segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Pensamento do Dia


Democracia como círculo vicioso desonesto

Não estamos em condições de nos salvar a nós próprios, sobre isso não restam dúvidas. Falamos em democracia, mas ela é apenas a expressão política para um estado de espírito caracterizado pelo "Pode ser assim, mas também de outro modo". Vivemos na época do boletim de voto. Até votamos todos os anos no nosso ideal sexual, a rainha da beleza, e o fato de termos transformado a ciência no nosso ideal intelectual não significa mais do que pôr na mão dos chamados fatos um boletim de voto, para que eles escolham por nós.

Este tempo é antifilosófico e covarde: não tem coragem para decidir o que tem ou não tem valor, e a democracia, reduzida à sua expressão mais simples, significa: Fazer aquilo que acontece! Diga-se de passagem que é um dos mais desonestos círculos viciosos que alguma vez existiu na história da nossa raça
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"

O povo contra a democracia

A tendência já tem mais de uma década e pode ser captada estatisticamente. Em janeiro, a “The Economist” publicou um gráfico perturbador que expressa, em números, o declínio global da democracia. De 167 países classificados num espectro que se estende das democracias plenas até regimes autoritários, passando por democracias precárias e regimes híbridos, 89 experimentaram retrocessos. Só 5% da população mundial vivem sob democracias plenas, enquanto um terço habita em países autoritários. A maioria situa-se em pontos intermediários. O recuo rumo ao polo ditatorial decorre menos de golpes de força que da degeneração interna de sistemas políticos mais ou menos democráticos.


Na sua monumental “The History of Government”, S. E. Finer sintetiza os quatro tipos básicos de entidades políticas (Palácio, Fórum, Igreja e Aristocracia) e estabelece as suas potenciais interações. O Fórum é o sistema fundado na autoridade conferida pelos de baixo, que deve ser incessantemente renovada. Mas ele vive sob o risco permanente de se converter em Palácio, ou seja, no sistema que concentra a autoridade num soberano individual (imperador, rei, príncipe ou ditador). A transição acontece quando o governante alçado pelo povo consegue se desvencilhar do controle efetivo dos governados, perenizando-se no poder. É esse o mecanismo principal que, atualmente, provoca o declínio global da democracia.

Há dez anos, Larry Diamond alertou para a “recessão democrática”. As democracias precisam responder às necessidades dos cidadãos, se querem sobreviver, explicou. Numa linha paralela, William Galston registrou que, “para alguns”, a democracia liberal “pode ser intrinsecamente boa”, mas “para muitos, é apenas um meio para uma vida próspera, pacífica e segura”. No pós-guerra, por mais de meio século, os governos democráticos do Ocidente mantiveram-se fortes pois cumpriram o contrato implícito de atender a essas demandas. O recuo em curso, nos EUA e na Europa, decorre da quebra desse contrato.

Giovanni Sartori não se deixou impressionar pelo hino do “fim da História” entoado nos anos 90. Diante dos seus acordes, argumentava que, após o desaparecimento do “inimigo externo” (o totalitarismo), as democracias enfrentariam um “inimigo interno”, que opera sinuosamente, sem contestar o princípio da vontade majoritária como fonte de legitimidade do poder. O nome do “inimigo interno” é populismo, conceito mínimo que não descreve uma ideologia, mas um estilo político: “o populismo venera o povo” (Ghita Ionescu).

Pela direita ou pela esquerda, os governantes populistas nascem de eleições livres, mas apelam à democracia para desmontá-la por dentro, vandalizando as mediações institucionais que asseguram o controle do poder pelos cidadãos. A “revolta contra as elites” assume formas diversas, mas aperta teclas compartilhadas. Trump manobra para erradicar as investigações judiciais sobre seus atos, enquanto se refere aos jornalistas como “inimigos do povo”. Na Polônia, sob o líder de facto Jaroslaw Kaczynski, e na Hungria, sob Viktor Orbán, governos populistas tentam submeter os tribunais à vontade dos Executivos. Na Turquia, Erdogan colocou os tribunais a seu serviço e, às custas de perseguições judiciais, destruiu a liberdade de imprensa.

O caso clássico é a Venezuela chavista. Chávez consolidou-se no poder por meio de sucessivas eleições e plebiscitos. No percurso, ao longo dos anos de elevada popularidade, sujeitou juízes e órgãos eleitorais às conveniências do regime “bolivariano”. Maduro completou a trajetória, instalando a ditadura em meio ao colapso econômico e social. Contudo, mesmo na etapa final, marcada pela virtual abolição da Assembleia Nacional, apelou ao “povo”, produzindo o simulacro de uma Assembleia Constituinte eleita exclusivamente por seus seguidores.

