segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Um Brasil mais parecido com a Europa

Não há brasileiro que, ao viajar para a Europa, não se encante com os efeitos de uma sociedade mais igualitária. Pessoas que só se locomovem de carro no Rio de Janeiro encantam-se com o metrô de Paris e os bondes de Lisboa. Aqueles que no Brasil só fazem consultas médicas privadas surpreendem-se com a eficácia e a frugalidade de um sistema de saúde como o inglês ou o espanhol, em que o advogado e o atendente do supermercado se encontram na fila do posto de saúde.

A redução da desigualdade não melhora apenas a vida dos mais pobres, melhora também a vida dos mais ricos. Com mais igualdade, não há apenas distribuição da riqueza social, mas uma reorganização dos horizontes e das expectativas, fazendo com que se encontre mais satisfação em férias bem tiradas do que na aquisição do último iPhone. A redução da desigualdade também reforça os vínculos de comunidade, levando trabalhadores e profissionais a se verem como concidadãos ao compartilhar o transporte público, os hospitais e as escolas.


Por isso há pouca dúvida de que a vida com € 2 mil na Europa é superior a uma vida com R$ 13 mil ou mesmo R$ 20 mil no Brasil. Na verdade, não precisamos nos comparar à Europa, que tem PIB per capita maior que o nosso. Quem já visitou o Uruguai, país com um nível de riqueza parecido com o brasileiro, mas com distribuição de renda muito mais justa, sabe que a vida em Montevidéu é melhor que em São Paulo.

Corrigir a desigualdade é difícil, mas não tem segredo: é preciso um sistema tributário progressivo (em que os ricos paguem, proporcionalmente, mais impostos que os pobres), e são necessárias boas políticas sociais. Em outras palavras, é preciso que o sistema tributário retire dos mais ricos, e o sistema de proteção social redistribua bem para os mais pobres.

O Brasil é um dos campeões mundiais da desigualdade. Quando olhamos para o Gini, medida usada para avaliar a distribuição da renda, o Brasil apresentava em 2019, antes da pandemia e do Auxílio Emergencial, um índice de 0,544, o que o colocava entre os dez países mais desiguais do mundo. A desigualdade brasileira é tão acentuada que a soma dos rendimentos do 1% mais rico é aproximadamente o triplo da soma dos rendimentos dos 50% mais pobres.

Para corrigir tamanha desigualdade, precisamos mudar não apenas o modo como gastamos os recursos públicos, mas sobretudo o modo como arrecadamos. Os liberais que dominam o debate econômico enfatizam que gastamos mal os recursos públicos, bancando privilégios da elite do funcionalismo, o que acentua a desigualdade —e eles têm razão. Mas, além disso, do lado da receita, nosso sistema tributário é uma aberração, em que os pobres pagam mais impostos que os ricos. Como nosso sistema taxa muito o consumo e pouco a propriedade e a renda, e os pobres gastam uma proporção maior da renda comprando bens, o sistema onera mais os pobres —é regressivo.

Embora a desigualdade seja um de nossos problemas mais urgentes, ela não está no topo da agenda política, nem mesmo na esquerda. Nos 13 anos em que governou o país, o PT não se empenhou em reformar o sistema tributário para torná-lo progressivo.

Com a prosperidade econômica trazida pela explosão das commodities nos anos 2000, os governos petistas ampliaram o gasto social, consolidando o Bolsa Família e conferindo aumentos ao salário mínimo. Essas e outras medidas contribuíram para uma pequena redução da desigualdade, mas não com a intensidade necessária.

Enfrentar a desigualdade brasileira requer medidas vigorosas. Por um lado, precisamos diminuir os impostos sobre o consumo que oneram os mais pobres. Por outro, precisamos criar mais impostos para os ricos, com a taxação de lucros e dividendos, com mais faixas no Imposto de Renda e com impostos mais amplos sobre a propriedade e a herança.

Isso não é fácil. Os mais ricos têm mais poder e não querem pagar mais imposto. Mexer na distribuição entre imposto de consumo e imposto sobre a renda implica mexer no pacto federativo, já que estados arrecadam mais impostos de consumo, e a União arrecada o imposto sobre a renda.

Justamente pela dificuldade política de enfrentá-la, a desigualdade precisa estar no centro do debate nas próximas eleições. Se não provocarmos os políticos, eles mais uma vez não darão prioridade ao problema. Cabe a nós, eleitores, pressionar os candidatos e ajudar a construir um Brasil mais parecido com a Europa ou o Uruguai.

Calculadora de renda: 90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3,5 mil

Um ano atrás, o ator Bruno Gagliasso escreveu em suas redes sociais que precisava "bater um papo com você, meu irmão branco. Um papo reto aqui entre nós que não somos o topo da pirâmide, mas estamos bem distantes da base".

