quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Reencarnação diabólica


Nos negamos a entender que o Tirano é imortal, o Tirano reencarna quando quer, com o corpo e a voz que quer, o grande mago, o grande cão, o Maligno, reencarna em cada homem que ama o poder
Abilio Estévez, "Os palácios distantes"

Mais ódio no gabinete do ódio

A gestão Bolsonaro parece ter decidido dobrar a meta de gente asquerosa entre seus contratados. Só isso explica a possível nomeação do publicitário Luiz Galeazzo para cuidar da área digital do governo. Perto dele Abraham Weintraub parece um coroinha.

Galeazzo é figura conhecida nas redes sociais. Bolsonarista radical, faz piadas grotescas, insulta mulheres, dispara críticas raivosas contra o STF, compartilha fake news, diz que gente de esquerda não merece ser tratada como "pessoas" e, baixaria das baixarias, postou foto da vereadora assassinada Marielle Franco com a legenda "morri kkkkk".

Como sabemos, toda canalhice em favor desse governo será recompensada. Na semana passada, Galeazzo foi convidado pelo encrencado Fabio Wajngarten, da Secom, e sua nomeação aguarda aprovação do Gabinete de Segurança Institucional, que analisa, por exemplo, seus antecedentes criminais. O comportamento abjeto de Galeazzo nas redes parece não ter importância nessa vistoria.



Quando a notícia vazou nesta quarta (5), o publicitário precisou adiantar a recomendação que recebeu de deletar sua presença virtual para assumir o cargo, justamente pelo conteúdo ofensivo que poderia ser usado contra ele e o governo. No Twitter, onde ainda mantinha uma conta, ele teve outros perfis banidos por causa de seus posts agressivos.

É um tipo desse, alinhado com o de outros integrantes do que é chamado de Gabinete do Ódio, que vai cuidar da área digital, que envolve toda a presença do governo nas mídias sociais e também a publicidade nessas plataformas.

A encomenda de Wajngarten é que Galeazzo tenha um comportamento diferente do seu habitual e que dê uma roupagem mais profissional à comunicação do governo. Pensando bem, até que faz algum sentido, a Secom contrata uma pessoa que precisa fazer de conta que é decente para divulgar uma gestão que também só faz de conta que não é ordinária.

Você paga defesa do chefe suspeito da Secom

Sob Jair Bolsonaro, o anormal vai assumindo ares de uma doce e persuasiva normalidade. Não bastasse manter Fabio Wajngarten no cargo de chefe da Secretaria de Comunicação do Planalto, o presidente permite que a conta da defesa do auxiliar suspeito seja espetada no borderô da Advocacia-Geral da União (pode me chamar de contribuinte).

O PSOL move na Justiça Federal de Brasília ação contra Wajngarten. Pede a intervenção do Judiciário para afastar dos cargos o chefe da Secom e seu adjunto, Samy Liberman, além de anular os atos praticados na gestão do assessor de Bolsonaro, iniciada em abril de 2019. Em vez de guerrear com advogado próprio, Wajngarten encostou sua defesa nas arcas do Tesouro Nacional.


Antes de ganhar um cargo no Planalto, Wajngarten era dono e administrador de uma empresa que presta serviços a emissoras de TV e agências de publicidade que têm contratos com a Secom. Depois de nomeado, Wajngarten manteve-se como dono de 95% das cotas da empresa. E entregou a gerência do negócio ao publicitário Fábio Liberman, cujo irmão, Samy Liberman, virou número 2 da Secom.

Apanhado no contrapé por reportagens da Folha, Wajngarten explicou-se. Alegou ter sido "orientado" pela Subchefia de Assuntos Jurídicos do Planalto, pela Advocacia-Geral da União e pela Controladoria-Geral da União. Pediram "que eu saísse do quadro de gestão" da empresa, disse Wajngarten, sem exibir papeis.

