sábado, 29 de dezembro de 2018

Feliz 2019

Que seja feliz o ano que chega
Bem medido
Com mais de coisas boas e bem menos das más
Silêncios para pensar e calar raivas boçais
E risos para alegrar e aconchegar todos em paz

Começa a Era Bolsonaro

O governo Jair Bolsonaro, entre tantas indagações e perplexidades, oferece ao menos uma certeza: veio para mudar. Se triunfará, é outra história, que começa daqui a dois dias.

Não lhe falta lastro popular: segundo o Ibope, inicia-se sob as expectativas otimistas de nada menos que 75% da população.

Não é pouco – e é surpreendente, já que se elegeu com 59% dos votos válidos, o que significa que ou as urnas se equivocaram ou 16% dos que votaram no PT mudaram de ideia dois meses após o segundo turno, não obstante o radicalismo que marcou a campanha.

Como não há registro físico dos votos, nunca se saberá.


O que importa é que o anseio por mudança, que começou a se exteriorizar em 2013, numa sucessão de gigantescas manifestações de rua em todo o país – e que desaguou, em 2016, no impeachment de Dilma Roussef -, foi por ele capitalizado.

As mesmas multidões voltaram a se manifestar em sua campanha, sobretudo após o atentado de que foi vítima.

O fenômeno Bolsonaro não é obra individual. Ele tornou-se estuário do clamor popular por ruptura com a (des)ordem vigente, que o impeachment não aplacou. Ao contrário, intensificou.

Michel Temer, o estepe de Dilma, mesmo conseguindo a façanha de fazer com que o país parasse de piorar, não serenou o quadro. Entrega um país um pouco melhor que o que recebeu, mas, no plano moral, manteve o padrão, exposto pela Lava Jato.

Ele e Dilma, entre outros companheiros da parceria PT-MDB, devem se reencontrar em breve nos tribunais.

Desde a retomada do poder pelos civis, a partir de 1985, o país passou a seguir uma agenda de fundamentação esquerdista, em conluio com o mais deslavado fisiologismo, levado ao paroxismo a partir dos governos do PT. Não podia dar certo – e não deu.

A soma de corrupção com gestão temerária tornou-se insustentável e levou o país à ruína. À exceção do breve interstício do Plano Real, que o PT liquidou, o país patinou, entre um governo e outro, na instabilidade econômica, política, social e institucional.

A Lava Jato submeteu os três Poderes a um strip-tease moral sem precedentes. O saldo é eloquente: 14 milhões de desempregados, déficit orçamentário de R$ 150 bilhões, mais de 60 mil homicídios anuais, índice de guerra civil. Entre outras coisas.

O resultado foi a eleição de alguém que, ao longo de todo esse processo, foi o contraponto ideológico mais veemente aos sucessivos governos, com ênfase aos do PT. A princípio, era uma voz periférica, a bradar da tribuna do baixo clero da Câmara, sem audiência do grande público, ao qual só chegava de forma caricatural, nos momentos (não poucos) em que se excedia em sua retórica.

Gradualmente, porém, com a deterioração da cúpula política, passou a ser ouvido, valendo-se da intermediação das redes sociais, já que a mídia convencional o ignorou até onde pôde.

Importa dizer que a sociedade, em sua maioria, viu (e vê) nele um corpo estranho ao ecossistema político vigente, e em condições de mudá-lo. A montagem ministerial, não obstante controvérsias pontuais, foi bem avaliada, segundo o Ibope.

Os próprios adversários já admitem que não será fácil reverter o processo que se inicia. José Dirceu previu que “a Era Bolsonaro será longa”. E Fernando Haddad já declarou que o projeto liberal do novo governo “pode dar certo”. Admitir, porém, não significa se conformar.

O PT retoma sua maior habilidade: a de força predadora. Fará (já está fazendo) oposição sistemática.

Terá, porém, contra si a Lava Jato robustecida, cujo símbolo, Sérgio Moro, deixa a modesta primeira instância de Curitiba para assumir a cabine de comando do Ministério da Justiça.

O Brasil que se inicia, mesclando tecnocratas, militares, políticos e neófitos, terá múltiplos desafios e enfrentará turbulências. Terá de aprender a trocar o pneu com o carro andando.

De tédio, com certeza, não padeceremos. Apertem o cinto – a viagem vai começar.

Enxugando gelo

A estupenda reportagem de capa do Estado na edição de domingo 16 de dezembro, sobre a insolvência de milhares de municípios brasileiros, demanda uma reflexão sobre as causas estruturais da calamidade permanente das nossas finanças públicas. Os que acompanham a vida política a partir da metade do século passado podem testemunhar a velha ladainha, o repetido mantra de todo novo governo, que antes de assumir promete tomar drásticas providências para diminuir substancialmente os gastos públicos.

