sábado, 12 de fevereiro de 2022

Pensamento do Dia

 


Mentira não é informação

Em 1969, um executivo anônimo de uma fabricante de cigarros dos Estados Unidos redigiu um memorando de nove páginas com o título “Tabagismo e Saúde: Proposta”. O problema a enfrentar era as pessoas saberem que tabaco causa câncer. O memorando é histórico porque contém a quase poética frase “dúvida é nosso produto”. Menos conhecida é a conclusão do raciocínio: a dúvida é o produto porque “é o modo de estabelecer uma controvérsia”.

Em poucas linhas, esse soldado desconhecido da guerra corporativa articulou o princípio básico do negacionismo enquanto estratégia política: produzir dúvida com o objetivo de semear, na mente do público, a falsa noção de que existe uma controvérsia legítima a debater. Da negação do aquecimento global antropogênico ao estímulo bolsonarista à hesitação vacinal, chegando até mesmo a ideologias mais antigas, como o fundamentalismo bíblico (“ensine a controvérsia!” tornou-se o grito de guerra dos criacionistas a partir da década de 1990), os defensores de ideias derrotadas pelos fatos e pela ciência parecem ter abraçado, em massa, a fabricação de dúvida como atividade principal.


Como todo produto, a dúvida fabricada precisa ser distribuída. Tomates e geladeiras viajam por estradas e trilhos. Dúvidas e controvérsias, pela imprensa. Mesmo neste mundo de redes sociais e aplicativos de mensagem, os nomes e marcas reconhecidos há décadas, com reputação consolidada, chamados de “mídia de legado”, ainda têm um poder excepcional para gerar atenção e prestígio. O mesmo argumento será lido e valorizado de modo diverso se aparecer no tuíte pessoal de alguém ou nas páginas (impressas ou virtuais) de um jornal respeitado ou grande revista.

A vulnerabilidade da imprensa a controvérsias artificiais é um fato histórico bem documentado. O jornal The New York Times só parou de oferecer direito de réplica à indústria do cigarro em seus textos sobre os males do tabaco no fim dos anos 1970 — 30 anos depois do consenso científico sobre a ligação entre tabagismo e câncer ter sido estabelecido, 15 anos depois de o governo americano emitir seu primeiro alerta oficial aos fumantes.

Essa permeabilidade tem causas estruturais que em geral emanam de bons princípios, aplicados de modo irrefletido ou inocente. Liberdade de expressão muitas vezes é citada, mas não é o caso. Nenhum jornal publica todas as cartas que recebe, nem todos os artigos que lhe são submetidos. Curadoria de conteúdo não é “censura”.

Os princípios que, quando ingenuamente aplicados, fazem a imprensa abrir portas aos fabricantes de dúvidas são o equilíbrio e a informação. Se existem interesses diferentes em torno de um tema, é preciso equilibrá-los para que a cobertura seja justa; se determinado ponto de vista existe, é preciso informar as pessoas disso.

Equilíbrio, no entanto, é ferramenta, não meta. Se há dúvida razoável sobre a verdade dos fatos, equilíbrio talvez seja o melhor que se pode fazer. Mas contentar-se com ele, almejá-lo, é um erro. Como escreve o filósofo Lee McIntyre em seu livro “Post-Truth” (“Pós-verdade”), o meio-termo entre verdade e mentira ainda é menos que a verdade.

A informação é o fim maior, mas, para que se realize, deve ser completa. Não basta noticiar que há quem acredite que a Terra é plana, é necessário acrescentar que essas pessoas estão erradas — e explicar por quê. Limitar-se a “informar” acriticamente que uma mentira existe equivale, em termos morais e práticos, a repeti-la.

Na pandemia, setores importantes da imprensa, confrontados por falsas controvérsias que põem vidas em risco, aprenderam a reconhecer a armadilha e a escapar dela. É uma lição que não pode se esgotar na emergência sanitária. A era da inocência precisa terminar. Ou assumir-se como a era do cinismo.

Hora de farol alto, meu Brasil

O leitor certamente conhece o instituto de pesquisas inglês Economist Intelligence Unit (EIU), ligado à revista The Economist, que compila anualmente um “índice de democracia” para mais de 60 países. Baseando-se em diversos indicadores, o EIU classifica tais países com base em diversos indicadores e situação conjuntural de cada um.

