quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Sobrecarga da violência


Ainda existe bondade, decência, pessoas que se esforçam para fazer o que é certo, e isso é fácil de esquecer, assim como é fácil se sentir sobrecarregado pelas notícias negativas de ódio e violência.
David Baker

Ciência a serviço do mal

Os dias duros do Pleistoceno, durante os quais era difícil conseguir as calorias necessárias para manter-se vivo, nos transformaram em máquinas de procurar gorduras e carboidratos e acumular as sobras na forma de tecido adiposo. Funcionou bem até que inventaram o baconzitos e o cheesecake. A proporção de obesos e diabéticos no planeta explodiu.

Algo parecido vale para drogas. A destilação do álcool, a biossíntese da cocaína e a produção de maconha com níveis cada vez mais altos de THC agravaram nossos problemas com essas drogas. Era difícil tornar-se alcoólatra ou cocainômano consumindo só cerveja pouco fermentada e chá de folhas de coca.


E a coisa fica pior quando, além de desenvolver produtos cada vez mais viciantes, empregamos também técnicas de propaganda cada vez mais sofisticadas para convencer as pessoas a consumi-los. É o que acontece agora no mundo das apostas. Os cassinos vieram para os bolsos dos jogadores (celulares), que ainda têm de lidar com um tipo de publicidade particularmente enganoso, que, negando o básico da matemática, sugere que as apostas são caminho seguro para o enriquecimento.

Meus pendores libertários me impedem de defender qualquer tipo de proibição. Já vimos várias vezes que isso não funciona. Mas é perfeitamente possível regular, dando ao consumidor alguma chance de defesa contra os estímulos supernormais reforçados pela publicidade.

O que escorre sob a ponte da civilidade

Para Antoine de Rivarol, polemista do século 18, a Revolução Francesa terminou quando acabaram as execuções em praça pública, e o povo já não mais cantava "ça ira, ça ira /les aristocrates on les pendra" ("vai dar certo, vai dar certo / vamos enforcar os aristocratas"). Ou seja, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade seriam coisa de intelectuais iluministas, enquanto à massa interessava o espetáculo da vingança pela guilhotina. Essa impulsão parece intemporal, próxima ao que os alemães conhecem como "Schadenfreude", o prazer de infligir sofrimento a outros.

As noções de sociopatia e psicopatia, pertencentes ao campo cognitivo desse fenômeno, têm valência política. Mas não são exclusivas de época nem de classe social. Ajudam a explicar o comportamento da Polícia Militar de São Paulo. Uma sociopatia fardada é matriz da violência de psicopatas contra marginais pés de chinelos, exibindo estatísticas ineficazes, recuando apenas da boca para fora ante o alarme da mídia. À boca pequena, há o consenso de que isso rende votos, de que extermínio teria grande aprovação popular. O "tô nem aí" do governador é a frase mais obscena do ano.


Os alvos críticos da agenda progressista costumam ser os aparatos de Estado, a economia e as elites. É difícil sondar a alma popular, as pesquisas surfam na superfície plebiscitária dos números. Daí a surpresa quando ressoam vozes aprobatórias nos EUA para o assassinato de alto executivo da indústria da saúde. O ato frio do acusado, filho da elite americana, fica em segundo plano pela aparência e educação do jovem.

Pode-se especular que o sentimento seria outro se o assassino fosse negro. Ainda assim, o que está mesmo presente é a violência latente, em intensidade variável, numa sociedade que favorece impulsões de vingança. É possível lançar um olhar crítico para as estruturas, as diferenças de classe em termos de renda e cultura. Mas há outro lado, despercebido pelo racionalismo analítico, presente na grande literatura: "Só se pode viver perto do outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura" (Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa).

Entretanto amor e ódio são modos fundamentais de existência, permeáveis à passagem de um para o outro, o que se exacerba quando a incivilidade é alimentada pelo debilitamento das instituições e dos processos civilizatórios. Por isso, na percepção de desamparo ou de medo, em plena modernidade civil, o odioso sentimento de vingança ainda se acende como brasa do passado. Intemporal, ele irrompe na insegurança cidadã diante da criminalidade ou de impiedades industriais. E, claro, preside à popularidade eleitoral de sociopatas.

Sob a ponte da civilidade, escorre, surdo, o ódio, fonte do inaceitável. É o que sempre acontece nos picos de barbárie. Dirigentes que hoje o estimulam transbordam da lata de lixo da história como baratas refratárias ao espírito do tempo, que é avesso ao patológico "espírito de corpo" de tropas fardadas. O tempo vivido é de repúdio ao horror em estado puro do passado.

Muniz Sodré

Natal em Gaza: 14 meses entrincheirados na igreja

Os cristãos da Faixa prepararam-se para viver o seu segundo Natal como refugiados no meio de uma cidade “esmagada” pelas bombas. Eles foram baleados, passaram fome e viram amigos morrerem. Apesar do medo e do confinamento, eles estão determinados a fazer a pequena comunidade sobreviver

O telefone toca todos os dias às oito da tarde há pouco mais de 14 meses. Dois homens se cumprimentam calorosamente em espanhol com sotaque de Buenos Aires. Um é o Papa Francisco, o outro, Gabriel Romanelli, pároco da Igreja da Sagrada Família em Gaza, onde desde outubro de 2023 mais de 400 cristãos palestinos da Faixa se refugiaram da guerra, do deslocamento e da fome.

“Ele nos liga todos os dias, onde quer que esteja, para nos abençoar, agradecer e enviar incentivo”, explica Romanelli, nascido em Buenos Aires, há 55 anos, em entrevista por telefone a este jornal. A voz do padre ouve-se serena e até jovial, embora assegure que a vida quotidiana é uma “loucura” e que a guerra está a afectar as pessoas que partilham o pequeno espaço da paróquia. “Tudo é necessário e até as menores coisas, como pegar um copo d’água, são complicadas”, afirma.