Tancredo Neves, por exemplo, nos dois meses anteriores à sua malograda posse, declarava, todos os dias, que acabaria com a farra dos gastos públicos. Até Dilma Rousseff, ao nomear Joaquim Levy, disse que corrigiria a política fiscal de seu catastrófico “governo”.

Acontece que tais intenções, sinceras ou insinceras, não passam de falácia, bobagem, voluntarismo primário, nada condizente com os altos saberes dos sucessivos futuros ministros da Fazenda.

Nenhum deles ataca a causa central do desperdício orçamentário, isto é, o regime de estabilidade, origem das devastadoras despesas de custeio formadas pela massa dos proventos, vantagens e verbas indenizatórias (§ 11 do artigo 37 da Constituição federal) dos mais de 12,5 milhões de servidores públicos da União, dos Estados e dos municípios, que consomem, com generosos adicionais, todos os recursos orçamentários, expandindo o respectivo déficit, nos três Poderes e nas três esferas. A estabilidade do emprego público é amparada por um bunker normativo dentro da própria Constituição. Nenhum servidor público pode ser exonerado ou dispensado, salvo se cometer gravíssimos crimes contra a administração. Mesmo nessa hipótese extrema, cabem-lhe ampla defesa em infindáveis processos administrativos e judiciais. Enquanto não for condenado com trânsito em julgado, goza o funcionário réu de todos os proventos, vantagens e verbas indenizatórias (artigo 41 da Constituição). A propósito, não se conhece mais do que meia dúzia desses processos canônicos em todo o País durante os últimos 70 anos, apesar do envolvimento de várias centenas de servidores nos casos de corrupção levantados a partir de 2014 pela Lava Jato. E quando, após décadas, sobrevém a condenação, fica o servidor em disponibilidade ou é “compulsoriamente” aposentado, com todos os proventos.

Nos países democráticos desenvolvidos somente os poucos que exercem altas funções de Estado são estáveis. Nos Estados Unidos apenas juízes da Suprema Corte e oficiais das Forças Armadas são estáveis. Já em nosso país, todos os 12,5 milhões de servidores são estáveis. Desde o manobrista da garagem do Senado até os ministros do Supremo Tribunal, desde o gari da pequena prefeitura de cidade de 6 mil habitantes até o médico do posto de saúde. Todos, simplesmente todos, exercem “funções de Estado”, e não simples atribuições administrativas. Pergunta-se: qual a função de Estado de um funcionário de município? Não importa. Os 12,5 milhões de servidores são constitucionalmente “imexíveis”.

Esse monumental contingente de funcionários públicos é obra da atual Constituição, que, ademais, no artigo 19 das suas Disposições Transitórias, declarou estáveis todas as pessoas que trabalhavam na União, nos Estados e nos municípios em 1988, mesmo sem concurso ou qualificação profissional.

Por coincidência, temos hoje no Brasil a seguinte realidade social: no setor privado 12,5 milhões de desempregados procuram um posto de trabalho há quatro anos. No setor público, dos 12,5 milhões de servidores públicos, nenhum foi despedido no mesmo período. São estáveis. Têm emprego garantido para toda a existência. No setor privado todos os empregados se submetem ao risco de perder o emprego, como agora milhões deles, por causa da recessão e da estagnação decorrentes da insanidade fiscal e da corrupção dos governos recentes.

Os novos governantes afirmam que aplicarão a Lei de Responsabilidade Fiscal para limitar as despesas de custeio da máquina pública (artigo 19 da LRF). Mas como, se os servidores públicos não podem ser exonerados? União e Estados têm mais de 70% de orçamento e déficit em gastos com servidores, incluindo os inativos. E quase todos os 5 mil municípios - grandes, médios e pequenos - têm mais de 80% de suas receitas e déficit também vinculados ao pagamento da folha dos seus ativos e inativos. Há pequenos municípios do Brasil em que 100% dos homens válidos no perímetro urbano ocupam cargos administrativos. E todos estáveis. O resto da verba orçamentária deficitária dos municípios (20%) é gasto com os portentosos aparatos dos srs. prefeitos e suas inúmeras secretarias, além das dezenas de nobres vereadores com gabinetes recheados de assessores.

A questão, portanto, é de natureza estrutural, está no âmbito da Constituição, pois o déficit não nasce apenas dos péssimos governos anteriores. Só a quebra da estabilidade geral e irrestrita, acompanhada da isonomia previdenciária entre os setores público e privado, é que pode diminuir o déficit público e estabelecer o equilíbrio fiscal.

