domingo, 21 de maio de 2017

É hora de tirar o código de barras da democracia

Antigamente, o Brasil era um país de corruptos sem corruptores. Hoje, com o advento da delação premiada, virou uma nação de corruptores sem corruptos. Roçando as grades de Curitiba, Lula não sabia de nada. Recém-chegada ao pântano, Dilma continua estalando de pureza moral. Com a reputação reduzida à soma de palavrões que inspira nos botecos, Aécio é a virtude que terceirizou o xadrez à irmã. Ao jurar que não fez nada, Temer tornou-se um revolucionário do léxico, provando que nada é uma palavra que ultrapassa tudo.

Tanta inocência eliminou até o benefício da dúvida. Aos olhos da opinião pública, os políticos agora são culpados até prova em contrário. Se perdem o mandato e o foro privilegiado, como Eduardo Cunha, vão em cana como prova em contrário. Desde março de 2014, quando a Operação Lava Jato começou, a banda dinheirista da política cultiva a ilusão de que a sangria será estancada. Para o bem da nação, deu-se o oposto. A política virou uma atividade hemorrágica.

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A má notícia é que o sistema político morreu. O comportamento de risco e a tendência à autodesmoralização levaram o modelo ao suicídio. A boa notícia é que a morte pode ser um enorme despertar. Num instante em que a faxina invade os salões do Palácio do Jaburu, fica claro que o país necessita de um movimento que acabe com o suborno, o acobertamento, o compadrio, o patrimonialismo… Em suma, precisa-se de uma articulação qualquer que acabe com os valores mais tradicionais da política brasileira.

O primeiro passo é eliminar dos costumes nacionais a praga do quase. A higienização quase foi alcançada quando as ruas escorraçaram Collor do poder. A assepsia quase foi obtida quando cassaram-se os mandatos de meia dúzia de anões do Orçamento. A purificação quase chegou quando o Supremo Tribunal Federal mandou para a cadeia a turma do mensalão. Temer é uma evidência de que o impeachment de Dilma não eliminou a síndrome do quase. Chegou a hora de levar a faxina às últimas consequências.

Neste sábado, Temer discursou por 12 minutos para informar ao país que Joesley Batista, seu ex-amigo do Grupo JBS, não vale nada. Depois de limpar os cofres do BNDES nos governos Lula e Dilma, armou uma delação fraudulenta para produzir turbulência econômica capaz de lhe propiciar lucros extraordinários comprando dólares na baixa e vendendo ações na alta. Quer dizer: para Temer, Joesley é um patife. E não será a plateia que irá discutir com um especialista. Melhor passar a Presidência de Temer no detergente e seguir em frente.

A honestidade é como a gravidez. Nenhuma mulher pode estar um pouquinho grávida, como não pode haver governo um pouco honesto, com oito ministros investigados e um presidente que confraterniza com corruptos no palácio residencial. A esse ponto chegamos: o Brasil terá de cair para que Temer se mantenha no cargo de presidente. Só a desmoralização nacional salva Temer.

A velha sacada do Churchill ensina que a democracia é o pior regime possível com exceção de todos os outros. Mas no Brasil os políticos parecem eternamente engajados num esforço para implementar as alternativas piores. De erro em erro, chegou-se à cleptocracia atual. É chegada a hora de arrancar o código de barras da democracia brasileira. A entrada do processo é a saída de Temer. O limite é a Constituição. O desafio é encontrar um nome capaz de gerir um programa mínimo e zelar pelo calendário eleitoral de 2018.

O futuro em jogo

Qual a importância que terá para os brasileiros, daqui a um ano ou um ano e meio, a agonia política desesperada dos dias de hoje? E lá, entre maio e outubro de 2018, que estará sendo decidida a questão verdadeiramente essencial: o que o Brasil pretende ser não no próximo mandato presidencial ou no seguinte, mas em que tipo de país seus cidadãos vão viver no futuro, e por muitos anos. O primeiro interrogatório do ex-presidente Lula pelo juiz Sérgio Moro, as ameaças que suas tropas fazem todos os dias à Justiça, a derrama sem limites de mentiras que definem o debate político de hoje ─ tudo isso estará longamente esquecido e o jogo para valer, a eleição presidencial de 2018 entrará em sua fase realmente decisiva. Os eleitores vão resolver, então, se o Brasil continuará sendo uma colônia do século 18, saqueada sistematicamente por uma máquina pública a serviço de escroques, ou se tem a aspiração de tentar algum outro futuro.

Nos dois mandatos de Lula e nos dois de Dilma Rousseff, o último deles interrompido por seu impeachment e sucedido por um bando de políticos atordoados, sem autoridade e com medo de tudo, o Brasil do atraso, da trapaça política e do roubo permanente ao Erário viveu seu grande momento na história deste país. Ameaçado agora como nunca foi antes, vai fazer de tudo para continuar agarrado ao cofre público. Se a coisa for por aí, pode-se deixar de fora qualquer esperança. Os últimos dias são uma amostra do que o bloco dos parasitas, da intolerância ao ponto de vista alheio, da adoração ao “Estado” quer fazer com o Brasil. Chamam a si próprios de forças “progressistas”, “populares” e “de esquerda” e assim são considerados pela mídia em geral e pela ciência social vigente. Chamam todos os demais de “fascistas”. Não são nada disso ─ como não são malfeitores sociais, maus brasileiros ou inimigos da democracia os que têm pontos de vista diferentes dos seus. Hoje em dia, mais do que nunca, a separação verdadeira é entre os que precisam mandar numa máquina pública cada vez maior, mais invasiva e mais cara, para sobreviver, prosperar e acumular privilégios; e os que trabalham para manter o bem-estar dos primeiros, pagando em impostos 40% ou mais do que ganham.


