quarta-feira, 23 de março de 2022

O detentor do poder

Um verdadeiro poder não pode ser construído exclusivamente sobre vitórias fáceis. O terror que ele quer despertar, e no qual está propriamente interessado, depende da massa de vítimas. Todos os conquistadores famosos da história trilharam esse mesmo caminho. 

Posteriormente, foram-lhes atribuídas virtudes de toda espécie. Após séculos, historiadores ainda comparam conscientemente as qualidades de tais conquistadores, para — como acreditam — chegar a um juízo exato sobre eles. A ingenuidade fundamental dessa empreitada é palpável. De fato, estão ainda sob o fascínio de um poder de há muito ultrapassado. Assim, vivendo numa outra época, tornam-se contemporâneos daqueles que nela viveram, e algo do temor que estes sentiam ante a crueldade do poderoso acaba transferindo-se para eles; não sabem, porém, que se entregam a esses poderosos, enquanto observam honestamente os fatos. Soma-se a isso uma motivação mais nobre, da qual não estiveram livres nem mesmo grandes pensadores: é insuportável ter de afirmar que um número de seres humanos — cada um contendo em si o conjunto das possibilidades humanas — foi massacrado em vão, em prol de absolutamente nada; é por isso que então se passa a buscar um sentido para tais massacres.


Como a história prossegue, é sempre fácil encontrar um sentido aparente em sua continuidade: cuidando-se para que tal sentido receba uma certa dignidade. Aqui, porém, a verdade nada tem de dignidade. Ela é tão vergonhosa quanto foi aniquiladora. Trata-se exclusivamente de uma paixão privada do detentor do poder: seu prazer pela sobrevivência cresce com seu poder; este permite-lhe dar rédeas à sua paixão. O verdadeiro conteúdo desse poder é o desejo de sobreviver a massas de seres humanos.

É mais proveitoso para o detentor do poder se suas vítimas são inimigos; de qualquer modo, os amigos produzem resultado semelhante. Em nome de virtudes varonis, exigirá o mais difícil, o impossível, de seus súditos. Não lhe importa que estes sucumbam na execução da tarefa. É capaz de convencê-los de que é uma honra fazê-lo por ele. Através de rapinagens, cujo produto permite-lhes de início desfrutar, ele os ata a si. Servir-se-á então da voz de comando, a qual foi como que talhada para seus objetivos (não podemos, contudo, encetar aqui uma discussão detalhada dessa voz de comando, que é de extrema importância). É assim que, se entende do que faz, fará deles massas belicosas, incutindo-lhes ideias sobre a existência de tantos inimigos perigosos que, por fim, seus seguidores não poderão mais abandonar a massa de guerra que compõem. É claro que não lhes revela sua intenção mais profunda; sabe dissimular muito bem e, para tudo o que ordena, encontra centenas de pretextos convincentes. É possível que se traia, em sua arrogância, no círculo de amigos mais íntimos; mas, se assim for, o fará de forma radical, como fez Mussolini diante de Ciano, ao desdenhosamente chamar seu povo de rebanho, cuja vida, naturalmente, pouco importava.

Mas a real intenção de um verdadeiro detentor do poder é tão grotesca quanto inacreditável: ele quer ser o único. Quer sobreviver a todos, para que ninguém sobreviva a ele. Quer furtar-se à morte a todo custo; assim, não deve haver ninguém, absolutamente ninguém, que possa matá-lo. Jamais se sentirá seguro enquanto homens, quaisquer que sejam, continuarem existindo. Mesmo seu corpo de guarda, que o protege dos inimigos, pode voltar-se contra ele. Não é difícil provar que sempre teme secretamente aqueles a quem dá ordens. Sempre o assalta, também, o medo dos que lhe estão mais próximos.”
Elias Canetti, "A consciência das palavras"

Brasil em 'reconstrução'

 


Amor e guerra

O amor é amplo e claro como a luz do dia. A guerra é o oposto. Ela é nublada e sofre com sua própria nebulosidade, que cega o agressor e o agredido. No entanto, somente nós, humanos, temos guerras de modo que ela deve morar em algum lugar do nosso coração, da nossa alma e da nossa (in)consciência.