Clientes da empresa de Wajngarten, as emissoras Record e Bandeirantes e a agência Artplan passaram a receber percentuais maiores do bolo de verbas da Secom. Em defesa do secretário, a AGU sustenta que não houve favorecimento. Alega também que Wajngarten entregou declaração confidencial à Comissão de Ética Pública da Presidência. As informações contidas nesse documento preencheriam os "requisitos formais" exigidos para a sua nomeação.

O diabo é que a Folha obteve cópia da tal declaração confidencial. Tem oito folhas. Foi assinada em 14 de maio de 2019. Wajngarten fora nomeado no mês anterior. O documento contém omissões. Por exemplo: o chefe da Secom absteve-se de fornecer dados sobre o ramo de atuação de sua empresa e os contratos firmados com TVs e agências que recebem verbas da secretaria que passou a comandar.

Quando o caso ganhou as manchetes, Jair Bolsonaro informou que manteria Wajngarten no cargo. Deu de ombros para as interrogações: "Se foi ilegal a gente vê lá na frente". Foi como se o presidente declarasse, com outras palavras: "O futuro a Deus pertence." O que não se imaginava é que Wajngarten explicaria o passado nebuloso com o auxílio de advogados que o contribuinte remunera para defender os interesses da União.

Nesta terça-feira, descobriu-se que, a pedido do procurador Frederick Lustoza, do Ministério Público Federal em Brasília, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar Wajngarten. Deseja-se apurar indícios de corrupção, peculato e advocacia administrativa, que ocorre quando um servidor público usa o cargo para defender interesses privados.

Há uma semana, quando o procurador requisitou a entrada da Polícia Federal no caso, Wajngarten celebrou a novidade como uma "oportunidade" para provar que não infringiu a lei. Reiterou a pregação nesta quarta-feira. Resta agora saber se fará isso por conta própria ou se continuará pendurando sua defesa no bolso dos brasileiros em dia com o Fisco.

Riscos à democracia e realinhamento politico

O simples debate a respeito dos riscos à democracia é eloquente sinal do sentimento de parte do país. Num regime consolidado não há dúvida: tudo está sob o controle das leis; a liberdade não é apenas formal, imprensa e grupos de comunicação não são perseguidos nem favorecidos; não se apela à intervenções militares, nem se questiona o sistema de freios e contrapesos do país. Como observou Cláudio Couto, a erosão democrática não se dá aos saltos, mas dia após dia; submetidas a testes frequentes, também as instituições vão à fadiga.

É fato que, no Brasil, o esdrúxulo saltou do noticiário; sucedido por desculpas, repete um deliberado e entediante ciclo de ataques. O acintoso e o patético chocam cada vez menos; o país está anestesiado ou a desesperança venceu. O Legislativo, sim, tem exercido suas prerrogativas; é positivo, mas parece depender de arrimos e fiadores políticos, o que é precário. Já o Executivo, inábil em quase tudo, confunde o público com o privado e familiar. Pleno de conflitos, o Supremo já não consegue dissimular alinhamentos e disputas.


Seria menos preocupante se importantes instituições não fossem lentamente aparelhadas. Política Externa, Meio Ambiente, Educação, Ministério Público, Polícias Federal e Militares, Poder Judiciário e até as Religiões foram envolvidas em projetos de poder. É clara a instrumentalização daquilo que deveria ser impessoal e laico, o Estado.

Mas, de toda sorte, o debate acadêmico está posto por gente qualificada que esgrime bons argumentos a favor ou contra, incorretamente taxados de “otimistas” ou “pessimistas”. Todavia, o deixemos de lado: aqui, cumpre buscar as raízes dos tais riscos. Elas não estão apenas no bolsonarismo, residem também no silêncio e apatia da sociedade, na canibalização de setores democráticos, nos vetos cruzados de movimentos identitários, na ineficácia das lideranças políticas e na dificuldade de o país se reinventar.

A outrora chamada sociedade civil carrega culpas e responsabilidades. A dois anos da eleição, atores se precipitam aos palanques e a plateia se organiza como nos clássicos de futebol: torcidas indóceis, redes sociais que indicam que o país perdeu a elegância e a civilidade. A começar, pelos gritos, a dificuldade de ouvir, estabelecer diálogos e consensos – elementos da arte democrática.

