, como Ronaldo Caiado em Goiás, o presidente encontra uma autoridade política e sanitária que o impede de manipular eleitoralmente o povo. Porque diante de uma pandemia é um contrassenso o conflito público entre a autoridade política e a autoridade técnica. E, tempos atuais, foi o Ministro da Saúde que foi posto em quarentena.

O governo federal não quer assumir o ônus da crise sanitária porque sabe que a Fazenda não tem respostas para a paralisia econômica brasileira. E, pior, sua equipe não sabe o que fazer porque não aceita o fato e a realidade inexorável que é a parada repentina da vida econômica pela velocidade do contágio humano. É como xingar um terremoto.

Assim, o presidente, que já é turbulento, entra em combustão: não quer um operador nacional da crise sanitária, pois isto deixaria o governo totalmente em segundo plano, já que sabe que não tem um operador da crise econômica ligada a ela. Ou seja, quer fazer o lockdown da temporalidade. Bloquear o tempo em fevereiro e dizer que dali para cá quem gastar com a calamidade é responsável por tudo de errado que ele fez até agora.

Se alguém for amigo do presidente é bom dizer rapidamente a ele que sem investimento público emergencial federal o vírus vai, além de adoecer o cidadão ampliar a estagnação, a doença da economia no seu governo.

E se alguém conseguir resolver o quebra-cabeça que é pegar um avião e ver se consegue falar com o ministro Paulo Guedes é bom dizer a ele que o coronavirus não está pedindo mudança do modelo econômico liberal, mas mudança no padrão de gestão do presente.

Conversar com Rodrigo Maia é um bom caminho, pois foi ele o primeiro a entender, e por isso tem sido a voz mais sensata dessa crise.

O vírus não pode espalhar, senhor Presidente, é porque o Brasil, e o mundo, não tem leitos suficientes para receber todos os pacientes infectados. E ninguém é Deus para na porta do hospital decidir quem vai para o necrotério.

Sabemos que a saúde nunca monopolizou a atenção de todos como agora, mas é impressionante não perceber que não há necessidade de mobilização nacional para gerar o discurso que justifique o investimento necessário ao combate da situação.

Metam a mão no bolso, planejem a solidariedade oficial, protejam o caixa dos milhões de brasileiros que fecharam as portas do seu negócio para colaborarem com o mutirão sanitário do país. É dever do Estado pagar as dívidas de quem se comportou com responsabilidade pública e coletiva. Ou criem uma ala no governo para os incuráveis da insensibilidade.

A volta do conhecimento

Pela primeira vez desde que temos memória, as vozes que prevalecem na vida pública espanhola são as de pessoas que sabem. Pela primeira vez assistimos à aberta celebração do conhecimento e da experiência, e ao protagonismo merecido e até então inédito de profissionais de diversas áreas cuja mistura de máxima qualificação e coragem civil sustenta sempre o mecanismo complicado de toda a vida social. Nos programas de televisão em que, até recentemente, reinavam exclusivamente dissertadores especializados em opinar sobre qualquer coisa a qualquer momento, agora aparecem médicos de família, epidemiologistas, funcionários públicos que enfrentam diariamente uma doença que perturbou tudo e que a qualquer momento pode atacá-los. Todas as noites, às oito, nas ruas vazias, eclodem aplausos como uma tempestade repentina, dirigidos não a demagogos embusteiros, mas a trabalhadores da saúde, que até ontem cumpriam sua tarefa acossados por cortes contínuos, pela falta de meios, pelo desdém às vezes agressivo de usuários caprichosos ou resmungões. Agora, exceto nos redutos habituais, não ouvimos slogans, nem lemas de campanha criados por publicitários, nem banalidades cunhadas por essa espécie de gurus ou de aprendizes de feiticeiro que inventam estratégias de “comunicação” e que aqui também, que remédio, já são chamados de spin doctors: charlatães, trapaceiros, vendedores de fumaça.

A realidade nos obrigou a nos colocarmos no terreno até agora muito negligenciados dos fatos: os fatos que podem e devem ser verificados e confirmados, para não serem confundidos com delírios ou mentiras; os fenômenos que podem ser medidos quantitativamente, com o mais alto grau de precisão possível. Tínhamos nos acostumado a viver na névoa da opinião, da diatribe sobre as palavras, do descrédito do concreto e do comprovável, inclusive do aberto desdém pelo conhecimento. O espaço público e compartilhado do real havia desaparecido em um turbilhão de bolhas privadas, dentro das quais cada um, com a ajuda de uma tela de celular, elaborava sua própria realidade sob medida, seu próprio universo cujo protagonista e centro era ele mesmo, ela mesma.