A Sagrada Família é a única igreja católica na Faixa, onde antes da guerra havia exa
tamente 1.017 cristãos, 135 deles católicos e o resto ortodoxos gregos, numa população total de cerca de 2,2 milhões de pessoas. Esta paróquia, localizada no coração da cidade de Gaza, no bairro de Al Zeitun, acolhe hoje pouco menos de 500 pessoas, incluindo três padres, incluindo Romanelli, cinco freiras e 58 pessoas com deficiência, todos muçulmanos e a maioria crianças que necessitam de cuidados especiais.

“Os bombardeios são constantes. Dia e noite e às vezes muito próximos. Assim como o drone dos drones israelenses, sobrevoando o tempo todo. O pior é que quando não os ouvimos por uma ou duas horas, ficamos com medo porque não sabemos o que vai acontecer”, explica Romanelli.

É de se perguntar quando isso vai parar e o que virá a seguir, porque as pessoas querem permanecer em suas terras. Esta igreja, que durante anos foi um oásis de paz e espiritualidade, tornou-se um hospital, cemitério e acima de tudo um refúgio.

Todos os dias são parecidos e alguns fiéis também perdem a noção do tempo. Há pessoas, sobretudo idosos e doentes, que não põem os pés na rua desde o início da guerra, em outubro de 2023. “Só saio se for estritamente necessário. Eu me persigno e vou. Muitas vezes me sinto perdido porque muitos pontos de referência não existem mais. A cidade foi esmagada. Ontem saí por causa de um problema médico e vi um homem vendendo dois potes de azeitonas. Fazia meses que não comíamos azeitonas. O barco me custou 65 shekels (17 euros)”, afirma este sacerdote argentino, pároco em Gaza durante cinco anos.

“É estressante e angustiante. É de se perguntar quando isso vai parar e o que virá a seguir, porque as pessoas querem permanecer em suas terras. Esta igreja, que durante anos foi um oásis de paz e espiritualidade, tornou-se um hospital, cemitério e, acima de tudo, um refúgio . Mas a nossa missão continua e ajudaremos o máximo de pessoas que pudermos”, acrescenta.

A paróquia de Gaza, devido à violência cíclica que a Faixa sofre há anos, preparou-se para uma emergência antes de outubro de 2023. Tinham guardado colchões, cobertores, pilhas e alimentos não perecíveis para que ali pudessem abrigar cerca de 80 pessoas alguns dias. Mas estas disposições foram insuficientes porque nos primeiros dias da guerra já havia 200 pessoas na igreja. E então chegaram mais pessoas, convencidas de que não havia um único lugar seguro na Faixa e que queriam permanecer na igreja, apesar das ordens israelenses para evacuar a área.

“Nada é normal e tudo é muito difícil. Às vezes leva um dia para conseguir um remédio simples para uma pessoa idosa. Isto é, se você tiver sorte. Tenho a sensação de correr e correr sem descanso. Gerenciar o que falta, o que comer, se há cobertores para todos, se chega água… Corremos muitos riscos, mas estou feliz por poder fazer isso”, disse George Antone, pai que tem refugiou-se na igreja, explica por telefone.

Este grupo de cristãos viveu momentos muito difíceis, em que nem sequer podiam sair para o pátio interior devido aos bombardeamentos. Houve vários feridos por estilhaços e tiros e duas mulheres que se abrigavam na igreja foram mortas a tiros por atiradores israelenses em dezembro de 2023. Também tiveram que racionar alimentos e, se tivessem água, era graças a um antigo poço localizado dentro da paróquia. O complexo paroquial, composto por três pequenos edifícios, tem três geradores, mas a falta de combustível faz com que quase não possam ser utilizados e a energia provém de painéis solares com os quais carregam baterias. “Felizmente, faz sol em Gaza. Sem essas baterias não podemos falar ao telefone, consultar a internet ou purificar a água do poço, mas temos que nos organizar bem para que durem”, explica Romanelli, que foi preso fora da Faixa pela guerra por motivos pessoais e foi poder retornar em maio.

A guerra prolongou-se e o norte de Gaza foi atingido de forma particularmente dura por bombas, pela falta de ajuda humanitária e por deslocações em massa. “O Patriarcado Latino de Jerusalém, nossa diocese, com a ajuda do Papa Francisco e de organizações como a Ordem de Malta, obteve permissão para a entrada de alguns caminhões e pudemos ter alimentos e distribuí-los na vizinhança. A última vez que vieram foi no mês passado, trouxeram-nos mantimentos e também pudemos dar uma caixa de alimentos a 9.000 famílias da região”, detalha o sacerdote argentino.

Aos mais de 400 cristãos que se refugiaram na igreja católica, somaram-se outros 200 que procuraram abrigo na igreja ortodoxa de São Porfírio, situada a poucos metros de distância. Quase 300 membros da comunidade conseguiram sair via Egito graças a um passaporte estrangeiro ou salvo-conduto nos primeiros meses da guerra. “Existem agora cerca de 37 cristãos no sul e 46 morreram desde o início da guerra, 20 deles de forma violenta, 17 deles no bombardeamento da Igreja Ortodoxa de São Porfírio em Outubro de 2023. Para uma comunidade tão pequena, é uma figura terrível”, lembra o padre. A comunidade cristã em Gaza não parou de diminuir durante anos. Em 2007, havia cerca de 7 mil cristãos na Faixa. Em todos os territórios palestinos, a comunidade não chega a 2% da população.