Parte disto se deu em virtude da longa polarização PT/PSDB que, ao final, somou zero atingindo-os mutuamente. Quando se viu, o PSDB já era a direita atropelada pelo bolsonarismo; mutilado de guerra, o PT recolhe-se ao gueto da soberba e do ressentimento. Em paralelo, o centro emedebista sucumbiu ao fisiologismo e aos escândalos em pencas da era Temer. Desorganizado o sistema, a fúria eleitoral de 2018 plantou populismo autoritário e colheu política vazia.

Novos atores tentam emergir do naufrágio. Mas o cenário ainda é pouco promissor: pontes foram queimadas e canais obstruídos. Setores antes afeitos à democracia fecham-se em bolhas. Sem coordenação, interesses específicos se descolam do interesse geral: o velho patrimonialismo campeia e dá vida a novos tipos de corporativismo. Míope, o mercado se basta ao “traderismo” viciado em ganhos e vantagens de curto prazo. Desconhece-se que a democracia é a única forma politicamente sustentável de aprovação e implantação de agendas econômicas.

Noutra ponta, movimentos identitários de justas bandeiras fecham-se em si, ignorando princípios e valores mais amplos, como a necessária unidade política e a democracia como ação coletiva. Luta-se bravamente em vários campos, mas quase sempre de forma isolada, com vetos cruzados de autoritários “lugares de fala”. Também aqui soma-se zero, o que parece ser característico desta quadra histórica.

Enfim, uma marcha para a insensatez tem resultado numa estrada de riscos que sobrecarregam os freios democráticos. Desenvolvimento econômico, bem-estar social, liberdade política, nada disso se fará sem coordenação e cooperação, num sistema destinado à fragmentação e à dispersão. Ambientes de soma zero são assim: deixam todos descontentes e semeiam o canibalismo político. Até que se perceba que todos perdem, todos já perderam de fato.

A pacificação política não é arco-íris pós-tempestades, nem resultado óbvio do crescimento econômico. No longo prazo, o crescimento efêmero pode até agravar conflitos e tornar a comprometer economia. Ilude-se quem acredita que o mundo vive mais um trivial ciclo político ou econômico. Há mudança econômica estrutural, exclusão social e contestação planetária à democracia, com abalos políticos evidentes; basta ter olhos de ver.

No Brasil, setores que estiveram juntos na oposição ao regime autoritário e na transição democrática vivem hoje em discórdia, sob um risco comum. Há miopia e mesquinhez eleitoral. E pouca responsabilidade. A esfera democrática – ou pelo menos a sua defesa – não será assegurada sem realinhamentos políticos e a construção um arco de alianças cuja abrangência se dê do centro democrático liberal à esquerda igualmente democrática e progressista, aberto a quem mais aderir ao trinômio “democracia, políticas públicas e equilíbrio fiscal”.

Já não há Ulysses, Tancredo, tampouco há Nelson Mandela brasileiro – redentor ou mito, não importa. O processo construirá novas referências, mas não cabe idealizá-las. Antes, a sociedade política terá que se recompor e caminhar com aquilo que possui: cidadãos que à parte dos partidos se indagam sobre os riscos à democracia; que calculando perdas fundamentais convencem-se a forçar lideranças de que sentarem-se em torno de mesma mesa é o melhor a fazer – até para que ninguém se aventure a virá-la.
Carlos Melo

Brasil otimista


Brasil retrocede na luta contra a corrupção apesar do discurso de Bolsonaro

O discurso de batalha implacável contra a corrupção e renovação radical da classe política foi fundamental para que os brasileiros dessem a vitória ao até então irrelevante deputado Jair Bolsonaro. Por isso convidou o idolatrado juiz Sergio Moro ao Governo como ministro. Mas as vagas promessas eleitorais do ultradireitista nesse âmbito não se concretizaram em avanços em seu primeiro ano como presidente. Pelo contrário. Os retrocessos por parte do Executivo, mas também do Poder Judiciário e do Legislativo, são de tal calibre que a OCDE, o clube dos países ricos no qual o Brasil quer entrar, enviou uma missão ao país em novembro.