Estava andando pela rua e notava que quase todo mundo ao meu redor se virava para viver dentro de seu espaço privado, exatamente igual que se estivesse na sala de estar de sua casa, em seu quarto, até mesmo em seu banheiro: o diadema dos capacetes gigantes para não ouvir o mundo exterior e ser alimentado a cada momento por um fio sonoro ajustado às suas preferências; o olhar não nas pessoas com que você cruza, mas na tela à qual olha; a voz que fala no mesmo tom que em um quarto fechado, tão descuidada dos outros que era habitual assistir involuntariamente a conversas íntimas embaraçosas, brigas, explosões de lágrimas.

“O senhor tem todo o direito do mundo às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”, escreveu o grande senador democrata e ativista cívico Patrick Moynihan. Disse isso antes de um porta-voz de Donald Trump cunhar o termo “fatos alternativos”, e de que a penúria financeira dos meios de comunicação os levasse a se alimentar de opiniões mais do que de fatos, uma vez que sempre será muito mais caro, mais trabalhoso e até mais arriscado investigar um fato do que expressar uma opinião. Soma-se a isso uma difusa hostilidade coletiva, que os meios de comunicação incentivam, em relação a tudo que pareça demasiado sério, pesado, pouco lúdico. O entrevistador não esconde sua impaciência diante do convidado que soa lento enquanto se esforça em uma explicação. Ele o interrompe: “Me dê uma manchete”. Investigar com rigor e explicar com clareza requer conhecimento e experiência, que é o conhecimento mais profundo que só pode ser obtido com o tempo e a prática: são as qualidades necessárias para exercer uma tarefa pública comprometida, desde assistir a um doente em uma sala de emergência a mantê-la limpa, ou dirigir uma ambulância, ou montar um hospital de campanha da noite para o dia.

Mas entre nós a experiência havia perdido qualquer valor e todo o seu prestígio, e o conhecimento provocava receio e até zombaria. Quando tudo tem de parecer ostensivamente jovem e associado à última novidade tecnológica, a experiência não serve para nada e até se torna uma desvantagem para quem a possui; quando alguém acredita que pode viver instalado na bolha de seu narcisismo particular ou daquele outro narcisismo coletivo que são as fantasias identitárias, o conhecimento é uma substância maleável que assume a forma que se deseja dar a ele, assim como sua presença pessoal é moldada pelos filtros virtuais apropriados. E a política deixa de ser o debate sobre as formas possíveis e sempre limitadas de melhorar o mundo em benefício da maioria para se tornar um teatro perpétuo, um espetáculo de realidade virtual, não submetido ao pragmatismo nem à cordura, uma fantasmagoria que se fortalece graças à ignorância e que encobre com eficácia a crua ambição pelo poder, o abuso dos fortes sobre os fracos, a propagação da injustiça, o desperdício, o roubo do dinheiro público.

Na Espanha, a guerra da direita contra o conhecimento é imemorial e também é muito moderna: combina obscurantismo arcaico com a proteção de interesses venais perfeitamente contemporâneos, os mesmos que impulsionam nos Estados Unidos a guerra aberta do Partido Republicano contra o conhecimento científico, financiada pelas grandes empresas petrolíferas. A direita prefere esconder os fatos que prejudicam seus interesses e privilégios. A esquerda desconfia dos que parecem não se adequar aos seus ideais ou aos interesses dos aproveitadores que se disfarçam com eles. A esquerda cultural se filiou há muitos anos a um relativismo pós-moderno que considera qualquer forma de conhecimento objetivo suspeita de autoritarismo e elitismo. Nem a esquerda nem a direita têm o menor inconveniente em substituir o conhecimento histórico por fábulas patrióticas ou lendas retrospectivas de vitimismo e emancipação.

Curiosamente, na Espanha, a esquerda e a direita sempre concordaram em deixar de lado ou encurralar as pessoas dotadas de conhecimento e experiência na esfera pública e submetê-las ao controle de pseudoespecialistas e apaninguados. Professores do ensino fundamental e médio estão sujeitos ao flagelo de psicopedagogos e comissários políticos há décadas; os médicos e enfermeiros da saúde pública estão sujeitos ao capricho e à inexperiência de supostos especialistas em gestão ou em recursos humanos, cujo único talento é medrar no emaranhado dos cargos políticos.

Foi necessária uma calamidade como a que estamos sofrendo agora para que descobríssemos bruscamente o valor, a urgência, a importância suprema do conhecimento sólido e preciso, para nos esforçarmos em separar os fatos dos boatos e da fantasmagoria e distinguir com nitidez imediata as vozes das pessoas que sabem de verdade, aquelas que merecem nossa admiração e nossa gratidão por seu heroísmo de servidores públicos. Agora ficamos com um pouco de vergonha de termos nos acostumado ou resignado durante tanto tempo ao descrédito do saber, à celebração da impostura e da ignorância.
Antonio Muñoz Molina