Nos comentários, os internautas questionaram o topo da pirâmide ao qual o artista se referia. Se ele, dono de uma pousada na ilha de Fernando de Noronha, de restaurantes e de uma marca própria de roupas não estava no topo, quem está?

Mas não é preciso ir tão longe. A renda mensal média de quem está entre os 5% mais ricos no Brasil é de R$ 10.313,00, conforme os dados da Pnad Contínua - Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE. O corte para estar no 1%, ou seja, com renda média superior à de 99% da população brasileira adulta, é de R$ 28.659,00.

A base da pirâmide é relativamente homogênea — 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês (R$ 3.422,00) e 70% ganham até dois salários mínimos (R$ 1.871,00, para um salário mínimo de R$ 998,00 em 2019), ainda segundo o levantamento.

Dentro do grupo dos mais ricos, contudo, o espectro é bem diversificado.

Tomando a faixa da pesquisa do IBGE, de R$ 28 mil, o grupo dos 1% mais ricos inclui desde alguns profissionais liberais como advogados e engenheiros e a elite do funcionalismo público — promotores, procuradores, auditores da Receita —, a empresários, artistas e, finalmente, os milionários e bilionários que aparecem nas listas dos mais ricos do país.

Rico, eu?

Talvez por isso, muitos não se enxerguem como parte do topo da pirâmide.

'Topo da pirâmide' está geralmente ligado à ideia de ostentação - mas nem sempre é assim


A pesquisa Nós e As Desigualdades, realizada pela Oxfam em parceria com o Instituto Datafolha, pergunta desde 2017 aos brasileiros, em uma escala de 0 a 100, se eles se acham "muito pobres ou muito ricos".

As três edições do levantamento realizadas até agora apontam na mesma direção: quem está no topo pode ter uma visão bastante distorcida da realidade. A pesquisa de dezembro de 2020 apontou que, entre aqueles com renda superior a 5 salários mínimos, 75% disseram achar fazer parte da metade mais pobre do país.

Para se estar entre os 10% mais ricos do país, contudo, a renda média parte de três salários mínimos, de acordo com os parâmetros da pesquisa.

Isso porque o Brasil é um país em que muita gente vive com muito pouco. Para se estar entre os "mais ricos", do ponto de vista da distribuição de renda, não é preciso tanto.

Esse descolamento entre percepção e realidade, entretanto, não é exclusividade do Brasil.

"Os estudos sobre percepção mostram que as pessoas tendem a se classificar no meio, como classe média. Pouca gente se classifica como pobre ou como rica", diz o professor de Princeton e pesquisador da desigualdade Marcelo Medeiros.

Mas por quê?

Estudiosa do tema, Asli Cansunar, professora do departamento de Ciência Política na Universidade de Washington, nos EUA, ressalta que esses resultados são observados pelo menos desde os anos 1970.

A explicação é relativamente simples. A grande maioria das pessoas não consome informações sobre estatísticas econômicas no dia a dia. Na falta de dados técnicos, a maneira de colocar sentido no mundo é por meio de comparações — é olhar em volta e se comparar aos amigos, familiares, às celebridades na TV ou, mais recentemente, aos influencers do Instagram.

O problema, nesse caso, é que a amostra é enviesada, já que o cotidiano está, de maneira geral, dominado por imagens que nos levam a associar o topo da pirâmide à ostentação: alguém que dirige um carro importado, que faz viagens internacionais, que consome produtos de luxo.

"E quando você se compara a essas pessoas, claro, vai dizer: 'Imagina, eu não sou rico, sou classe média! Sou apenas alguém que está se esforçando para comprar um carro novo e conseguir viajar nas férias'. Na vida real, entretanto, se você olhar as estatísticas, vai ver que está ganhando muito mais do que muita gente no seu entorno", destaca a pesquisadora.

Mas então quem está no 'topo' é rico?

Para além das percepções individuais, a própria noção de riqueza é subjetiva. Não há um consenso acadêmico sobre o que seria uma "linha de riqueza", por exemplo. Ser rico é ter dinheiro suficiente para poder parar de trabalhar? É morar em um determinado bairro da cidade? É ter um carro importado?

"A definição do que é ser rico é uma ferramenta, depende do que se quer fazer com ela", pontua Medeiros.

Cansunar também ressalta que a noção de riqueza é relativa - e pode variar inclusive dentro de um mesmo país. No Reino Unido, ela exemplifica, ganhar mais do que as 80 mil libras por ano (R$ 590 mil), que coloca alguém entre o 1% no topo da pirâmide, não necessariamente significa uma vida confortável em Londres para quem tem de pagar aluguel.