Tudo a que se assiste agora são os primeiros movimentos da guerra política que vem aí no próximo ano. O campo “popular-progressista” sabe que não vai sobreviver sem Lula na presidência da República. Não tem absolutamente ninguém que disponha de 1% de sua capacidade eleitoral e de sua liderança; corre o risco de tornar-se irrelevante no Brasil durante anos a fio. Lula, por sua vez, sabe que, se não for presidente, não será mais nada ─ e terá de passar o resto da vida metido com a pilha de processos por corrupção que tem contra si, numa luta miserável para ficar fora da cadeia. Para se salvar, entretanto, ele precisa vender ou jogar para frente as questões penais a que responde no presente momento; do contrário não poderá ser candidato. É nisso que se concentra tudo o que interessa hoje ao Brasil e ao seu futuro. O cidadão poderá fazer considerável economia de seu próprio tempo se esquecer toda essa conversa de braveza indignada que ouve diariamente ao lado de Lula. O ex-presidente não vai mandar “prender” ninguém se voltar ao cargo que tinha. Não vai fazer caravana nenhuma “pelo Brasil afora” para juntar o povo em sua defesa. Não está em “julgamento político” ─ não quando em todos os processos que tem contra si não é acusado de nenhuma ideia, discurso ou proposta, mas, sim, de atos concretos de corrupção a serviço de empreiteiras de obras públicas. Não levou multidões a Curitiba para enfrentar “o Moro” em seu interrogatório.

Todos os problemas de Lula se resumem a ganhar prazo para não ser condenado antes de validar sua candidatura e, depois, convencer a maioria dos eleitores a lhe entregar de novo o Brasil, que virá junto com a Petrobras, as empreiteiras e tudo o mais que se sabe. São problemas dele e de todos.

Governo parece ter perdido a capacidade de governar

Dizem que Tom Jobim afirmava que o Brasil não é para principiantes.

Adiciono que, além de experiência, o Brasil demanda paciência.

O governo Temer dava mostras de grande capacidade de aprovar no Congresso Nacional as reformas absolutamente necessárias e impopulares para pavimentar o caminho da retomada do crescimento em bases sustentáveis.

Tanto a reforma trabalhista quanto a reforma da Previdência avançavam no Congresso. A economia, com enorme dificuldade, melhorava.

Na quarta-feira, foi noticiado que havia uma gravação em que o presidente pedia ao dono do grupo JBS o pagamento de uma mesada ao ex-deputado Eduardo Cunha para comprar seu silêncio.

O áudio divulgado no fim da tarde de quinta-feira (18) mostrou algo distinto: não há tentativa de obstrução da Justiça por parte de Temer, mas há, de fato, crime de prevaricação.

No caso, o presidente foi exposto a comportamentos criminosos do empresário e não tomou as ações cabíveis.
Charge do dia 21/05/2017

O governo parece ter perdido a capacidade de governar. É necessário recomeçar.

O caminho é o presidente renunciar, assumindo interinamente a Presidência da República o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que tem 30 dias para promover eleições indiretas.

Provavelmente o rito da eleição será determinado pelo Supremo, visto que a lei que o estabelece, demanda do artigo 81 da Constituição Federal, não existe.

Há dois caminhos possíveis.

No primeiro, constrói-se um novo governo que incorpora todos os setores da política, inclusive a esquerda. A agenda legislativa fica parada e mantém-se a equipe econômica que dirige o barco da economia até o fim de 2018.

Outro caminho é a base parlamentar de Temer reconstruir-se em torno de outro nome que carregará a bandeira das reformas e retomará o processo de onde ele parou na quarta-feira.

Se ocorrer a segunda hipótese, boa parcela da piora de preços de quinta-feira —desvalorização do câmbio de quase 8% e perda de valor na Bolsa de 9%— será devolvida. E a recuperação tímida da economia será retomada.

A dúvida é se haverá apoio parlamentar para esse recomeço. O começo anterior parecia mais auspicioso aos olhos dos parlamentares.

A construção do governo Temer ocorreu ao longo do impedimento da presidente Dilma, dois anos e meio antes das eleições de 2018 e com a expectativa de uma recuperação rápida da economia —erro de cálculo dos políticos, desta vez sem poderem culpar os economistas.

Desta vez a bomba de quarta-feira passada pode ser desculpa para abandonar o barco e esperar 2018 em "busca da legitimidade" das urnas. O motivo é que se sabe hoje que a recuperação será dura e que nada há além da agenda de reformas.

Agenda essa cujos ônus aparecem imediatamente, e os bônus, somente após alguns anos. Nesse caso, teremos ampla base anódina de sustentação do próximo presidente, que nada fará.

Ficaremos andando de lado até uma solução eleitoral em 2018, com muita volatilidade nos mercados e crescimento da dívida pública, fato até agora esquecido, mas que passará a ser mais lembrado.

Gente fora do mapa

Pisac Market, Peru. Repinned by Elizabeth VanBuskirk. If those at the market have brought corn to trade or sell, you know they live in the lowlands, like the river valley near Pisac. One major purpose of Andean markets is for people who live at the high altitudes--eg 12,000 above sea level can come to market to trade their potatoes, which can be grown high up, for lower products like vegetables, fruit, corn.:
Mercado em Pisac (Peru)

Independente do desenlace da crise, o estrago está feito

O desfecho ainda não está dado, mas o estrago já foi feito. O governo foi abatido no ar, no momento em que a galinha do desenvolvimento ameaçava alçar seu primeiro voo. A credibilidade, já debilitada, foi recolhida a uma espécie de UTI, a articulação, baseada — quase que exclusivamente — no fisiologismo, viu a fidelidade migrar para o oportunismo indignado dos que se dizem, convenientemente, surpreendidos. O cronograma das reformas, pedra de toque do processo econômico, foi pelo ralo.