E aí volta a pergunta: onde o novo governo vai cortar? Vai intervir nos milhares de municípios e nos Estados que infringem a Lei de Responsabilidade Fiscal? Ou vão enfrentar o tabu máximo da República dos privilégios, instituindo, por meio de reforma constitucional, a estabilidade para as poucas e qualificadas funções de Estado, a par de extinguir o regime especial de aposentadorias do setor público? Tais medidas reduziriam em dois terços as pantagruélicas folhas de pagamento estatais. Fora disso não há que falar em cortar despesas, abater o déficit fiscal e retomar o investimento público. Vai-se, apenas, enxugar gelo.

Que o novo governo federal e o novo Congresso tenham a coragem de resolver esse problema, para podermos retomar a prosperidade econômica em bases sólidas e permanentes.

Brasil da posse


'Este Brasil ficará nas minhas veias por muito tempo'

Há poucos dias, meu colega Tom Avendaño, que era o correspondente do EL PAÍS no Brasil, teve que retornar à redação central de Madri após dois anos de permanência na sede de São Paulo. Tom me deixou como despedida a tristeza de precisar ir embora. E isso que chegou aqui com medo de não ser capaz de ler a complexidade do país. Ao partir me fez uma confissão que representa um elogio aos brasileiros: “Este país marciano, Juan, ficará nas minhas veias por muito tempo, porque aqui me descontruíram tudo o que eu dava como certo e tornaram a me construir, talvez melhor”.


Para me explicar, literariamente, por que lhe doía ter que ir embora do Brasil, Tom, que é um esteta da palavra, escolheu a metáfora do conto Felicidade Clandestina, da escritora brasileira Clarice Lispector, considerado uma das joias da literatura mundial. Uma menina louca para ler o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, pede a uma colega que o empreste. A pequena é malvada e a faz ir várias vezes à sua casa. A cada vez lhe dá uma desculpa para não lhe entregar o livro. Sua mãe, que tinha visto a paixão da pequena, acaba por emprestá-lo. Tamanho era o medo de ter que devolvê-lo que a menina vai resistindo a lê-lo o quanto pode. “Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”, escreve Clarice.

Tom traça um paralelo do conto com sua relação de amor pelo Brasil e a tristeza de precisar ir embora. “Como à menina de Clarice, a mim cabe agora devolver o livro”, me diz. Uma leitura do Brasil que ele gostaria de ter prolongado. Esse Brasil, do qual Tom sofreu para se despedir, é o que deixaram também com nostalgia dois outros colegas meus, Antonio Jiménez e Xosé Hermida, ambos ex-diretores da edição Brasil, hoje dirigida por Carla Jiménez.

Às vésperas da chegada do novo 2019, com todas as incógnitas que acarreta, esse “não querer ir embora do Brasil” de meus três colegas espanhóis me fez pensar que o Brasil é um e muitos ao mesmo tempo. Existe hoje o dolorido, o perplexo, o desencantado com a política, o violento, o das injustiças sociais. Existe o Brasil com medo, o envergonhado, e o de quem gostaria de ir embora dele. Mas existe outro não menos verdadeiro, que talvez sejamos capazes de detectar melhor os estrangeiros que compartilhamos suas dores e alegrias. É o Brasil que Tom diz que ficará em suas veias por muito tempo. É o Brasil, já contado nesta coluna, dos outros dois companheiros, Antonio Jiménez e Xosé Hermida. Os três, ao se despedirem, fizeram constar que tinham chegado a este país conscientes de que se tratava de um continente não fácil de abranger e analisar. O que lhes tinha ocorrido no pouco tempo de sua experiência brasileira para que acabassem fisgados e sem vontade de voltar ao seu país? Antonio foi explícito: “Este país me mudou. Agora me sinto mais leve”, e acrescentou: “No Brasil, despertou em mim quando cheguei o desejo de ser mais feliz”. Xosé também se mostrou triste de partir. O que mais tinha apreciado dos brasileiros havia sido “a capacidade que demonstram de não amargarem sua vida inutilmente”. Aqui descobriu, por exemplo, que “a Europa é mais triste que o Brasil”. Só a grande desigualdade social lhe pareceu uma das mais graves do mundo.

Esse Brasil capaz de devolver a pessoa melhor do que quando chegou, capaz de ensinar a ser feliz, é também um Brasil verdadeiro. Que ensinou meus colegas a descobrirem que aqui não existe a solidão que hoje aflige milhões na rica e culta Europa, porque o brasileiro sabe compartilhar sua vida com uma naturalidade que estranha e cativa. Sua capacidade humana de comunicação é proverbial, e uma de suas maiores riquezas naturais, mais que o petróleo. Tomara que esse Brasil hoje ofuscado pelos demônios da política possa ressurgir com sua força real, que não morreu. Está só esperando recuperar seu velho direito de cidadania.