A própria pirâmide de rendimentos — que, aliás, não contabiliza a riqueza estocada em patrimônio, a recebida em herança — pode variar, a depender da metodologia. O IBGE usa suas pesquisas domiciliares, que, tradicionalmente, acabam subestimando a renda de quem está no topo.

Seja por uma questão ligada à segurança, por constrangimento ou porque realmente não sabem quanto ganham na ponta do lápis, os mais ricos acabam informando valores menores aos recenseadores do instituto.

"O IBGE faz um trabalho fantástico, mas esse é um fenômeno que acontece no mundo inteiro. Então as pesquisas do IBGE captam muito bem, vamos dizer, os 90% mais pobres da população", pontua o sociólogo e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Pedro Ferreira de Souza.

"Nos 10% mais ricos, quanto mais para cima, maior a subestimação", afirma o especialista, que é autor do livro Uma História da Desigualdade, vencedor do prêmio Jabuti em 2019.

Por isso, pesquisadores como Souza utilizam também os dados da Receita Federal do Imposto de Renda, que captam melhor a renda que vem de investimento e aplicações financeiras, por exemplo.

Entre os 5% mais ricos, conforme os cálculos que ele fez com dados de 2015, a renda média apontada pelo levantamento do IBGE era 25% menor do que usando o IRPF. Para o 1% mais rico, a linha de corte nos dados do IBGE era 45% menor do que no IRPF — pouco menos da metade.

Ainda que a linha de corte, na prática, seja provavelmente superior aos R$ 28 mil apontados pela Pnad Contínua, o topo da pirâmide ainda é formado pelo grupo heterogêneo que inclui dos "super ricos" a profissionais liberais e parte do funcionalismo público.

O teto para o salário dos servidores federais é hoje de R$ 39 mil. Muitos, contudo, recebem valores superiores com a inclusão de benefícios como auxílio alimentação e moradia.

"Se você ganha um salário muito alto, e em alguns casos muito acima do teto — principalmente no poder judiciário, a gente vê que é comum — com o tempo vai acumular renda e isso vai virar rendimento de capital", acrescenta o sociólogo.

"O público leigo às vezes acha que todo funcionário público, ou pelo menos todo funcionário público federal, está no 1%. Tem um exagero grande aí, mas também não é de todo falso, certamente tem muita gente da elite do funcionalismo e, vamos ser sinceros, da elite política [no 1%]."

Como estudioso da desigualdade, encontrada no Brasil em nível "extremo", o pesquisador acredita que esse possa ser um bom parâmetro para se definir riqueza no Brasil.

"Onde está a concentração de renda que torna o Brasil muito diferente da Europa? Bom, está no topo. É ali o 1%, os 5% mais ricos, talvez em algum grau você possa falar que são os 10% mais ricos, alguma coisa assim. Mas a concentração grande mesmo é bem no topo, então fazer esse recorte — falar em 1% da população, 5% da população, acho que não tem como dizer que não é rico, né? Isso exigiria umas cambalhotas retóricas que não são muito fáceis", avalia Souza.

Chamar atenção para o topo, na avaliação do sociólogo, é importante especialmente por dois motivos.

Primeiro, por uma questão política. Quando uma fração pequena da população concentra um percentual grande dos recursos, ela tende a "usar todos os meios possíveis para converter o poder econômico em influência política e, assim, conseguir enriquecer ainda mais".

"Isso não é uma questão necessariamente de caráter individual, mas uma dinâmica social que a gente vê em diversos países — e atrapalha o funcionamento da democracia."

Segundo, ele acrescenta, porque entender quem tem mais abre caminho para o desenvolvimento de políticas voltadas para melhorar o bem-estar dos mais pobres, como o financiamento de serviços públicos de transporte e saúde para atender essa população.

"O jeito mais eficiente de fazer isso é pegar de quem tem mais, de onde o dinheiro tá em tese sobrando — pelo menos em algum grau, ninguém está falando em confisco, mas do padrão de Estados Unidos e Europa —, tributar onde tem mais dinheiro concentrado e gastar onde tem mais necessidades", avalia.

"E para isso a gente precisa conhecer os mais ricos — e aí não adianta você também ter uma definição de riqueza que seja só o Neymar, né?"

Autoritarismo mata


Os populistas autoritários destroem a democracia por etapas. O primeiro mandato é dedicado a minar as instituições. Vão aparelhando progressivamente para que no segundo mandato consigam fechar o regime
Marcos Nobre, professor da Unicamp e presidente do Cebrap

País ou sumidouro?