As últimas denúncias completam, no entanto, a tentativa de varredura do entulho político nacional, que, até aqui, dizia-se, ser perseguição exclusiva ao PT. Injusto: em Curitiba, há gente sortida, de partidos variados. Mas o fato é que, agora, o turbilhão chega também ao centro do novo poder e o veneno atinge o coração do grupo que esfolou petistas em praça pública: Michel Temer e o tucano Aécio Neves. A narrativa da perseguição perde sentido e a Lava Jato ganha força para seguir em frente, inclusive em direção a Lula.


Vamos aos fatos: no PSDB, a imagem de Aécio Neves, seu presidente, parece irremediavelmente rasgada. A justiça pode decidir o que quiser, mas as cenas exibidas na TV, são definitivas: o senador atarantado com as denúncias somadas aos áudios do diálogo com Joesley Batista nada têm de inconclusivas — duas milhas, dividas em 4 lotes de 500 mil, é dinheiro para toda existência de muitas vidas, no padrão médio da sociedade brasileira. Há também o símbolo: a irmã, Andréia Neves, de frente e perfil, recolhida à PF; são os netos de Tancredo. A Nova República termina desse modo melancólico.

Os tucanos, é claro, pedem a justa moderação que não tiveram no passado; copiando o PT de ontem, foram inclementes com os adversários; assumiram o jeito UDN de ser e, agora, mordem a língua. São medidos pela mesma régua da impiedade que usaram. Fanáticos adoram atirar pedras, o problema é quando o farisaísmo se revela. A reputação despencou pela janela. Parece vingança de autor de novela.

Mais concreta em consequências, porém, é a situação de Michel Temer. Trata-se do presidente da República, da condução de uma política econômica com objetivos de retomada do desenvolvimento perdido e da tentativa de reorganização — agora frustrada — do país. Foi para isto que o presidente e seus ministros apelaram durante toda a quinta-feira. “Logo agora…”, diziam num muxoxo desolado. Trens desgovernados não têm mesmo hora para descarrilhar. Dependem, antes, de vacilos na direção.

Independente de serem ou não conclusivas as gravações até aqui conhecidas — e não parecem mesmo conclusivas —, a questão é que o trem desgovernado passou por cima do maquinista. O encontro furtivo de Michel Temer com Joesley Batista é inexplicável; a natureza dos diálogos que mantiveram é ruidosa em todos os sentidos — presidentes da República não podem ouvir certas coisas; no cargo 24 horas por dia, não têm folga. É a vida. Logo Temer, tão cheio de formalismos…

Também inexplicável é o envolvimento de seu homem de confiança, Rodrigo Rocha Loures, com o carregamento de numerário em espécie, e sem justificativas até aqui, pelo menos. Loures sofreu apupos — no aeroporto, em sua volta ao Brasil — dignos dos grandes símbolos da raiva nacional. Como explicar os encontros, as fotos, a grana, as coincidências, tudo… Sobretudo, após os diálogos entre Temer e Batista?

A base do governo — que analistas os mais entusiastas do temerismo, cantavam em verso e prosa, relevando sua natureza — já se coloca na cabeceira da pista para escapar dos efeitos de um governo desde sempre impopular que, agora, cai também de cabeça na maldição da Lava Jato. Incomodados com as reformas, que já não queriam votar, cantavam Tim Maia, “me dê motivos”. E Michel Temer deu. As revelações de Joesley são mesmo música para seus ouvidos — no mínimo, uma sirene que alerta “hora de fugir”.

Dificílimo será retomar o processo, voltar ao ponto em que o nervo se rompeu. Pelo menos por enquanto, a ênfase de um Michel Temer indignado cai no vazio. Seu “Não renunciarei. Repito: não renunciarei”, apoiado, ao fundo, por uma tímida e desanimada salva de constrangidas palmas, parece pouco como reação. O presidente, no entanto, é verdade, ganhou um inconclusivo sopro se não de vida, pelo menos, de tempo — solicitará perícias e alongará essa agonia. Assim, o desenlace da crise não será rápido, se alongará para um desfecho ainda desconhecido. Enquanto isso, o governo rezará a Santo Expedito, o advogado das causas perdidas.

Carlos Melo 

Adeus às ilusões

A sensação que sinto diante disso tudo é de enorme desalento. Sempre me surpreendi com quem só pensa no poder, nunca entendi direito esse desejo doentio de mandar nos outros. E, de preferência, em todos. Mas nunca deixei de aceitar a necessidade de um governo, de uma concertação em torno da vida em comum, num mesmo espaço geográfico e cultural a que chamamos nação. Não tem outro jeito.

Essa ideia abstrata de nação é que nos mantém juntos, em torno do projeto simples de sermos felizes, uns com os outros. Por isso que o fracasso da nação nos faz tanto mal, nos faz sofrer tanto. Porque ele é a constatação de que fomos incapazes de realizar o sonho a que estávamos generosamente destinados. Essa distância entre destino e logro, entre o que almejamos e o que conseguimos, nos faz penar porque ainda acreditamos (ou acreditávamos) em nós mesmos.

