terça-feira, 24 de agosto de 2021

Quem late é animal




A função da palavra falada é humanizar o pensamento
Rebe Wolfe de Zhitomir

Ensaio de golpe avança sob o comando escancarado de Bolsonaro

Debite-se desde já na conta do presidente Jair Bolsonaro o que acontecer de arruaça, de violência e de ataques à democracia e às suas instituições nos atos públicos que marcarão o próximo 7 de setembro em Brasília, São Paulo e outras cidades do país.

O general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, referiu-se aos atos como “fogo de palha”, algo que parece intenso e importante, mas que acaba rápido, sem causar maiores danos. Tomara que ele esteja certo. Mas se não estiver?

Confrontar a lei e a ordem está no DNA do presidente da República desde que ele como soldado, à revelia dos seus superiores, foi garimpeiro em Serra Pelada, no Pará. Seu negócio sempre foi ganhar dinheiro, limpo ou sujo, pouco importava.


Por dinheiro, planejou atentados terroristas contra quarteis para forçar o Exército a aumentar o soldo da tropa. Ao seu modo tosco foi um anarco sindicalista sem saber que era, e nem sequer o que era isso. Acabou excluído do Exército por conduta antiética.

É órfão da ditadura de 64 que não se cansa de exaltar, e da tortura a presos. Em abril do ano passado, quando o Brasil já superava a China em número de mortos e de infectados pela Covid-19, ele participou pela primeira vez de atos antidemocráticos.

Na porta do Quartel-General do Exército, em Brasília, rodeado por devotos que carregavam faixas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro mandou a Constituição às favas e proclamou entre tosses e soluços:

“Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. Nós temos um novo Brasil pela frente. Todos, sem exceção, têm que ser patriotas. […] Chega da velha política. É agora o povo no poder.”

Que presidente valeu-se antes de retórica tão incendiária? Nem João Goulart, no final de março de 1964, no célebre comício da Central do Brasil. Dali a poucos dias, Goulart foi deposto pelos militares, exilou-se e só voltou morto para ser enterrado.

“Povo no poder” pediu a esquerda que pegou em armas depois que a ditadura militar de 64 tirou a máscara e se assumiu como tal. “Chega da velha política” soa hoje como uma ironia depois que Bolsonaro rendeu-se ao Centrão e tornou-se alvo de uma CPI.

Há fortes indícios de que militares da reserva, muitos deles que recepcionaram Bolsonaro em aeroportos durante sua campanha em 2018, estão agora por trás do 7 de Setembro verde-amarelo que poderá tingir-se de vermelho de sangue, tomara que não.

Fervilham em canais digitais mensagens que dão a medida do ponto a que essa turba ignara ameaça chegar em defesa do restabelecimento do Estado Autoritário que grande parte dela só sabe o que foi de ouvir falar porque não viveu.

O governador João Doria (PSDB), de São Paulo, afastou da Polícia Militar um coronel que comandava cinco mil homens e que os convocava para a manifestação na Avenida Paulista. A Polícia Civil de São Paulo detectou que isso se repete em outros Estados.

E a tudo assistimos bestificados, quase inertes.

Bolsonaro, agora, politiza o fracasso

Aos 32 meses de mandato, o presidente Jair Bolsonaro se depara com um cenário mórbido e nebuloso: a “gripezinha” matou 575 mil pessoas, o país tem 14 milhões de desempregados e a inflação pode chegar a 9%, se não houver uma mudança de rumo. Deficit fiscal, insegurança jurídica e instabilidade política formam o tripé que afugenta os investidores. A janela de oportunidade da retomada da economia global está sendo perdida.

Os verdadeiros problemas do país são de natureza objetiva e exigem soluções criativas, exequíveis e amparadas por amplo consenso nacional. Em circunstancias normais, diante da gravidade da pandemia e de suas sequelas, principalmente a iniquidade social, o presidente da República, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) convergiriam suas decisões na direção dessas soluções. Mas não é o que acontece. Estamos na antessala de uma grave crise institucional, fabricada por Bolsonaro.

Seu problema não é falta de governabilidade — conta com o apoio do Centrão no Congresso. É a governança, “a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país, visando o desenvolvimento, e a capacidade dos governos de planejar, formular e programar políticas e cumprir funções”, segundo o Banco Mundial. São características da boa governança: Estado de direito, transparência, responsabilidade, orientação por consenso, igualdade e inclusividade, efetividade e eficiência e prestação de contas. Essa não é a praia de Bolsonaro.

A agenda do país é discutida em milhares de lives, pelos mais diversos públicos, que buscam saídas para a situação em que nos encontramos de olho no futuro. O presidente ignora tudo isso, empenhado em levar adiante um programa ideológico, que só empolga os setores mais reacionários da sociedade. Mesmo os conservadores, que o apoiaram na eleição e participam do governo, têm uma agenda liberal voltada para os problemas reais, ainda que ignorem as questões sociais. Bolsonaro está governando apenas para seus seguidores fanatizados. A maioria dos ministros já se deu conta disso e se queixa do foco equivocado. O Palácio do Planalto é uma “jaula de cristal”, na qual Bolsonaro constrói um mundo só dele.


