quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Pensamento do Dia

 


O triunfo dos imbecis

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.


Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas – os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e bovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Cadê a boa sociedade?

Está prestes a acontecer nos EUA o que aconteceu em Roma: corremos o risco de perder nossa República e terminar com um ditador. Pode acontecer na semana que vem. Está acontecendo em todo o mundo, é uma nova forma de estupidez que chamamos de fascismo.

Política é acúmulo de riqueza e poder. A discussão que eu proponho está acima disso, é sobre o que é uma boa sociedade.

Francis Ford Coppola, de 85 anos, lança no Brasil o filme "Megalóppolis"

Trump é o homem que queria ser rei

O que um segundo mandato de Donald Trump significaria para os EUA e o mundo? Os otimistas podem apontar para o que aconteceu da última vez: sua presidência, eles poderiam afirmar, foi cheia de alarde e fúria. Mas isso pouco significou. Ele governou de maneira mais convencional do que muitos temiam. Além disso, no fim, foi derrotado por Joe Biden e partiu. Partiu com má vontade, é verdade. Mas o que mais se poderia esperar? Ele partiu mesmo assim. Por que não seria parecido se ele conquistasse um segundo mandato, como sugerem as pesquisas?

Trump é especialista em promessas vazias. Em 2016, uma peça central de sua campanha foi o “muro” pelo qual o México pagaria. No fim, não houve muro, quanto mais qualquer dinheiro do México. Desta vez ele prometeu reunir e deportar até 11 milhões de estrangeiros em situação irregular. A operação necessária para isso seria imensamente cara e polêmica. De fato, como exatamente muitos milhões seriam deportados e para onde?


Mais absurda é a sugestão de Trump de que, ao elevar as tarifas, ele poderia eliminar o imposto de renda. Isso é um completo disparate. Segundo um artigo acadêmico de Kimberly Clausing e Maurice Obstfeld, mesmo uma tarifa de 50% - o máximo para maximizar a arrecadação - geraria menos de 40% da receita proveniente do imposto de renda. A perda líquida de receita tributária enfraqueceria o financiamento dos programas dos quais seus eleitores, em grande parte mais idosos, dependem.

Uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. A Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança

No entanto, uma segunda presidência de Trump poderia ser ainda pior que a primeira. Em 2016, ele foi como o cachorro que alcançou o carro. Em sua ignorância, ele acabou contratando pessoas que não compartilhavam de seus objetivos nem de seus interesses. Hoje, o Partido Republicano consiste de seguidores fiéis que aceitam o que o “grande líder” define como verdade, como ele fez em relação aos resultados da eleição de 2020. O “Projeto 2025”, da Heritage Foundation, também produziu planos para subjugar o governo federal, enquanto a Suprema Corte declarou que, em suas “funções oficiais”, o presidente está acima das leis criminais. Ele se sentiria justificado e estaria em busca de vingança.

O que isso poderia persuadir Trump a fazer? Ele poderia elevar os já enormes déficits fiscais dos EUA e pressionar o Federal Reserve a manter as taxas de juros baixas. Se conseguisse nomear seguidores fiéis para comandar o Departamento de Justiça, as agências de inteligência e o Internal Revenue Service [IRS, o fisco americano], ele poderia processar inimigos percebidos sem restrições. Poderia justificar essas ações como um “toma lá da cá” pelas várias acusações justificadas contra ele próprio. Ele supostamente perdoaria os insurgentes de 6 de janeiro de 2021, que tentaram evitar a certificação dos resultados da última eleição. Com o controle sobre as Forças Armadas, ele poderia declarar lei marcial livremente. Mais amplamente, ele poderia usar a estrutura do governo dos EUA para exercer controle sobre partes do país vistas como independentes demais.

No âmbito externo, ele poderia implementar sua guerra comercial com poucas restrições, inclusive contra o Canadá e o México. Como comandante-em-chefe, ele poderia tornar os compromissos da Otan irrelevantes, simplesmente indicando sua falta de disposição em enviar tropas para combate. Ele poderia, mais uma vez, se retirar de todos os compromissos climáticos em um momento ainda mais delicado. Ele poderia tornar muito mais difícil o funcionamento de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Ele poderia apoiar a extrema direita em toda a Europa. Ele poderia (e provavelmente iria) abandonar a Ucrânia.