Em seu relatório de 2020 – o mais recente divulgado –, a instituição traçou um quadro sombrio, indicando um enorme retrocesso em todos os continentes. O título do relatório, In sickness and in health? (Na doença e na saúde?), já sugere o fator posto em relevo: a pandemia de covid-19, que forçou a maioria dos governos a tomar medidas que provavelmente seriam rejeitadas pelos cidadãos caso fossem submetidas a algum tipo de plebiscito. Esse trágico painel reforça numerosas análises que vêm há anos prognosticando o iminente fim da democracia liberal-representativa.

O EIU classifica os países estudados em quatro categorias. A “nata” da democracia, designada como “democracias plenas”, compreende apenas 23 países, nos quais vivem 8,4% da população mundial. Os países nórdicos da Europa e o Canadá ocupam as posições mais altas. Na América Latina, só três países – Uruguai, Chile e Costa Rica – podem gabar-se de ser “plenamente” democráticos.


O grupo seguinte, denominado “democracias defeituosas”, compreende 52 países e 41% da população mundial. Esses países podem orgulhar-se de alguns traços democráticos importantes, desde logo o fato de que o acesso ao poder se dá mediante eleições periódicas, limpas e livres, mas não conseguem manter um padrão elevado em outros aspectos, como a liberdade de imprensa e a proteção dos direitos humanos. Uma parte expressiva dos cidadãos se opõe aos valores básicos da democracia. Para ter uma ideia da qualidade exigida para um país ser considerado “plenamente” democrático, basta lembrar que França, Portugal e Estados Unidos foram recentemente rebaixados para o grupo “defeituoso”, fato perceptível no caso norte-americano, tendo em vista a virulenta polarização iniciada na eleição presidencial de 2016, que deu a vitória a Donald Trump, e a recidiva racista, grotescamente ilustrada pelo assassinato de um negro quando um policial o manteve sufocado sob sua bota durante 8 minutos.

O terceiro grupo, designado como “regimes híbridos”, é uma mistura desconexa, na qual alguns países até mantêm uma contrafação de processo eleitoral, mas que, a meu ver, não passam de ditaduras, abertas ou veladas.

Abaixo dos “regimes híbridos” temos os países inequivocamente ditatoriais, como a China, o Irã e a Coreia do Norte. Alguns desses países exemplificam bem o que acima designei como contrafação de processo eleitoral. Na Bielorrússia, por exemplo, o presidente Alexander Lukashenko, possuidor de sólidas credenciais fascistas, pleiteou em 2020 o seu sétimo mandato. Ao se dar conta de que seu adversário, Siarhei Tsikhanouski, poderia dar-lhe algumas dores de cabeça, mandou-o para a cadeia. Não se importou com a mulher dele, Sviatlana Tsikhanouskaya, uma simples dona de casa que se ocupava tão somente de cuidar de seus dois filhos, um deles nascido surdo. Mas o implausível aconteceu. Ela se candidatou à presidência, o inconformismo latente veio à tona e ele, Lukashenko, achou melhor mandá-la para o exílio na Lituânia.

O caso da Bielorrússia contém uma lição importante: o fascinante painel que a pesquisa do EIU nos proporciona requer certos cuidados na interpretação. O sucesso eleitoral da sra. Sviatlana e a evidência de que a Bielorrússia não passa de uma ditadura nada tiveram que ver com a conduta do governo em relação à pandemia. No sentido oposto, a estrela do relatório de 2020 é Taiwan, que subiu 11 posições, alçando-se ao seleto grupo das democracias plenas.