As atenções do país estão voltadas para as manifestações convocadas para o dia 7 de setembro, que são apoiadas por Bolsonaro. Não haverá desfiles militares por causa da pandemia, porém estão previstas concentrações de defensores da intervenção militar em muitas cidades. Até a semana passada, pretendiam parar o país, cercar Brasília, invadir e fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Como era de se esperar, os mais ousados, como o presidente do PTB, Roberto Jefferson, e o cantor Sérgio Reis, já sofreram as consequências desse projeto sedicioso. Mas Bolsonaro, em solidariedade a eles, pediu o impeachment do ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news, que investiga a atuação de grupos extremistas, e escalou mais um degrau no seu confronto com o Supremo.

Ontem, 23 governadores e dois vices se reuniram em Brasília para discutir a situação e construir uma barreira de contenção à escalada da radicalização golpista. Querem um encontro com Bolsonaro para discutir a relação republicana entre os entes federados. Coincidentemente, o governador de São Paulo, João Doria, demitiu o coronel da Polícia Militar que comandava a corporação no interior paulista porque atuava nas redes sociais convocando para os atos de 7 de setembro e pedindo o fechamento do Supremo. Os governadores firmaram uma espécie de pacto para impedir motins nas polícias militares. O caldo de cultura para isso existe, foi fomentado pelo presidente.

Enquanto segue o baile da política, a economia se deteriora a olhos vistos. O cenário é de menos crescimento e mais inflação. Os juros de longo prazo superam 10% ao ano, segundo as taxas dos contratos futuros com vencimento em janeiro de 2031. As apostas para o crescimento em 2022 caminham para a casa de 1,5%, uma taxa incapaz de gerar um volume expressivo de empregos. Para 2021, ainda prevalecem estimativas na casa dos 5% ou um pouco mais. O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) pode fechar 2021 em 7,5%, muito acima da meta de 3,75% deste ano.

As reformas tributária e administrativa subiram no telhado. O que não passou até agora, provavelmente não mais passará. O Congresso não quer saber de remédios amargos. Bolsonaro também é negacionista na política monetária. O cobertor é curto, a política econômica deriva para o naufrágio. A alternativa que restou foi politizar o fracasso e pôr a culpa nos outros. Como não pode responsabilizar a oposição, culpa as instituições da República, principalmente o Supremo. É a velha cantilena de que a democracia não funciona.

Bolsonaro não está mais em 1964: está em 1930

Como noticiamos, João Doria afastou hoje, por indisciplina, o coronel Aleksander Lacerda, que comandava 7 batalhões da PM paulista. Esse Aleksander, o Grande, estava compartilhando mensagens golpistas, convocando malucos para os atos bolsonaristas de 7 de setembro, pedindo tanques na rua e dizendo que “o caldo vai entornar”. João Doria fez muito bem em entornar o caldo do sujeito.



Desde o motim dos policiais militares no Ceará, em fevereiro de 2020, quando um ensandecido Cid Gomes jogou uma retroescavadeira contra o piquete montado em frente ao batalhão da cidade de Sobral, acendeu-se a luz amarela de que Jair Bolsonaro e seus acólitos estariam açulando as diversas PMs, todas subordinadas aos governadores, para que elas os apoiassem em caso de autogolpe. A estratégia seria reproduzir, em nível nacional, mudando o que deve ser mudado, a estratégia das milícias fluminenses, para transformar o Brasil numa grande comunidade a ser dominada.

Não parece agora haver dúvida de que a ideia passou pela cachola de Jair Bolsonaro e os seus acólitos. Mas, se lograssem algum objetivo, eles conseguiriam promover, no máximo, badernas pontuais, nem por isso menos indesejáveis, uma vez que não se brinca com gente armada. A coisa pararia no plano de alguma desordem, porque policiais militares têm os limites estreitos de forças de segurança destinadas a agir em problemas cotidianos – formação e arsenal adequados apenas à repressão de crimes e à contenção de manifestações que descambam para a violência. Há ainda outro componente: policiais militares, na esmagadora maioria das vezes, não são ideologizados o suficiente para entregar-se a uma aventura golpista e não dispõem de um comando central que os pudesse coordenar nacionalmente. Talvez a ideia fosse que eles funcionassem como linha auxiliar das Forças Armadas, em caso de autogolpe. Mas, ainda que houvesse hipótese de que a caserna estivesse mesmo disposta a derrubar o Estado de Direito, nenhum general gostaria de ter ao seu lado gente que não respeita hierarquia. Além disso, historicamente, seria um contrassenso.

Na República Velha, as forças públicas estaduais funcionavam como exércitos dos governadores. Eram as suas milícias, justamente. Isso acabou com o Estado Novo, que as esvaziou e fortaleceu as Forças Armadas. Ao fazê-lo, Getúlio Vargas fulminou a capacidade dos governadores dos estados de desafiarem militarmente o governo central, como ocorreu no caso de São Paulo e a sua revolução constitucionalista de 1932. O esvaziamento das forças públicas estaduais e o fortalecimento das Forças Armadas beneficiaram o ditador, mas se mostrariam essenciais para a manutenção da unidade nacional e a preservação da ordem institucional, apesar do golpe de 1964 promovido pelos militares. Tudo poderia ser ainda pior na trajetória brasileira, se os governos estaduais ainda dispusessem de um verdadeiro aparato bélico.

A tentativa de transformar polícias militares em milícias é, portanto, mais um anacronismo de Jair Bolsonaro. Ele não está mais em 1964. Regrediu à década de 1930 e dá as costas para a história, provavelmente porque não a conhece.