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Não vamos perder tempo com os exemplos históricos. Eles começam lá atrás, talvez com a Independência, feita pelo príncipe colonial para que tudo continuasse como sempre esteve; passam pela República, proclamada pelos senhores de terras, latifundiários que assim se vingavam da Abolição imperial; e vão até o acerto cordial para o fim da recente ditadura. Tudo se mistura sem formar caráter, como numa sopa sem gosto.

Diante de tantos graves erros políticos e morais de todas as tendências e partidos, não temos mais onde depositar nossa esperança, não vemos mais a quem confiar a nação. Não achamos mais nem mesmo por quem torcer, como no futebol, coisa que sempre nos fez respirar e sobreviver.

Mesmo numa dolorosa experiência política, como a do golpe de 1964, sempre podíamos sonhar com uma saída e torcer por nossos possíveis heróis. Enquanto os militares instalavam o poder autoritário, ouvíamos dizer que Brizola preparava a reação no sul, nos sussurravam que Marighella e sua gente se armavam, nos garantiam que a esperteza de Ulysses e Tancredo não ia nos deixar nessa por muito tempo.

Hoje, da nossa arquibancada cívica, assistimos a um jogo secreto que, de vez em quando, só nos revela incompetência e propinas. Sempre com muito escândalo. Mas talvez seja essa a esperança que nos resta — agora, que não temos mais por quem torcer e vamos depender exclusivamente de nós mesmos, temos que tentar reconstruir o país como se estivéssemos começando do começo, começando de zero.

Cacá Diegues

Democratas de esquerda - a hora e a vez?

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O quadro partidário em ruínas e o destino incerto de tantos personagens de primeiro plano tornam particularmente opaca a cena pública a pouco mais de um ano de eleições gerais. Não há muitos termos de comparação para nossas agruras e a referência inevitável para este nó aparentemente insolúvel entre questões judiciais e questões políticas continua a ser a Operação Mãos Limpas, italiana, na década final do século passado.

Diferentemente do caso brasileiro, em que partidos frouxamente organizados conduziram a transição e dominaram o poder central até 2002, a Primeira República Italiana, que nasceu no segundo pós-guerra, era uma República de partidos de massa, dois dos quais se tornaram reconhecidos até fora do país: a Democracia Cristã (DC) e o Partido Comunista (PCI). Ambos portavam visões de mundo comunitaristas, não necessariamente antagônicas, admiravelmente retratadas na arte culta ou popular. Para dar um exemplo divertido, foram tempos de Don Camillo e Peppone, o pároco e o prefeito comunista – criaturas de Giovannino Guareschi – que se comportavam expressivamente ora como adversários, ora como aliados.

Positivamente, aquela República fez nascer a Itália moderna; negativamente, reduziu-se muitas vezes, segundo os críticos, a uma “partidocracia”, em que cargos e nomeações, em toda a estrutura do Estado, se dividiam segundo regras bizantinas de filiação partidária. Sempre no poder, a DC e seus aliados de centro ou centro-esquerda; eternamente na oposição, o PCI – uma disposição que se tornaria disfuncional em razão, precisamente, do veto que os condicionamentos da guerra fria impunham à alternância.

A Mãos Limpas levou à implosão daquele sistema bloqueado: dois partidos tradicionalíssimos, a DC e o Partido Socialista, entre outros menores, foram tragados na grande crise. Forza Italia, a agremiação berlusconiana, e os separatistas da Liga Norte dariam voz à nova direita. O PCI continuaria o processo de reconstrução que o levaria muito além do comunismo de origem. E na margem a galáxia ultraesquerdista, a praticar “rachas” e cisões, seu esporte preferido.

Começada de forma casual, a Lava Jato terá topado, progressivamente, com um esboço de “sistema de poder” à italiana, estruturado não só a partir de nossa maior empresa pública, mas, pelo que se vê, espalhado por fundos de pensão, bancos e demais órgãos públicos. As regras de repartição saíram do âmbito artesanal: não se tratava mais de dar, ao sabor de pressões momentâneas, “diretorias que furam poços e acham petróleo” para este ou aquele personagem folclórico, mas de criar máquinas eleitorais poderosas e alianças parlamentares imbatíveis, roçando a unanimidade.

Não se pode dizer, de forma alguma, que o mecanismo fosse inteiramente inédito, salvo na proporção que passou a assumir. Mudanças quantitativas, como se diz, acarretam saltos de qualidade e no auge de sua vigência o mecanismo pareceu capaz de autorreprodução: mal se descobriam feitos e malfeitos que deram vida ao “mensalão”, surgiram indícios de algo mais grave a envolver empresas públicas e privadas numa escala que nos assusta ainda agora.

Alguém poderá lembrar que Sérgio Motta, um dos ministros mais fortes do primeiro governo FHC, certa vez vaticinou um domínio de 20 anos para consolidar as reformas liberais de então. A lembrança é cabível, mas não de todo pertinente: essa espécie de reforma é normalmente impopular, independentemente das justificativas que possa ter, e costuma minar as bases de sustentação de qualquer governo. E, ainda mais importante, os tucanos, como de resto seus aliados do antigo PFL ou do PMDB, eram partidos à moda antiga, fortes eleitoralmente, mas com pouca ou nenhuma vida orgânica ou elaboração autônoma. A adesão que obtinham, no mais das vezes, era de tipo passivo; salvo na implantação da nova moeda e em algumas outras situações, não entusiasmavam nem mobilizavam seus eleitores ao longo do tempo. Não lhes davam argumentos para a boa luta cotidiana, em meio às pessoas comuns.