O Brasil é outro caso que precisa ser interpretado com cautela. Ocupando a 49.ª posição, estamos um pouco acima da Índia e um pouco abaixo da África do Sul. Os relatórios bianuais divulgados desde 2006 mostram uma acentuada redução na qualidade de nossa democracia (que nunca foi grande coisa). Importa ressaltar que estou me referindo à série iniciada em 2006, portanto a pandemia, por maior que venha a ser seu efeito, não é a explicação. Se queremos de fato entender o que vem acontecendo, melhor será começarmos pela ressurreição do populismo a partir de 2002; o conluio entre a deslavada corrupção implantada na Petrobras com a malta dos empreiteiros; a liquefação da estrutura partidária; a recessão engendrada pelos desatinos econômicos da sra. Dilma Rousseff; a estúpida polarização política entre Bolsonaro e o PT, iniciada na eleição de 2018; a liturgia presidencial, espezinhada pelo sr. Jair Bolsonaro, tudo isso servindo como pano de fundo para o fato de nos havermos igualado aos Estados Unidos numa grotesca manifestação de racismo, o assassinato do congolês Moïse no Rio de Janeiro. Haveria mais o que dizer, claro, mas, a oito meses da eleição, basta lembrar que o farol baixo aponta para a Bielorrússia, o alto, para Taiwan.

Conspirando contra o futuro

A perversa e persistente estratégia de desenvolvimento nacional, fundada em altos níveis de concentração de renda, baixos padrões educacionais, desigualdade social, racismo estrutural e na violência e arbítrio como formas de ordenação social, nunca foram tão evidentes como no presente momento.

Dois relatórios publicados recentemente escancaram o quanto a sociedade brasileira, leia-se os adultos, temos descumprido nossas obrigações, plasmadas no artigo 227 da Constituição Federal, de assegurar às crianças e adolescentes "com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação... à dignidade..., além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

A desonestidade do Estado e de parte da sociedade brasileira com seus jovens é constrangedora, comprometendo não apenas o processo de desenvolvimento econômico e social do Brasil, mas, também, a própria aspiração de vivermos em paz, sob o estado democrático de direito.

O movimento Todos pela Educação, que vem mapeando o desempenho da educação brasileira nas últimas décadas, sinaliza em seu último relatório um preocupante crescimento de 66,3% no número de crianças, entre 6 e 7 anos, que não foram alfabetizadas.

Se é fato que uma parcela substantiva desse crescimento se deve à Covid-19 e ao fechamento das escolas públicas, onde estudam mais de 80% de nossos alunos, predominantemente pobres, o que mais preocupa, como argutamente aponta Claudia Costin, nesta Folha, é que esse crescimento se dá sobre um número já extremamente alto de crianças —cerca de 55%— que não se encontra alfabetizada no 3º. ano do ensino fundamental. Mantidos esses padrões educacionais, o Brasil jamais conseguirá ingressar numa economia cada vez mais pautada no conhecimento, ficando fadado à produção de commodities.

Nossas crianças não têm apenas uma educação deficiente, em face de políticas educacionais insuficientes. Como aponta o relatório "Tiro no Futuro", recentemente publicado pelo Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania (CESeC), a violência, em grande medida decorrente de uma política equivocada de "guerra às drogas", tem tido um forte impacto sobre a trajetória educacional, psíquica e social de jovens que vivem em comunidades, encontrando-se expostas ao tráfico, a operações policiais bélicas, tiroteios e balas perdidas.

Nada menos do que 1.115 escolas públicas ficaram expostas aos 4.346 episódios de trocas de tiros registrados na cidade do Rio de Janeiro, em 2019. Os alunos de 57% dessas escolas presenciaram dez tiroteios; de 11% das escolas, 30 tiroteios; já as crianças de 0,3% dessas escolas ficaram expostas a 95 casos de troca de tiros em um único ano.

Os pesquisadores apontaram as perdas educacionais coletadas junto à secretaria de educação e estimaram as perdas econômicas decorrentes da exposição à violência. Indicam, no entanto, que há inúmeras outras sequelas que acompanharão esses alunos ao longo de suas vidas.

Chamo a atenção, aqui, para a dificuldade que essas crianças, que não tiveram seus direitos mais básicos respeitados, terão em se conformar ao Estado de Direito. A insinceridade dos adultos e do Estado brasileiro no cumprimento de suas obrigações morais e legais em nada favorecerá a que esses jovens reconheçam os códigos de respeito recíproco indispensáveis numa sociedade democrática. Sem que sejamos capazes de reconfigurar nosso projeto de desenvolvimento, estaremos conspirando contra o futuro de nossos próprios filhos e netos.