Tem coisas que simplesmente somem no Brasil. Por vezes, inúmeras vezes, são vidas. Ou podem ser dados, ou comida no prato, a verdade, a vergonha e a decência. Pode ser tudo isso e muito mais. Pode também ser o fugitivo costas quentes Allan dos Santos. Evaporado do país para não responder ao inquérito do Supremo Tribunal Federal sobre fake news, o blogueiro se mantém ativíssimo na trincheira virtual bolsonarista. Sumiu apenas fisicamente.


Convém, sobretudo, nunca esquecer os três meninos de Belford Roxo, no Rio, que foram tragados na rua por matadores logo após o Natal do ano passado. Lucas, de 9 anos, Alexandre, de 11, e Fernando, 12, nunca mais foram vistos. Nem sequer seus ossos, inicialmente confundidos com os de animais, foram encontrados. Segundo a investigação policial divulgada nesta semana, o castigo dos moleques havia sido decidido pelo tribunal do tráfico do Morro do Castelar: cabia-lhes uma sessão de tortura por terem surrupiado o passarinho de um morador da vizinhança. Uma das crianças não teria resistido. Morreu de surra. Diante desse incômodo imprevisto, os justiceiros executaram os outros dois moleques.

Este será o primeiro Natal sem as travessuras de Lucas, Alexandre e Fernando, sumidos na endêmica violência nacional. Será, também, o primeiro Natal de 139 milhões de brasileiros plenamente vacinados cujos registros de imunização contra a Covid-19 simplesmente desapareceram na madrugada de sexta-feira. Por obra de hackers que conseguiram invadir o site do Ministério da Saúde, os aplicativos ConecteSUS e o e-SUS Notifica, ambos absolutamente cruciais no momento atual, tornaram-se inacessíveis e inoperantes. O primeiro fornece o Certificado Nacional de Vacinação eletrônico, documento indispensável para quem precisa viajar a trabalho ou lazer fora do Brasil, além de já necessário também dentro das nossas fronteiras. O e-SUS Notifica é a ferramenta usada por estados e municípios para a elaboração diária do mapa nacional da Covid-19. Diante de tamanho apagão, navegava-se às cegas até o fechamento deste texto.

É em momentos assim que a confiabilidade de um governo emerge ou afunda mais ainda. Em seus três anos no poder, o presidente Jair Bolsonaro divulgou uma soma jamais vista de dados deliberadamente falsos — fosse perante a ONU ou em suas lives semanais. O locatário do Alvorada também conseguiu uma mala repleta de absurdos sem lastro factual. Seu método operacional de liderança resume-se a manipular a máquina do Estado a favor da manutenção do poder. Por tudo isso, foi inevitável que surgisse, quase simultaneamente ao ataque cibernético real, uma teoria conspiratória para o crime. O apagão teria sido ação de algum hacker “uberbolsonarista”, dado que sua consequência imediata foi o adiamento por uma semana da detestada entrada em vigor de regras sanitárias para viajantes? Apesar de as regras anunciadas serem mínimas quando comparadas às de outros países, elas atrapalham um pouco o posicionamento antivacina de Bolsonaro e seus seguidores.

A ojeriza palaciana à ideia de um passaporte vacinal obrigatório, que exigiria adequação ao negacionismo oficial do presidente, está no centro do imbróglio. Nada a ver com “liberdade ou morte”, como procurou tonitruar o pedestre ministro da Saúde, Marcelo Queiroga . “Por que vocês estão tão preocupados com esse assunto [o detalhamento das regras sanitárias?…. Vira a agenda, pessoal, vira a agenda…”, bufava um Queiroga de passo apressado, simulando produtividade na véspera do apagão de dados. A estudada impaciência do ministro com a imprensa pretendia arrostar poder — aquele poder que a própria pessoa sabe ser pequeno, e os demais sabem ser covarde.

No dia seguinte, de jaleco do SUS e ombros mais caídos, voltou a ser o titular da pasta falsamente modesto que consegue ser ainda mais desprezível que seu malfadado antecessor. Queiroga tornou-se uma desonra para a sua profissão de médico e avilta à luz do dia suas responsabilidades com a saúde pública. Sendo o Brasil o que é, a política haverá de abrigá-lo em algum escaninho. Para um grande escritor do século passado, Albert Camus, a grandeza de um ser humano está na sua decisão de ir além de sua condição. Outro escritor, Anatole France, ainda mais antigo que Camus, ensinou que só ao envelhecer nos damos conta de que o ato de pensar é a mais rara entre as coragens humanas. Juntando as duas coisas, talvez ainda tenhamos tempo de tirar o Brasil de sua atual condição de sumidouro — e de pensar. Pensar alto e grande.