Feliz 2019 para o Brasil que não se rende a perder o que conquista a nós, estrangeiros, quando chegamos, e que nos faz ter saudade quando chega a hora de partirmos.

A última noite de Natal

Os grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto. Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala,sentou-se num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores. Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. O exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis, esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.

Em que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis. Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas, brilhantes, enormes.

A igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E, através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava nas auréolas dos santos.

Que doidice ! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e sofrimentos incompletos?

O que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde, vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram vultos indecisos; os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.

O que devia fazer... De repente a idéia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranqüilo. Mas os dedos finos e engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas, esmoreciam.

Agora não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam, juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite. Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam. Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel, janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.

Sessenta anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando a imagem de sonho.

Imagem de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite. Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.

Depois tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que enormes ladeiras, pai do céu ! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.

Conseguiu abotoar o casaco e levantar a gola.

Andar tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se acendiam e apagavam.

Certamente àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça luminosa dos repuxos.
Graciliano Ramos, “Linhas Tortas”

Muita espuma ideológica

Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.

Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.


Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?

O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.

Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.

Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.

No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.

Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.

Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.

Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.

A campanha já acabou faz tempo.

Pensamento do Dia


Bic de Bolsonaro já aceita ministro com pesticida

Em campanha, Jair Bolsonaro prometera elevar o teto de exigências morais e éticas de sua Presidência. Eleito, rebaixou o pé-direito do seu futuro governo ao empurrar para dentro do primeiro escalão ministros que enfrentam questionamentos na área dos bons costumes. A equipe de Bolsonaro tem 22 ministros. Desse total cinco convivem com suspeitas - uma taxa de encrencados de 22,7%.

Henrique Mandetta, da Saúde, responde a denúncia por fraude em licitação, tráfico de influência e caixa dois. Tereza Cristina, da Agricultura, é citada numa transação esquisita com a JBS. Paulo Guedes, da Economia, é investigado por transações feitas com fundos de pensão de estatais. Onyx Lorezoni, da Casa Civil, molha o paletó para livrar-se de uma acusação de caixa dois.


Para complicar, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, acaba de ser condenado por improbidade administrativa. Bolsonaro vinha dizendo que nenhum dos seus escolhidos era réu. Agora, convive com um condenado. Há duas semanas, Bolsonaro fez uma declaração categórica: "Havendo qualquer comprovação ou denúncia robusta contra quem quer que seja do meu governo, que esteja ao alcance da minha caneta 'bic', ela será usada".

Às vésperas de vestir a faixa presidencial, Bolsonaro guarda obsequioso silêncio sobre o selo de improbidade administrativa que foi colado em Ricardo Salles. Sua 'bic' permanece imóvel. Será acionada no dia da posse, não para afastar, mas para sacramentar a nomeação do auxiliar tóxico. Pode-se argumentar que ainda cabe recurso contra a condenação do titular do Meio Ambiente. Beleza. Mas o que Bolsonaro havia prometido aos seus eleitores era um primeiro escalão sem pesticidas. Essa mercadoria ele não vai entregar.

Josias de Souza

Consumidor não é cidadão

Conseguimos, até certo ponto, ajudar essa gente (pobres) a se tornar bons consumidores. Mas não conseguimos transformá-los em cidadãos
José Mujica, ex-presidente do Uruguai

Uma pequena dose de Jânio

O futuro ministro da Cidadania, Osmar Terra, falou em proibir o álcool em algumas circunstâncias e provocou polêmica. Creio que as pessoas entenderam que Terra queria proibir o álcool de forma geral.

A experiência no Brasil, no entanto, já mostrou que em certos momentos é possível controlar o consumo com êxito na redução da violência. Para isso é necessário um mapa preciso dos incidentes violentos, indicando hora e lugares onde acontecem.

Não concordo com a visão geral de Osmar Terra sobre política de drogas. Mas também não concordava com a visão proibicionista do velho e saudoso Elias Murad. Uniam-me a Murad, assim como a Osmar Terra, não só a amizade cotidiana, mas uma certa humildade diante desse complexo problema, para o qual ninguém pode dizer que tenha todas as únicas respostas certas.

Basta ver, no momento, a devastação humana que o consumo de opiáceos está provocando nos Estados Unidos. É um desafio para o governo Trump, mas suas raízes o antecedem.