Ao considerar todas as implicações para o mundo, é preciso distinguir os efeitos diretos dessas ações dos indiretos de seu retorno. Estes últimos seriam, acima de tudo, o encorajamento aos populistas de direita que buscam o poder, especialmente na Europa. Com os EUA, o grande bastião da democracia no século XX, sob controle autoritário, haveria uma oscilação no equilíbrio global contra a democracia liberal, não só em termos de poder, mas também em termos de credibilidade ideológica. Afinal, os EUA têm sido o modelo, embora imperfeito, para grande parte do mundo de uma ordem democrática governada por leis. A escolha de Trump pela segunda vez importaria muito.

Trump é no mínimo “fascista” e pode ser chamado de fascista de forma convincente. Em entrevistas ao “The New York Times”, John Kelly, ex-general dos fuzileiros navais dos EUA que foi seu chefe de gabinete por mais tempo, é citado como afirmando que em sua opinião, “Trump atendia à definição de fascista, governaria como um ditador se pudesse e não tinha entendimento da Constituição ou do conceito de Estado de Direito”. Além disso, Trump “nunca aceitava o fato de que não era o homem mais poderoso do mundo - e por poder, quero dizer a capacidade de fazer tudo o que ele quisesse, no momento em que quisesse”.

Para Timothy Snyder, um importante historiador das décadas de 30 e 40 na Europa, o fascismo é “um culto da vontade sobre a razão; é a vida dentro de uma Grande Mentira; é uma transformação da política em um culto a um líder que conta uma Grande Mentira e que é capaz de se estabelecer como a pessoa cuja vontade deve dominar a sociedade”.

A isso, acrescenta Anne Applebaum, outra especialista renomada, Trump descreveu seus adversários como “vermes”, mais uma vez uma característica da retórica fascista (e stalinista). As recentes “calúnias de sangue” sobre haitianos como comedores de animais de estimação se encaixam na difamação fascista de algumas pessoas como subumanas.

Os erros cometidos pelo governo Biden ajudam a explicar a popularidade de Trump, notavelmente sua incapacidade de controlar a imigração. Mesmo assim, é difícil entender o abandono dos princípios fundamentais do grande experimento americano de governo republicano. Grande parte do sucesso dele se deve aos precedentes criados por seu fundador, George Washington.

Como Tom Nichols observa na “The Atlantic”, Washington serviu como presidente por dois mandatos e depois foi para casa. Trump é o anti-Washington. Onde Washington era conhecido por sua probidade, Trump é conhecido pelo oposto.

Este é, então, um momento verdadeiramente decisivo.

Sonhar com anistia não fará mal a Bolsonaro, só o frustrará depois

Bolsonaro quer ser anistiado o mais rapidamente possível, como demonstrou ao desembarcar sem aviso no Congresso para conversar com líderes de partidos que ainda dizem apoiá-lo.

A Lusitana roda, o mundo gira, e Bolsonaro acha que o galo canta todos os dias para acordá-lo, e não porque o sol nasceu. Não se dá conta de que em breve o sol irá se pôr exclusivamente para ele.

A história do Brasil está pontilhada de anistias. Na segunda metade dos anos 1950, o então presidente Juscelino Kubitschek anistiou todos os militares que se rebelaram contra seu governo.

Quando instalaram a ditadura em 1964, os militares puniram com extremo rigor seus colegas de farda que se opuseram ao golpe em nome da legalidade. Que legalidade, coisa nenhuma!

Afinal, justificavam os golpistas, fora preciso suspender a democracia para poder salvá-la da ameaça comunista. E o processo de resgate da democracia se arrastaria por tenebrosos 21 anos.

A anistia ampla, geral e irrestrita cobrada pela oposição ao regime, não foi tão ampla, nem geral, nem irrestrita. E serviu acima de tudo para perdoar os crimes de sangue cometidos pelos militares.

Inimigos da ditadura foram presos, torturados, mortos, desapareceram, banidos do Brasil ou obrigados a se exilar. Os que sobreviveram voltaram com a anistia de 1979.

Os militares que torturaram, mataram, soltaram bombas e tentaram impedir o retorno da democracia, esses nada pagaram pelo que fizeram. Seus crimes sequer foram investigados.


A anistia que Bolsonaro defende é para os condenados e presos pela tentativa de golpe do 8 de janeiro, e para ele por tabela. Alega que não houve tentativa de golpe, apenas uma bagunça.

Os inconformados com a derrota do seu Messias, e no exercício do legítimo direito à liberdade de expressão, bateram à porta de quarteis a clamar por um golpe que invalidasse a eleição.