Uma das decisões brasileiras que mais alarmaram o clube dos países ricos foi tomada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal em resposta a um recurso do primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, investigado por peculato e lavagem de dinheiro. Antonio Dias Toffoli limitou o uso nas investigações de informações obtidas pelo órgão público que luta contra a lavagem de dinheiro (Coaf), uma sentença que paralisou as investigações sobre o caso de Flávio e outros 900. “Teve um impacto sistêmico, praticamente paralisou o sistema de combate à lavagem de dinheiro durante meio ano”, diz em uma entrevista Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional no Brasil. A decisão do magistrado foi revogada por seus colegas do Supremo no final do ano, quando foi debatida em plenário.

O grupo de trabalho contra as propinas da OCDE divulgou, após sua visita em novembro, um curto, mas contundente comunicado, reflexo de uma profunda preocupação compartilhada pelos representantes europeus em Brasília: “Estamos muito alarmados pelo fato de que tudo o que o Brasil conquistou nos últimos anos na luta contra a corrupção possa agora estar seriamente comprometido”. A missão acrescentou que o Brasil deveria reforçar os mecanismos anticorrupção, “não os enfraquecer”.

O Brasil tirou novamente a pior nota da série histórica no exame da percepção da corrupção no mundo recentemente publicado pela Transparência Internacional. Seus 35 pontos —os mesmos de 2018— o colocam na 106° posição em uma lista que tem a Dinamarca no topo. “Apesar do discurso e das promessas de grande renovação por parte do presidente, deputados e senadores, 2019 foi péssimo em termos de reformas contra a corrupção”, segundo Brandão, chefe da ONG no Brasil. Uma das maiores contradições de Bolsonaro, segundo o representante da Transparência, é sua aberta hostilidade contra a imprensa e a sociedade civil, cuja força é fundamental para reduzir a corrupção.

O temor de que o Brasil emperre seus enormes avanços nos últimos anos contra a arraigada corrupção que lubrificava as relações entre a política e o empresariado é maior no estrangeiro do que no Brasil, onde a polarização política também contamina esse assunto. Levantamento da CNT/MDA feito em janeiro mostrou leve recuperação da aprovação de Bolsonaro e também revelou que 46,8% entendem que a corrupção diminuiu em 2019 em relação aos últimos Governos —uma percepção positiva, ainda que as manobras de Bolsonaro para proteger seu filho causem receio em parte de seus eleitores.
PF, Coaf e investigação contra secretário de Comunicação

Brandão frisa que os três poderes tomaram decisões que significam retrocessos graves. O pior do Governo, afirma, são as interferências políticas em nomeações e destituições em postos fundamentais na luta contra a corrupção. Bolsonaro, por exemplo, rompeu a tradição de nomear o procurador-geral da República entre a trinca eleita pelos interantes do Ministério Público Federal, trocou o chefe da Polícia Federal no Rio de Janeiro (justamente a cidade em que seu filho é investigado) e o chefe da Coaf, que persegue a lavagem de dinheiro. Critica o Congresso por sua aprovação da ampliação do fundo para financiar campanhas eleitorais e enfraquecer os sistemas para fiscalizá-lo e o Judiciário, principalmente, por haver paralisado as investigações contra a lavagem de dinheiro, também em perseguição ao crime organizado.

Ainda que elogie a contratação de 1.200 novos policiais e outros avanços, a Transparência Internacional critica que o presidente mantenha em seus cargos o ministro do Turismo e o líder do Governo do Senado, ambos investigados por corrupção. O presidente também decidiu manter no cargo, até o momento, o secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten. A Polícia Federal instaurou, a pedido do Ministério Público Federal, um inquérito para apurar se o secretário cometeu os crimes de corrupção passiva e peculato (desvio de recursos públicos feito por para proveito pessoal ou alheio). A investigação veio depois que o jornal Folha de S.Paulo revelou que a empresa da qual Wajngarten detém 95% das ações, a FW Comunicação, recebe dinheiro de pelo menos duas emissoras de TV (Record e Band) e de três agências de publicidade contratadas pela Secom, por ministérios e por estatais federais.