Mas a democracia nos faz experimentar. No Brasil, com a vitória conservadora, é razoável que a política de Terra seja desenvolvida. No Canadá, por exemplo, o governo rumou noutro sentido, legalizando a maconha. Dizem os jornais que a Marlboro entrou no negócio e suas ações subiram mais que as da Bombardier, a correspondente canadense da Embraer.

Não sou ingênuo a ponto de apresentar uma única variável, o sucesso econômico, como critério para analisar uma política dessa envergadura. Apenas registro: a democracia abre o caminho para diferentes experimentos.

Esse pequeno debate em torno do anúncio de Osmar Terra me fez refletir sobre o passado, mais especificamente o período Jânio Quadros. Sem querer comparar governos, registro apenas que naquela época havia também uma combinação entre temas conservadores nos costumes e medidas amargas na economia.

Nos costumes, os temas são muito mais voláteis do que a constância insuperável do preceito econômico que nos proíbe de gastar mais do que produzimos, ao longo de muito tempo. Nenhum governo federal se importaria hoje em proibir brigas de galo, como Jânio fez. Mesmo temas mais amplos, como as vaquejadas e os rodeios, deslocam-se para o Congresso e o STF.
O que diria, então, da proibição do biquíni? Isso provocaria um movimento maior que a revolta das vacinas nos tempos de Osvaldo Cruz. Talvez nem isso, apenas uma explosão nacional bem-humorada.

O interessante em Jânio não era a coexistência dessas duas pautas, que, em outro nível, existem também no governo Bolsonaro. O interessante era como Jânio as combinava.

Sempre que era forçado a tomar medidas econômicas impopulares, Jânio lançava uma dessas proibições que eletrizam a opinião pública. Era muito mais confortável canalizar as atenções para o biquíni do que para as combalidas finanças nacionais.

Não creio que Bolsonaro siga o mesmo caminho. Nada neste período preparatório sugere o cinismo e a sofisticação de Jânio. Além do mais, parece-me que Bolsonaro realmente acredita nos temas de comportamento que defende e vai brigar por eles com o entusiasmo de quem se batizou no Rio Jordão.

Mais que semelhanças, vejo no governo Bolsonaro o fim de algo que surgiu no governo Jânio: a chamada política externa independente, que estabeleceu relações diplomáticas com países socialistas, Cuba incluída. Ainda sem julgar o mérito dessas políticas, tudo indica que o peso ideológico na gestão Ernesto Araújo vai revolucionar as bases do trabalho de Afonso Arinos. Portanto, as comparações entre os governos Jânio e Bolsonaro não podem ignorar essa descontinuidade.

Por falar em Afonso Arinos, recebi nas vésperas do Natal o monumental livro de memórias, intitulado A Alma do Tempo. Um verdadeiro ato de heroísmo do editor José Mario Pereira, da TopBooks. O livro tem 1.790 páginas. Ainda não cheguei à metade do caminho. Cuidarei dele em outros textos.

Os últimos anos foram muito focados na experiência do PT, no máximo, no governo tucano, que lhe antecedeu. Com a ajuda de Arinos e, certamente, de Joaquim Nabuco, ambos atores e intérpretes da saga política familiar, é possível olhar um pouco mais para trás, puxar fios mais longos da meada histórica.

A primeira tarefa, e nisso creio que as memórias de Arinos ajudam, será examinar a experiência de Jânio. Não cheguei no livro plenamente a ela. Mas já no início há referências à instabilidade de Jânio.

Collor foi também uma experiência conservadora. Mas parecia voltado para a economia, para um consumo cosmopolita, uma clássica defesa do meio ambiente.

Bolsonaro pertence aos tempos modernos, em que, segundo Umberto Eco, se desenha um populismo qualitativo de TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. A diferença é que ele chegou ao poder não pela resposta emocional de um grupo selecionado, mas pela vontade da maioria do povo brasileiro. Em outras palavras, até aqui, tudo bem.

Até onde minha vista alcança, os primeiros sobressaltos estão ao norte. Maduro assume dia 10 e a Colômbia propõe que os outros países não reconheçam seu novo governo. Por sua vez, o próprio Maduro andou apreendendo um navio da Guiana, reavivando aquele velha querela em torno de Essequibo, problema que vem desde o século 19 e envolve uma região rica em minérios e um mar potencialmente com muito petróleo. E ainda por cima disse que o general Mourão tem cara de louco. Mourão serviu na Venezuela, conhece a gênese do bolivarianismo.

Vai ser preciso cabeça fria naquela fronteira, concentrar no trabalho humanitário. Provocações podem surgir. Maduro está precisando de inimigos para garantir a coesão interna.

O Brasil só precisa de paz para se reconstruir.