Encontramos o par Amor & Guerra logo que tomamos consciência do mundo e, com ela, da vida. A vida tem perfumes e podridão. Tem bondade e maldade. A vida, com seu curso sempre surpreendente, é, por isso mesmo, “vida”: novidade, mudança, repressão, surpresa – aquilo que acontece fora de nós ou que, ao contrário, fazemos de “caso pensado” – de modo cuidadosamente planificado, como nas seduções. Aliás, como disse o dramaturgo inglês do século 16 John Lyly: “All is fair in love and war” (tudo é válido no amor e na guerra).

Não é, pois, por acaso que, no Brasil, damos “cantadas” e mandamos flores para as pessoas que desejamos. Cantar é harmonizar escrita e melodia, o que não é fácil de executar e muito mais difícil de inventar.


Mas a busca da harmonia, da concórdia, da simpatia e da empatia, quando somos levados a nos colocar no lugar do outro, é o chão do “cantar”, que atrai como ocorre com alguns pássaros no cio; ou quando fazemos um elogio enganador para atrair alguém, mas nele se acha um desejo inconfessável...

Saber os resultados de desejos, planos ou interesses é como contar grãos de areia.

Pode levar à comunhão compassiva e prazerosa ou ao seu oposto: o conflito, o aproveitamento do outro e a eliminação física que tipifica a guerra moderna e a sua forma domesticada, o esporte...

No amor, queremos e nos perdemos no outro e pelo outro. Na guerra, nosso plano é destruí-lo e desmoralizá-lo. Tomá-lo como um escravo ou vassalo.

Mas, tal como o amor, na guerra, onde tudo é ruim, vale mais a conquista do que a destruição que nossa generosa modernidade instituiu.

Mas de que adianta vencer arrasando o adversário? Se sou uma potência e desejo anexar um país, um continente ou todo o mundo, o que fazer quando eu ganho a guerra aniquilando um país, numa vitória que implica uma reconstrução irônica do inimigo, que, com a vitória, passa ser coisa minha?

Quando não se guerreia de arco e flecha, mas se atinge barbaramente toda a sociedade, a reconstrução é inevitável. Desse modo, ficamos diante do paradoxo dos aspectos inesperados das ações sociais primorosamente planejadas...

Morrer por uma ideia, por uma visão ou por uma utopia

Perguntaram um dia ao filósofo Bertrand Russell se seria capaz de morrer por uma ideia. Como filósofo cristalino e frontal, que era, respondeu sem hesitar: “Não, porque poderia estar errado.” Irrefutável. Qualquer não fanático, com a mente asseada, sabe que pode sempre estar errado. Só os fanáticos acreditam em “verdades”. Os cientistas e os filósofos, não. Mesmo o mais notável pensador pode estar errado e o mais provável é estar. 

Portanto, se uma ideia pode estar errada, morrer por ela é um rotundo disparate. Mas, se não se deve morrer por uma ideia, muito menos se deve matar por ela. No entanto, é o que mais se tem visto por aí, desde tempos imemoriais. Muitos muçulmanos ainda hoje matam “infiéis”, isto é, gente que não acredita no que eles acreditam, como "verdade". 

Os jihadistas fazem-no com grande profusão e de boa consciência. Esses, ao menos, fazem-no pela medida grande: matam e matam-se, por uma crença, que teria alegadamente sido bichanada por Alá ao ouvido do seu profeta Mahomé. A Igreja Católica fê-lo também, com abundante derramamento de sangue – as cruzadas foram uma ignomínia – e puseram de pé um aparelho repressivo, chamado Inquisição, que torturou e matou, com sinistra eficácia, milhares de seres humanos a quem não fora dada a felicidade de acreditarem no mesmo em que ela acreditava e impunha que se acreditasse. 

Outras religiões, como o comunismo de Staline ou a revolução cultural de Mao fizeram o genocida Hitler quase parecer um menino de coro. Pol Pot, líder do Cambodja, liquidou, a bem da sua “verdade”, 1.5 a 2 milhões de compatriotas (um quarto da população do país). A dissidência tem sido um mau negócio para os que insistem em pensar pela sua cabeça. 