Ano novo?

O ano passou de 21 para 22, mas não conseguimos controlar as velhas, triviais e vergonhosas roubalheiras, o machismo, o feminicídio e a violência miliciana e policial. Ademais, aumentamos a taxa de racismo estrutural e estruturante, do “você sabe com quem está falando?” e, para completar, voltou a inflação, em paralelo a uma polarização que, demandando a exclusão do outro, é, em todo tempo e lugar, o timbre do reacionarismo fascista.

O calendário muda, mas o estilo aristocrático e elitista, antirrepublicano e autoritário, claro na Presidência e em todo lugar, permanece atrapalhando nossas vidas.


Num chavão, o “ano novo” realiza sua costumeira malandragem de mudar não mudando. Continuamos a pensar o tempo como calendário, imaginando que, quanto mais velhos, mais “adiantados” ficamos, quando, na verdade, o Brasil de hoje é uma infâmia de atrasos. É um país a caminho do suicídio moral.

Como falar num novo ano se o acontecimento básico deste tempo começa com uma campanha eleitoral que repete a anterior, negando o devir histórico?

É abominável ver a repetição da “luta” Lula-Bolsonaro, que, neste “novo ano” de 22, estão muito mais parecidos com criadores de autolorotas negacionistas — esse conceito dominante de um ano novo nascido velho. São nossos mais ávidos postulantes a “supremos magistrados da nação” — uma nação que precisa de muita água benta (e sanitária) para livrar-se de sua danação e que corre o risco de repetir-se no seu rito democrático mais importante. Reprisará na eleição sua sina de conjugar, segundo o oportunismo, burocracia-legal-processualística, compadrio regado a mandonismo elitista e carisma para dar e vender.

Estou cheio de messias, milagreiros, curadores, especialistas e religiosos carismáticos. Chega de mediadores canalhas de divindades baratas. Nosso panteão de carismáticos que mudariam o Brasil chegou ao seu limite!

Penso que, para termos de fato um novo ano, e não um “Ano-Novo” formal e ritualístico, temos de resgatar uma abandonada e destruída ética de responsabilidade e de honra. A ética do “isso eu não faço!”.

Tempos novos são ideais para tirar da latrina princípios e valores que dizem não ao nosso egoísmo e ao nosso “bom-mocismo” condescendente, que concilia Deus e Diabo; que confunde direita com esquerda e cabeça (sejamos educados...) com o traseiro...

É preciso pensar mais sinceramente quando se fala em nome do “povo”, que cada vez mais se desgraça, porque os cargos públicos são apossados pelos eleitos (na maioria, aventureiros de gravata italiana) que jamais pensam em trabalhar para o Brasil, pois, mesmo em meio a tempos novos e difíceis, continuam a pensar que são donos do Brasil...

Valha-nos, Deus!, como se dizia antigamente...

Na festa deste fim de ano, vesti preto. Estou de luto e tomo, é claro, um adequado black label. Mas, nestes anos finais de minha vida, enfrento a tentação de desistir de um país onde a “política” perdeu credibilidade. Passou de projeto a malandragem autoritária.

A tal ponto que a mentira, a falsidade e, acima de tudo, a má-fé (essa mestra das fake news e das militâncias mais perversas) tornaram-se projetos para quem escapou da abominação que foi testemunhar um presidente da República recusar a vacina contra a pandemia.

Amigos, é grande a vontade de sumir. Mas para onde ir?

Para uns Estados Unidos que se perdem em meio ao que foi a liberdade — sua grandiosa virtude democrática? Para uma China materialmente gigantesca que, com ajuda de Confúcio, torna minúscula uma cidadania já hierarquizada? Irei com os zilionários americanos dar voltas em torno do planeta que a bolsonarista alienada diz que é plano?

Ou devo apelar para o Papai Noel ianque, de quem a maioria dos brasileiros jamais foi filho ou ganhou o presente da igualdade?

Pensei, é claro, em Pasárgada.

Mas o melhor mesmo é desejar que o fogo da esperança acenda uma fagulha no coração dos leitores desta coluna. É o cintilar da esperança que construirá um autêntico Ano-Novo.