Clamar por um golpe não é crime, entende Bolsonaro. Invadir a Praça dos Três Poderes e depredar prédios públicos, até poderia ser classificado de crime, mas jamais contra a democracia.

Quanto a ele próprio, nem no Brasil estava. Assistiu tudo de longe e surpreso em um condomínio de Orlando, nos Estados Unidos. Se o tivessem consultado, certamente não autorizaria a bagunça.

A pressa de Bolsonaro com a anistia tem uma razão de ser – e não é a dor que sente por ver tantos correligionários presos, coitadinhos. Bolsonaro quer evitar ser julgado por novos crimes.

Inelegível até 2030, ele já está. Mas aproxima-se a hora de ser denunciado pelos crimes de roubo de joias e de atentado contra o Estado Democrático de Direito. Aí é que o bicho vai pegar.

Se o Congresso aprovasse a anistia que ele requer, Bolsonaro não seria denunciado e muito menos julgado, é o que ele imagina. E recuperaria os direitos políticos para candidatar-se em 2026.

Sonhar sai barato. E sonhar à falta de outra coisa para fazer, e com tudo pago pelo partido que lhe oferece abrigo e sustenta parte de sua família, não fará mal algum a Bolsonaro e ao seu rebanho.
Ricardo Noblat

Incêndios convergentes

Em 2 de outubro, comemorou-se o dia da não-violência. A data é uma homenagem ao líder pacifista indiano Mahatma Gandhi, que nasceu a 2 de outubro de 1869, na cidade de Porbandar, no Gujarat.

Sempre me incomodou tropeçar com a palavra violência na expressão “não-violência”. A inexistência de uma palavra simples, na maior parte das línguas, capaz de definir um pacifismo ativo, capaz de impor serenidade e devolver a lucidez aos conflitos, diz muito acerca das limitações morais do ser humano — ou, pelo menos, das limitações morais das civilizações geradas pela nossa espécie.



A história da Humanidade é uma história da violência. Tenho a certeza, contudo, de que em todas as épocas, em todas as sociedades humanas, terá havido pessoas como Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela ou Jesus Cristo, para as quais o recurso à violência traduz um colapso da inteligência, da Justiça e da racionalidade. Essas pessoas, por poucas que sejam, seguram os frágeis fios do nosso destino comum.

Enquanto os pacifistas comemoravam o dia da não-violência, a guerra entre Israel e os palestinos; entre Israel e o Líbano; entre Israel e o Irã, entrou numa fase ainda mais assustadora.

Poucas horas após o Irã ter atacado Israel com mísseis balísticos, sem consequências graves, o governo de Benjamin Netanyahu declarou Antônio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, persona non grata, proibindo a sua entrada no país. Imagino que Guterres, antigo dirigente do Partido Socialista português, um homem plácido, discreto, que até agora nunca fora capaz de despertar paixões fortes, tenha acolhido a notícia com certo orgulho. Ser atacado por alguém como Netanyahu é quase um prêmio.

Benjamin Netanyahu e Ali Khamenei são incêndios convergentes. O desvario de um alimenta e justifica o do outro. Há anos que Netanyahu ambicionava envolver o Irã num conflito de grandes proporções, arrastando para o mesmo o seu principal aliado — os EUA. Tudo indica que, finalmente, terá êxito. Uma guerra ampla convém a Netanyahu, que dessa forma consolidará a sua posição no poder, adiando os inúmeros problemas com a Justiça por acusações de corrupção. Milhares de pessoas estão morrendo para evitar a prisão de um único homem.

O conhecido jornalista israelense Gideon Levy alertou há poucos dias, numa entrevista ao canal Democracy Now!, para o crescente isolamento e enfraquecimento do seu país: “Toda essa mentalidade de bombardeio e bombardeio, que dura já um ano, recusando qualquer tipo de diplomacia, isso não garantirá a segurança de Israel, sem falar no preço que o outro lado está pagando. Mas mesmo a segurança de Israel não vai melhorar. Agora estamos em uma situação menos boa do que há um ano. Posso te dizer que, em Tel Aviv, estamos mais assustados do que há um ano.”

Mais de 500 mil judeus israelenses abandonaram o país desde o horrível massacre de 7 de outubro. Imagino que esses, os que estão saindo, serão aqueles que se opõem à atual dinâmica de violência. Vozes pacifistas, como a de Gideon Levy, são cada vez mais raras em Israel — embora tão necessárias. Temos pela frente dias muito sombrios.