Mais recentemente, apareceu Putine, com a desculpa esfarrapada de que estava a usar apenas uma “missão especial” devido ao desconforto de umas populações russas no sudeste da Ucrânia. A tal “missão especial” tem consistido em destruir um país lindíssimo, dotado de duas belíssimas cidades – Kiev e Odessa - , arrasando prédios de habitação, hospitais, maternidades, armazéns de alimentos e milhares de pessoas, mortas, além de para cima de três milhões desalojadas e exiladas. Um filósofo usando uma lógica simplista, sugeriria que em vez de uma guerra dantesca, ficava mais barato e destruía menos, enviarem os russos, de acordo com os ucranianos, uns transportes que levassem os ditos russos do sudeste da Ucrânia, para se estabelecerem nos vastos espaços desocupados da grande Rússia. 

Mas isto, além de ser demasiado simples, ia obviamente contra o “orgulho” próprio da utopia imperialista de Putine, uma das tais “ideias” pelas quais os tiranos não se importam de mandar matar, aos milhões, e destruir até perder de vista. Eu acho que deve haver, nos habitáculos e labirintos da psiquiatria, um nome, para esta doença de que sofre o actual czar da Rússia. Há quem diga que não, que o rapaz é só muito “determinado”. Chamem-lhe o que quiserem. Uma junta médica não faria mal nenhum ao mundo. Para ele e outros que andam por aí. Há vários e são todos muito desnecessários.
Eugénio Lisboa

Bolsonaro escolhe farda e Bíblia como currículo e cartão de visita

O governo Jair Bolsonaro avança em seu último ano reiterando vícios de origem que foram vendidos na campanha e comprados nas urnas como se virtudes fossem. Nesta semana, dois deles ganharam as manchetes: a contaminação política das Forças Armadas e a disseminação do lobby evangélico para abrir portas e lotear recursos públicos nos ministérios.

Em nenhum desses casos, se pode acusar Bolsonaro de ter escondido o jogo para se eleger. Ele escolheu um general como seu vice em 2018 e afirmou com todas as letras que militares ocupariam vários postos em sua gestão. Também deixou claro que a aproximação com os evangélicos era um projeto político, usando um moralismo reacionário chamado falsamente de conservadorismo como justificativa.

Essas duas frentes seguem como pilares importantes do projeto reeleitoral. A antecipação de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, será o vice no lugar de Hamilton Mourão é o ápice de um movimento de infiltração de ideias, práticas e projetos políticos no papel das Forças Armadas determinado pela Constituição.


Diferentemente de Mourão, que estava fora do núcleo decisório de poder quando foi escolhido por Bolsonaro para acompanhá-lo na chapa, Braga Netto é o titular da Defesa. Foi designado para o posto numa inédita troca simultânea do ministro e dos três comandantes das Forças, porque a banda não estava tocando conforme Bolsonaro gostaria.

E, no posto, imediatamente se pôs a fazer coro aos questionamentos do presidente quanto à lisura das eleições e a confiabilidade das urnas eletrônicas. Com um general com esse perfil na Vice, qual será o comportamento das Forças Armadas durante o pleito e, principalmente, diante do resultado, caso ele seja negativo para Bolsonaro e Braga Netto?

É uma conjectura? Sim. Mas não é desprovida de histórico factual. Além dessa movimentação descrita, é necessário lembrar que, já no curso da campanha de 2018, o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, tuitou às vésperas de o STF analisar um habeas corpus de Lula que a instituição compartilhava com a sociedade a indignação ante a corrupção, ato visto como tentativa de intimidar os ministros da Corte.

A tomada do Ministério da Educação por lobistas munidos de Bíblia evidencia que o apoio a Bolsonaro de algumas denominações evangélicas com grande trânsito político não se diferencia, nos métodos e objetivos, daquele empenhado pelo Centrão. Ele se dá mediante a captura de lautas fatias do Orçamento da União por grupos de influência ligados ao presidente, citado diretamente pelo ministro da pasta como tendo ordenado a prioridade aos amigos do pastor.

O desmonte do MEC, submetido, desde o dia 1 da era Bolsonaro, a toda sorte de narrativa ideológica, combinada à nomeação de pessoas absolutamente desqualificadas para o exercício da função pública, será um dos legados mais perniciosos deste governo. E olha que se trata de uma concorrência assustadoramente alta.