A Transparência também destaca que a Operação Lava Jato foi notícia no ano que passou mais pelas revelações jornalísticas que colocam em dúvida a imparcialidade do à época juiz Sergio Moro e dos promotores do que pelos novos 29 casos com 150 acusados que revelou e os 4 bilhões de reais que recuperou. As informações elaboradas a partir de arquivos obtidos pelo The Intercept Brasil junto com os principais veículos da imprensa do Brasil, incluindo o EL PAÍS, revelam uma chamativa proximidade entre juiz e Procuradoria. Uma consequência foi colocar o foco em um sistema em que o juiz que instruiu o caso é quem o julga. Para separar as duas funções e dar a elas maior independência, foi recém-aprovada uma lei que cria a figura do juiz de garantias. A medida, no entanto, está suspensa pelo STF.

Cegueira cívica

Foi sempre pecha nossa esta espécie de amor canino à pátria, instintivo, sem a noção de que o verdadeiro civismo consiste mais numa serena consciência cultural do que numa paixão telúrica. Amar cegamente é renunciar à análise das perfeições ou imperfeições do objecto amado
Miguel Torga, "Diário"

Esquecer nunca lembrar sempre

Dois dos maiores gênios da Humanidade, Einstein e Freud, ambos judeus, trocaram ideias sobre o tema “Por que a Guerra?” A iniciativa foi uma proposta da Liga das Nações e do seu Instituto Internacional para Cooperação Intelectual a Einstein para convidar uma pessoa e debater a questão urgente da humanidade, assim, por ele formulada: existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?

O físico parecia ansiar por mecanismos práticos, efetivos para evitar a repetição da I Guerra Mundial. A correspondência, datada de 30 julho de 1932, foi respondida no mês seguinte. Não há, apesar da soma da genialidade, resposta definitiva. O pacifismo compartilhado, em profundidade, deixa alertas notáveis: “O homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, esta paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais; é, contudo, relativamente fácil, despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva”, escreveu Einstein.

"Caim ou Hitler no Inferno", (1944), George Grosz ,
enfim exibida ao público no Museu Histórico Alemão
“O Pai da Psicanálise”, em texto longo e ensaístico, conclui com um aceno de esperança: “A guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica que nos foi incutida pelo processo de civilização [...] simplesmente não podemos nos conformar com ela [...] nós, os pacifistas temos uma intolerância constitucional à guerra [...] Pode não ser utópico que a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça da guerra [...] tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra”.

Vã esperança. No sub-solo em que pisavam aqueles benfeitores da humanidade, camadas tectônicas conduziam a sociedade ao mais sombrio e devastador conflito da história, a II Guerra Mundial, movida por uma doutrina inebriante e um líder monstruoso.

Esquecer nunca. Lembrar sempre. Todo dia, inclusive, 27 de janeiro. É recomendável a leitura do livro de autoria do Primo Levi. Chego a pensar que não houve sobreviventes porque não dormiam: “mergulhavam no sono amargo e intenso”; que não comiam senão “a ração, um tijolo cinzento”, chamado pão; não respiravam, senão, “o cheiro nauseabundo da imundice”. A morte antecipada chegava com a nudez da dignidade humilhada: “vermes sem alma”.

A praga totalitária sai do inferno para destruir, insidiosamente, o tecido da democracia, esta sim, a mais poderosa das armas de combate. Democracia não maltrata. Não faz guerra. E não perdoa os ecos da voz criminosa de Joseph Goebbels.
Esquecer nunca. Lembrar sempre.