“Saberá a democracia resistir à democracia?”, indagou Sartori num de seus últimos livros. A questão não é retórica — nem alheia a nós. Da denúncia do “golpe parlamentar” (lulismo) ao chamado de um levante contra tudo e todos (Bolsonaro), a demagogia populista impregna a corrida eleitoral. O perigo real não está nos populistas, mas na carência de vozes democráticas dispostas a confrontá-los.
Demétrio Magnoli

Duelo ao entardecer

"Satanás, pegue tudo o que é seu e deixe esta nação.” Esta frase do Cabo Daciolo diante da fogueira era apenas um lembrete de que estas eleições parecem um sonho dentro de sonhos.

Posso imaginar o Satanás, posso vê-lo retirando seus pertences como um passageiro após a aterrissagem. Não consigo imaginar o que Satanás tem de carregar, esse tudo o que é seu.

Não tenho tempo para divagar sobre isso. Prefiro esperar a saída dele e, ao me dar conta das coisas que estão faltando, possa concluir que foram levadas por Satanás.

Outro dia, algumas pessoas me xingavam na rede. E não eram as mesmas de sempre. Descobri que foi um delírio do Ciro Gomes.

Numa entrevista a um repórter de esquerda, ele confessou que salvou Lula do mensalão e que para isso falou com várias pessoas. Eu, inclusive. Nunca houve essa conversa. Trabalhava na CPI dos Sanguessugas, que, aliás, foi bastante dura. Ciro contou essa história para impressionar o PT. Já foi punido porque o PT lançou Haddad.

E as pessoas que me xingaram, essas também estão perdoadas porque carregam o fardo cognitivo de acreditar em bravatas de campanha.


Vamos à realidade que também parece um sonho: as pesquisas apontam para um duelo entre dois líderes populares, um na cadeia, outro, no hospital.

Claro que o duelo entre os dois envolve visões diferentes de mundo, conflitantes realidades. Eles apenas encarnam fortes correntes na sociedade

Tanto Lula quanto Bolsonaro, além de suas personalidades, representam também o êxito da comunicação verbal, com seus encantos e defeitos.

São nomes falados em todo o território nacional. Escapam do círculo relativamente pequeno do universo político e se entendem com quem querem se entender.

Às vezes, um milionário, estimulado por marqueteiros, faz uma investida, mas descobre logo que o mar é imenso, quantos não morrem alguns metros além da praia? Ao que tudo indica, os dois personagens encarnam multidões, ávidas por mudanças e pela continuidade.

Depois de anos de dominação da esquerda, a grande interrogação do processo é saber se continua ou dá lugar às forças de oposição que cresceram no combate ao governo petista.

Isso me parece a realidade. Mas, como o processo é imprevisível, o fato de se encarnar em duas pessoas aumenta sua imprevisibilidade.

Tenho a impressão de que essas grandes tendências se movem de uma forma tão autônoma que não vejo espaço para a ação individual detê-la, embora ache que os candidatos devam continuar lutando, os eleitores votando no que acharem o melhor etc.

Mas, por via das dúvidas, creio que o mais prudente é se preparar para uma nova realidade, onde uma dessas forças será a vencedora.

Em termos eleitorais, os moderados foram engolidos pela onda. Isso não significa que não terão importância no futuro. Apesar de tudo, a moderação é a única força capaz de empurrar os vencedores para a ideia de um projeto nacional mais abrangente, superar o clima nostálgico de Guerra Fria que envolve os contendores.

Apesar dos excelentes livros sobre o declínio da democracia, esse enredo foi vivido intensamente no Brasil. O Congresso, de baixo nível, tende a não se renovar. O Supremo se desgastou ao vivo e a cores.

Cabo Daciolo convida para uma luta contra principados e potentados. Adoraria estar junto, mas dificilmente terei tempo na vida real.

O cenário que se desenha não é o melhor para um grande projeto de reconstrução. No entanto, precisamos sair dessa maré. De qualquer forma, a nova conjuntura vai inspirar cuidado. Esta palavra é sempre associada aos mais velhos.

De fato, na juventude, cuidado não era assim tão valorizado. Pura irresponsabilidade? Parcialmente, por acreditar na destruição construtiva, uma vontade de virar a mesa.

Assim como Satanás, segundo o Cabo Daciolo, tem que preparar suas coisas e deixar a nação, fico me perguntando que coisas tenho de juntar para a fase que se aproxima.

Uma delas, certamente, é saber que, apesar de sua decadência, não podemos passar sem a democracia, que, por sua vez, precisa evoluir.

A realidade está aí. É possível se perguntar onde tudo começou, dizer “bem que avisei”, buscar os culpados. Suspeito que não nos dará tempo para divagações. Em outras palavras: apertar os cintos.
Fernando Gabeira