Sob a quimera de combater falsos problemas como “ideologia de gênero”, atacando instituições como as universidades federais e sucateando processos e métricas como o Enem, a inacreditável trinca Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub e Milton Ribeiro entregará ao término deste mandato uma Educação não apenas profundamente atingida pela pandemia, mas corroída pela corrupção — não existe outra palavra para o mercado persa da fé promovido por Ribeiro com pastores ligados a Bolsonaro — e pelo proselitismo religioso e ideológico.

Nesse cenário, não causa espanto que expoentes do falso conservadorismo, como a ministra Damares Alves e o deputado Marco Feliciano, tenham se chocado tanto com a cena de um filme de ficção de 2017, mas não tenham dado um pio sobre o orçamento secreto para pastores no MEC.

Ouro da Educação reluz como o de Moscou para reeleger Bolsonaro

Deu em alguma coisa o caso da rachadinha da primeira família presidencial do Brasil? Ficar com parte do salário de funcionários fantasmas ou na ativa foi recurso usado por Bolsonaro e pelo menos por dois dos seus filhos para enriquecerem.

Deu em alguma coisa a denúncia pelo Ministério Público do ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio sob a acusação de envolvimento com candidaturas de araque do PSL? Marcelo foi um dos que socorreram Bolsonaro depois da facada.

E a revelação de irregularidades num contrato de R$ 1,61 bilhão, destinado à compra da vacina indiana Covaxin contra a Covid-19, deu em alguma coisa? O caso envolveu militares empregados no Ministério da Saúde. Bolsonaro soube antes e fechou os olhos.

Por que dará em alguma coisa o escândalo do momento estrelado por pastores evangélicos, o ministro da Educação e o próprio Bolsonaro? A pedido de Bolsonaro, segundo o ministro, os pastores intermediaram a liberação de verbas públicas.


No Palácio do Planalto funciona o Gabinete do Ódio, estrutura paralela de poder que fabrica notícias falsas e cuida da imagem do presidente; sua face mais conhecida é a do vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, que fala pelo pai e o pai por ele.

No Ministério da Saúde, à época do general Eduardo (“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”) Pazuello, funcionou o Gabinete dos Pequenos e Grandes Negócios, estrutura igualmente paralela. O general será candidato a deputado federal pelo Rio.

Dos governos do PT, diz-se que aparelharam a máquina do Estado – daí o mensalão e o petrolão, por exemplo. Não é o que fizeram Bolsonaro e sua gangue nos últimos três anos? Com a diferença de que o PT foi punido, Bolsonaro e sua gangue estão a salvo.

Com a diferença também que nunca antes na história do Brasil o aparelhamento da máquina do Estado promovido por um presidente foi tão gigantesca como é agora. Se Bolsonaro aprendeu alguma coisa com o PT, o PT teria muito mais a aprender com ele.

Os órgãos de controle do Estado viraram puxadinhos do Palácio do Planalto onde Bolsonaro despacha – Procuradoria Geral da República, Advocacia Geral da União, Ministério da Justiça, Tribunal de Contas da União, Polícia Federal.

Na Agência Brasileira de Inteligência, encarregada da espionagem oficial e clandestina, Bolsonaro pôs um delegado que cuidou da sua e da segurança pessoal dos seus familiares depois da facada. Quis pô-lo no comando da Polícia Federal, mas foi barrado pela Justiça.

O que aconteceu no Ministério da Educação configura crimes de improbidade administrativa e tráfico de influência; eles carregam as digitais do ministro pastor e do presidente da República que, ontem, voltou a dizer que seu governo não é corrupto. Só é.

Por muito, muito, muito menos, com base na gravação truncada de uma conversa, o então presidente Michel Temer foi denunciado duas vezes pela Procuradoria Geral da República. Escapou de ser cassado graças ao Centrão, mas não de ser preso mais tarde.

O Centrão está aí para salvar Bolsonaro se fosse preciso, mas não será; ele apenas cobrará mais caro para continuar apoiando-o. O Orçamento Secreto existe para isso. A sociedade civil inerte, e a militar cooptada, fazem o resto.