Tirem suas conclusões

A Polícia Federal concluiu que o senador Flávio Bolsonaro não cometeu os crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica de que está sendo acusado pelo Ministério Público do Rio, por estranhas transações com lucros astronômicos, marotas declarações de bens, movimentações atípicas de dinheiro vivo e invejável evolução patrimonial —tudo isso para um então deputado estadual e dono de uma loja de chocolates próspera no ano inteiro, menos na Páscoa. Ao ser indagado a respeito por um repórter, o presidente Bolsonaro rugiu: "Pergunta pra Polícia Federal!".


Típico de Bolsonaro. Fala todos os dias com os jornalistas, mas, se um deles toca em algo mais delicado ou lhe pede para explicar uma de suas próprias declarações, vocifera cala-bocas como "Chance zero!", "Esquece!", "Ponto final!", "Assunto encerrado!" e "Próxima pergunta!". Ou põe fim de vez à conversa com o incisivo "Acabou, talquêi?" e o já clássico "Pergunta pra tua mãe!" —o primeiro presidente a botar a mãe no meio das ejaculações presidenciais. Mas, no caso das acusações a Flávio Bolsonaro, ele tem razão —só a Polícia Federal consegue explicar por que o livrou.

Já seu outro filho, o vereador Carlos Bolsonaro, usa tática mais sutil. Em suas postagens nas redes sociais, alinha os argumentos de que precisa para provar um ponto. Mas, em vez de levá-los à conclusão lógica, termina com "Tirem suas conclusões" —dando margem a que seus interlocutores cheguem exatamente à conclusão a que ele quer que cheguem, mas pensando que o fazem por conta própria.

É um coquetel retórico, combinando conceitos de persuasão de massas, técnicas de publicidade e estratégias de livros de autoajuda, tudo bem misturado e servido com uma cereja. Serve tanto para vender sabão em pó quanto para induzir um indeciso a se aproximar de um líder, converter-se a ele e pensar como ele.

Tirem suas conclusões.

O presidente contra os índios

Jair Bolsonaro nunca escondeu o que pensa dos povos indígenas. O presidente já comparou os brasileiros que vivem em áreas demarcadas a “animais no zoológico”. Há duas semanas, disse que eles “estão evoluindo”. “Cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”, afirmou.

Ontem o governo passou da retórica à ação. De manhã, o “Diário Oficial” confirmou a entrega de um cargo-chave da Funai a um missionário evangélico. À tarde, o presidente assinou projeto que libera a extração de minério em terras indígenas.

Ligado a uma organização americana, o evangelizador Ricardo Lopes Dias assumirá o setor de proteção aos índios isolados. Para permitir sua posse, a Funai mudou a regra que reservava o cargo a servidores de carreira.
A nomeação assustou antropólogos e indigenistas. Eles temem que a estrutura da Funai seja usada para forçar contato com os índios isolados e facilitar o proselitismo religioso na floresta.


Em outra frente, Bolsonaro assinou projeto que libera o garimpo em terras indígenas. A proposta abre caminho para um antiga bandeira do capitão. Ele sempre fez lobby para entregar áreas protegidas da Amazônia à cobiça das mineradoras.

Para o indigenista Márcio Santilli, do Instituto Socioambiental, as ações do governo afrontam direitos garantidos na Constituição. Ele diz que Bolsonaro usa o poder para executar uma “política anti-indígena”. “As declarações do presidente são toscas e preconceituosas. Revelam uma visão primária das relações da sociedade com os povos indígenas”, afirma.

Em solenidade no Planalto, o ministro Onyx Lorenzoni definiu o projeto que libera o garimpo como uma “nova Lei Áurea”. Ele disse que os índios vão ganhar “autonomia”, como se o objetivo não fosse entregar as riquezas do subsolo a grandes mineradoras.

Neste ponto, Bolsonaro foi mais sincero. Ele admitiu que a proposta pró-garimpo sofrerá duras críticas dos ambientalistas. Em seguida, disse o que gostaria de fazer com o “pessoal do meio ambiente”. “Se um dia eu puder, confino-os na Amazônia”, afirmou.