Uma forte assimetria, ao contrário, caracterizou o sistema de poder petista. Longe de ser um partido comunista, especialmente se considerado o conjunto de fins (realizáveis ou irrealizáveis) que caracterizava esse tipo de partido, o PT sempre trouxe em si algo dos velhos PCs: a centralização, a disciplina e, ai de nós, o culto do chefe, não raro imantado dos dotes de messianismo e infalibilidade. Em contato com tradicionais “partidos de Estado”, que a ele se aliaram a partir do segundo mandato de Lula, o PT pôde exercer por alguns anos, quase sem contestação, seus pendores hegemonistas e seus vezos de cooptação. De fato, o “franciscano” toma lá dá cá atingiu o estado da arte, muito além dos desvios – intoleráveis! – de caixa 2 eleitoral e “sobras de campanha” que sempre atingiram os amorfos partidos brasileiros.

As democracias estão sob ataque por toda parte. Inútil buscar situações exemplares ou receitas definidas. Os partidos, em particular, veem-se assediados por “não políticos”, que estimulam a vaga populista contra a “casta” e disso se beneficiam – até porque, reconheçamos, há muito de “casta” no comportamento político convencional. Os italianos não estão fora do abalo sísmico que varre o mundo. Contudo, sem contar flutuações conjunturais, apontaram um caminho promissor ao tentarem associar num só “partido democrático” os reformistas egressos do comunismo e do catolicismo social.

A esquerda brasileira até agora não contou com tal sabedoria. Gira em círculos em torno de seus anacronismos e tabus. Reduz-se à defesa de seu chefe único e se fecha ao aggiornamento. Parece não ver que é necessário resgatar a si mesma – consciente de que “esquerda” é hoje um conceito desonrado – e contribuir para a missão comum de renovar a política, o Estado e, não por último, a sociedade brasileira.

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Portão do templo, Chengdu (China)

Com o diabo no corpo

Michel Temer, 76 anos, quase 40 deles dedicados à política, não se enquadra na categoria dos desprecavidos. Não teria sobrevivido se o fosse. Muito menos na dos ingênuos, o que torna inexplicável ter se deixado enredar na armadilha de Joesley Batista, para quem Temer, na noite de 7 de março, abriu os portões do Palácio do Jaburu e do inferno, lançando nas chamas ele próprio, o seu governo e o país.

Ainda que monossilábico, o presidente da República ouviu disparates de um investigado pela Justiça, concordou com o inconcordável, postou-se como cúmplice de relatos criminosos. Nada fez.

E deu muito mais do que os irmãos Batista precisavam para selar a delação premiada junto ao Ministério Público Federal: um diálogo cifrado, no qual Joesley poderia introduzir recheio de qualquer sabor.

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Ao relatar a Temer que estava de bem com Eduardo Cunha, Joesley não cita a que se refere. Não fala de compra, de dinheiro, de valores – permitindo que ele dê a sua versão aos procuradores, como os tais R$ 400 mil que teriam sido pagos pelo silêncio de Cunha, com conhecimento do presidente. Algo que não está no escopo da conversa e, portanto, não aparece na gravação.

Há mais dúvidas do que certezas nessa hecatombe provocada pela delação dos donos e diretores da JBS, a maior processadora de carnes do mundo, uma das campeãs nacionais selecionadas por Lula da Silva e Dilma Rousseff, com direito a generosíssimos recursos do BNDES e da Caixa.

No que tange a Temer é incompreensível o fato de ele ter aceitado encontrar-se com Joesley no tardar da noite, em sua residência e sem testemunhas. Ter deixado a conversa se enveredar por temas nada republicanos – ao contrário, criminosos. De não ter desconfiado da armação. Teria rabo preso? Culpa? Medo?

Na outra ponta, a delação dos Batistas abre dezenas de questionamentos – a começar pelos dadivosos termos do acordo que os livrou de qualquer pena.

Além dos ganhos de milhões no entardecer da quarta-feira, 17, dia D do vazamento da delação, com compra de dólares e manipulação de ações, objeto de cinco investigações abertas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os donos da JBS – que estão livres, leves, ricos e soltos - acumulam discrepâncias entre o que dizem e o que deixam de dizer.

Eles são capazes, por exemplo, de afirmar com precisão cartesiana que beneficiaram 1.829 políticos via dinheiro sujo, mas não conseguem lembrar os nomes dos cinco parlamentares – apenas cinco – que teriam recebido R$ 3 milhões cada para votar contra o impeachment de Dilma, depois de recusar o pedido para comprar 30, que eles também não dizem quem são.

A JBS teria gasto quase R$ 600 milhões para financiar políticos, menos de 2% de forma lícita. Aécio Neves, enrolado até o último fio de cabelo pela gravação em que aparece pedindo dinheiro e acertando, como um meliante, a entrega das notas em espécie, teria levado mais de R$ 60 milhões. Gilberto Kassab, José Serra, Fernando Pimentel e outros 15 governadores estariam na lista de receptores. Os Batistas dizem possuir uma bancada invejável: 167 deputados federais e 28 senadores, 179 deputados estaduais em 23 estados.

Questionado sobre um juiz que ele teria no bolso e que citara a Temer, Joesley diz que inventara esse fato ao falar com o presidente – e o dito parece ter sido convincente. Em outro ponto, o delator afirma que só com Lula e Dilma foram gastos US$ 150 milhões (mais de R$ 320 milhões). Um recorde absoluto. Ainda assim, sabe-se lá por que, as transações com os dois ex não se tornaram objeto de denúncia específica.

Michel Temer, 76 anos, político experiente, foi incisivo no pronunciamento que fez na última quinta-feira, 21 horas depois do vazamento do teor da gravação, uma hora antes de oficialmente o áudio de seu encontro com Joesley ser liberado pelo ministro-relator da Lava-Jato no Supremo, Edson Fachin.

Após ouvir a gravação, o presidente teria voltado a respirar. Como dissera pouco antes, não havia menção alguma quanto à compra do silêncio de Eduardo Cunha. Mas continha tudo o que não podia: silêncio, concordância e cumplicidade com um empresário corrupto.

No sábado, Temer voltou a se dirigir à nação. Anunciou que sua defesa protocolaria pedido de suspensão do inquérito contra ele até que a gravação – objeto de edição revelada por peritos contratos pelos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo – fosse oficialmente periciada.

Abre-se assim um novo flanco de dúvidas. Pior, capaz de ferir de morte o MPF, ao qual cabe atestar a veracidade de provas-chave de delação e de abertura de inquérito.

Algo gravíssimo caso seja confirmado. Mas, ainda que venha a servir como extintor para as chamas que Temer lançou sobre si naquele 7 de março, não conseguirá apagar a revelação de que ele já havia se rendido ao diabo.

Mary Zaidan

Michel Temer se acovardou e saiu às pressas sem dar entrevista aos repórteres

O pronunciamento deste sábado de Michel Temer e que foi transmitido ao vivo por todas as emissoras de televisão que formaram rede, foi um tremendo fracasso. Temer falou por 13 minutos. Falou sozinho. Temer parecia marionete. Por que não se sujeitou a ser entrevistado pelos jornalistas presentes? Medo, eis a resposta. Medo de ser confrontado. De ser pego em mais mentiras. Medo de não saber o que responder. Temer se serviu de uma rede nacional de rádio e televisão para desmerecer o pedido de abertura de inquérito policial feito pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e aceito pelo Supremo Tribunal Federal, por decisão monocrática do ministro Edson Fachin.

Temer, baseado em reportagem do jornal Folha de São Paulo – e não mais que isso – disse que a gravação foi editada. Que ela não é inteira. Que recebe qualquer brasileiro, a qualquer dia e hora, que queira falar com ele. Por isso recebeu o empresário Joesley Batista, da JBS, um brasileiro como outro qualquer que contou uma porção de, digamos, “lorotas”…
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Temer disse que está pedindo ao “colendo Supremo” a suspensão do inquérito policial para que uma perícia seja feita na gravação. Quanta bobagem! Ainda mais dita por um presidente-jurista. Inquérito policial não se suspende, senhor Temer. Inquérito policial ou é arquivado exclusivamente por ordem do juiz, ou com base nele o promotor público oferece ou não denúncia contra quem for no inquérito indiciado.

Mesmo se pudesse empregar a analogia do Código de Processo Civil, que permite a suspensão do curso de um processo cível, durante a suspensão nenhum ato processual pode ser praticado pelas partes. Portanto, durante a pretendida suspensão que Temer está pedindo ao ministro Fachin, a perícia que ele quer realizar não poderá ser feita, porque o inquérito estaria suspenso. Acontece que, para uma perícia judicial ser feita, em inquérito ou em processo, penal ou civil, é preciso que o processo ou o inquérito esteja em andamento. Ou seja, não esteja suspenso. Temer, vá estudar as leis processuais.
E ainda: Temer neste sábado abusou de denegrir a imagem do empresário. Justamente daquele que Temer recebeu no subsolo do palácio do Jaburu, bem tarde da noite, sem audiência marcada, sem revista na entrada, tudo na residência oficial da presidência da República, para ouvir o relato de um monte de crimes que Joesley & Cia praticaram ao longo dos anos e continuam a praticar.

O pronunciamento deste sábado de Michel Temer o afundou ainda mais. Seria infinitamente menos danoso se Temer tivesse recebido o Beira-Mar e dele ouvisse o relato dos crimes que praticou e depois se despedisse deste outro meliante, sem mais. Afinal, Temer disse que está de portas abertas para receber qualquer brasileiro, sem qualquer formalidade. Quanta empulhação!

O país que presta não tem bandidos de estimação

Os democratas antipetistas tentados a interromper a agonia política de Aécio Neves, Michel Temer e outras figuras mortalmente atingidas pela devassa nas catacumbas do Brasil precisam livrar-se imediatamente desse surto de esquizofrenia ética. O país que presta não tem bandidos de estimação, reitera esta coluna há mais de oito anos. Quem cumpre a lei e cultiva valores morais permanentes não pode ser cúmplice de corruptos condecorados. Quem aplaude a Lava Jato não pode bater palmas para os sonham com o fim da operação que desencadeou a dedetização dos porões do Brasil.

Todos os beneficiários da ladroagem institucionalizada pela Era da Canalhice devem ser punidos pelos crimes que praticaram, sejam quais forem os partidos que escolheram para homiziar-se. Quem luta contra a roubalheira não pode ser clemente com oportunistas que ou se aliaram ao esquema criminoso montado pelo PT, caso de Michel Temer, ou passaram 13 anos em silêncio obsequioso frente às falcatruas empilhadas durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. Os figurões do PSDB sempre reagiram com miados às bravatas do chefão Lula. Agora se sabe por quê.


A turma que ousou desafiar o renascimento da Justiça e obstruir os avanços da Lava Jato precisa compreender definitivamente que agora todos são iguais perante a lei. Por terem deixado de ser mais iguais que os outros, Michel Temer deveria renunciar à Presidência antes de ser dela despejado, Lula coleciona pesadelos com Curitiba, Aécio Neves antecipou a irreversível aposentadoria da vida pública e Dilma descobriu que não tem votos sequer para eleger-se síndica do prédio onde se refugia em Porto Alegre.

Desmatada por Sérgio Moro, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, a estrada percorrida pelos gatunos cinco estrelas leva a um Brasil sem vagas, sem paciência e sem estômago para obscenidades de quaisquer partidos. O país do futuro ainda está em trabalhos de parto, mas certamente será muito melhor que o repulsivo Brasil que agoniza neste outono de 2017. Retirados os tumores que restam, a Nação mostrará a si mesma que fez mais do que sobreviver. Ficou mais viva e saudável do que nunca.

Paisagem brasileira

Petrus Verdié (Firminy, França, em 1875 Rio de Janeiro em 1951.) óleo sobre tela Lagoa Rodrigo de Freitas, Dois Irmãos e Pedra da Gávea medindo 65 cm por 91 cm
Lagoa Rodrigo de Freitas, Paul Verdié (1875 -1951)

A comédia política

Ao escrever a "Comédia Humana", Balzac colocou mais de 300 personagens no enredo de sua obra-prima. Karl Marx, depois de ler um dos mais importantes monumentos da literatura universal, não se impressionou com tanta gente e comentou: "O livro do senhor Balzac só tem um personagem: o dinheiro".

Na comédia política que o Brasil está atravessando, com tantos figurantes de alta ou baixa atuação, pode-se dizer que há um só personagem: o dinheiro.

Com o poder ganha-se dinheiro de uma forma ou outra. Com o dinheiro, ganha-se o poder. Esse é o resumo bastante resumido da crise que o Brasil está atravessando.
Na democracia representativa, que até Fernando Henrique Cardoso criticou num discurso na Academia Brasileira de Letras, poder é dinheiro e dinheiro é poder. Os partidos que ambicionam o poder não têm dinheiro nem para pagar as contas de luz e telefone de suas esquálidas sedes.

Por sua vez, os candidatos, em sua maioria, também não têm dinheiro suficiente para manter as suas campanhas eleitorais. A solução é buscar recursos nas grandes empresas e nas grandes fortunas. Evidente que o poder político precisa de dinheiro das grandes empresas e dos gigantes do mercado. A mão de uns lavará a mão de outros. Se somarmos as quantias ganhas e gastas no mensalão, no petrolão e na Lava Jato, teríamos mais dinheiro do que o produto interno bruto.

Nelson Motta, em artigo desta semana, pergunta: "Quanto vai valer em cargos, vantagens e dinheiro vivo um voto? Não tem preço".

Balzac, Karl Marx e Nelsinho Motta botaram o dedo na chaga que ameaça a saúde nacional. Não adianta tirar Michel Temer do poder ou reformular os partidos que estão falidos. Pior mesmo é reeditar a ditadura militar ou civil.

Não seria uma comédia política, mas uma tragédia humana.

A Constituição, acima dos dignos e dos indignos

Se o Diabo veste Prada, as esquerdas vestem Armani, consomem caviar, têm penthouses na Flórida e triplexes no Guarujá. Curiosamente, porém, lhes são atribuídas importantes virtudes na relação com os ocupantes dos mais miseráveis porões da vida social. É um fenômeno real: não é o pobre que precisa da esquerda; é a estratégia e o projeto político da esquerda que precisam do pobre na sua pobreza. Duvida? Vá a Cuba e à Venezuela e depois nos conte. A aparente empatia entre a esquerda e a pobreza não se compara à que une seus mais poderosos representantes aos donativos, mesadas e jatinhos disponibilizados pelo capitalismo de compadrio, construído com dinheiro do condomínio Brasil, ou seja, com o dinheiro de nossos impostos. Enquanto faz juras de amor aos pobres, pisca o olho e vai para a cama com os mais inescrupulosos bilionários.

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A conversa entre Michel Temer e Joesley Batista faz lembrar muito, mas muito mesmo, certas gravações colhidas em grampos com pessoal do PCC. Ouvindo a confusa loquacidade do empresário, construindo frases de um modo meio cifrado, a gente fica à espera do momento em que vai chamar Temer de "mano". E este se comporta como tal, embora alguém do PCC tivesse, ligeirinho, percebido a armação e dado uma curva no escandaloso encontro.

O presidente caiu como um pato em pleno voo e a crise política instalou-se no mais inoportuno dos momentos, quando o país começava a se aprumar para uma gradual emersão desde as profundezas da pior crise de nossa história econômica. Quem perde com essa nova enxurrada de lama? Há quem, feliz da vida, diga que perde a base do governo, que perdem os "golpistas". Eu vi essa expressão nos rostos de diversos parlamentares quando a notícia da gravação chegou ao Congresso Nacional. De fato, embora quase todos os que observei tivessem contas a acertar com o mesmo STF, a nova situação os excitou positivamente. "Enfim, uma notícia boa!" - pareciam dizer.

Boa? Eis onde quero chegar. Nas horas subsequentes, ocorreram manifestações. Pontos de concentração, em várias capitais do país, pintaram-se de vermelho. Era marcante o tom político, partidário e militante que caracterizava quem a elas afluiu. A atitude, as bandeiras, as faixas e cartazes funcionavam como carteiras de identidade do público presente. O povo, aquele que "vive e move-se por vida própria", na feliz definição de Pio XII, estava em casa, chocado, desolado, porque inteligentemente presumiu as penosas consequências daquelas revelações. O povo sabe que fora, acima e além das mesquinharias políticas, é ele quem perde. Ele perde sempre que o espírito público é comprado e o interesse nacional, vendido.

É hora de prestar atenção a quem tenha atitude responsável, esteja pensando no Brasil, na imagem do país, nas necessárias reformas, na retomada do crescimento em favor dos desempregados, dos endividados, dos jovens da geração nem-nem. E é uma boa oportunidade, também, para monitorar e, em 2018, varrer da cena política corruptos, demagogos, populistas, oportunistas. E como os temos!

Nesta quadra amargamente pedagógica da vida nacional resta-nos a Constituição. Silenciosa, ela se ergue acima dos dignos e dos indignos. Há que segui-la, sem casuísmos, para a necessária substituição do presidente, forçada ou voluntária, repudiando quem queira aprofundar a crise e convulsionar ou parar o país.

Percival Puggina

A moralidade estuprada por um presidente que não renuncia

“Não pergunte o que o seu país pode fazer por você, mas o que você pode fazer pelo seu país” – a frase é de John Fitzgerald Kennedy, 35º Presidente dos Estados Unidos. Mais do que isso. É a frase que separa um simples governante de um estadista. E o que é um estadista? Um estadista é o governante que se preocupa com o bem comum, acima de seus interesses pessoais.

Todos sabemos que para se tirar um Presidente do cargo há regras e procedimentos. É o que os juristas chamam de princípio da legalidade. E sabemos, igualmente, que até Lúcifer tem direito de defesa. É o que separa um governo bolivariano de um Estado Democrático de Direito. Mas porque então as palavras de Kennedy ecoam na minha mente?
Eu explico. É que há momentos em que o valor supremo da moralidade administrativa deve prevalecer sobre o direito individual, embora fundamental, da presunção de inocência.

A questão não é saber se Temer é culpado ou inocente, pois ele terá sempre o direito a se defender, no momento processual próprio, mas de acabar com o sofrimento das pessoas de bem, ordeiras, dignas e honestas, que não aguentam mais acordar num país órfão de moralidade.

Quando Richard Nixon renunciou, por causa do escândalo da invasão do edifício Watergate, é bem verdade que ele ficou proscrito por um tempo, mas não é menos verdade que hoje se reconhece o bem que ele fez à nação norte-americana. Alguns economistas, inclusive, reconhecem que ele foi importantíssimo para a economia, em função de ter, no seu governo, desatrelado a emissão do dólar ao chamado “padrão-ouro”.

Parece-me que Temer poderia trilhar o mesmo caminho. Assim como Nixon, a história poderá redimi-lo, ou não. Mas, se renunciar, terá mais chances de que isso aconteça, pois ao menos se reconhecerá que ele não foi covarde e, em algum momento, colocou o interesse público acima de suas vaidades e interesses pessoais, como, aliás, deveria fazer todo Estadista.

O Brasil precisa se recompor, pois como diz a música da Legião Urbana, cada dia quando acordamos não temos mais o tempo que passou (Tempos Perdidos).

Nossa democracia é jovem. Não temos que nos envergonhar dos percalços, nem dos erros cometidos. O erro só prova que somos humanos. Deus criou o erro para que existisse o perdão. Será mais fácil que a história perdoe os erros de Temer do que a sua falta de coragem em renunciar. Se não renunciar, passará para a estória como um covarde, como um traidor do povo, um oportunista.

A voz do povo diz que a burrice é cega, assim como o amor. Tendo a concordar. Ainda a mais quando o Temer presidente teima em não ouvir a consciência do Temer professor de direito constitucional. Faça uma ponderação e um balanceamento, Sr. Presidente. O Senhor conhece o método exegético, e deve verificar o que é mais importante para o Brasil nesse momento: a presunção de inocência (individual) ou a moralidade administrativa (pro societatis)?

Quando ficamos sabendo pelos jornais que o Brasil é governado pelas grandes corporações (Odebrecht, Queiroz Galvão, Delta, JBS, Facility e tantas outras) e não pela ideologia e pelo voto, e que a longa manus dos empresários se estende à CVM, ao Banco Central e ao BNDES, a esperança do povo recebe uma violenta bofetada na cara, pois o cidadão comum passa a perceber que a sua voz não tem representatividade alguma e que vivemos uma Democracia de aparências, “para inglês ver”.

Certamente, Temer sairá do cargo no dia 6 de junho quando o TSE condenar a chapa Dilma-Temer. Podia, entretanto, dar exemplo de coragem para os nossos filhos e netos, para a nova geração que vem aí, e deixar o cargo com um mínimo de dignidade.

O Brasil não pode esperar. Precisamos restabelecer a esperança política e buscar na meritocracia a nomeação para preenchimento de todos os cargos públicos, via concurso. Não dizima a corrupção, vício do ser humano, é claro, mas ajuda a mitigá-la. Por que o BNDES, a CVM e o Banco Central não são comandados pelos seus funcionários de carreira concursados? Por que não são livres e independentes das politicagens e conchavos políticos?

Não se percebe que as duas instituições que ainda funcionam e guardam alguma independência moral são a Polícia Federal e a Procuradoria da República, exatamente porque seus membros são inamovíveis, concursados, e estão protegidos da discricionariedade própria dos políticos de ocasião? É assunto sério a ser discutido, possivelmente através de um Projeto de Emenda Constitucional.

O País está envergonhado, Sr. presidente. Não estupre a moralidade. Apenas renuncie. Será melhor para todos, inclusive para o senhor e para os nossos filhos. O Brasil agradece penhorado!