terça-feira, 6 de outubro de 2020

Novo Brasil

 


Nem Salvador Dalí daria conta do Brasil de 2020

Ao longo dos meus quase 60 anos de vida, 32 dos quais vivendo mundo afora, eu frequentemente me encontrei tentando explicar a amigos e cientistas de outros países alguns dos mais escabrosos eventos transcorridos na história recente do nosso querido patropi, bem como a inaudita reação dos brasileiros a cada um destes acontecimentos tenebrosos da vida nacional. A lista destes descalabros verde-amarelos, e dos meus correspondentes insucesso em explicá-los, é longa e, como dizia a minha professora de português favorita, “epicamente trágica e, como tal, praticamente inenarrável”. 

E apesar desta minha prática constante, nada nem ninguém poderia ter me preparado para o Brasil de 2020. Como que querendo superar a qualquer custo as mais mirabolantes narrativas do realismo mágico de Miguel Astúrias e Gabriel Garcia Márquez, o Brasil de 2020 ultrapassou, por alguns milhões de anos luz, qualquer limite humanamente aceitável do surreal. A tal ponto de que mesmo Salvador Dalí, progenitor-mor do surrealismo, hesitaria em fixar residência neste que um dia foi o paraíso sem fim dos Tupiniquins, Tupy-guaranis, Tapuais e Tupinambás. 

Acreditem-me, Dalí não daria conta de testemunhar o que transcorreu nesta sofrida Terras Brasilis ao longo destes recém completados nove meses de uma gestação simplesmente infernal. Não bastasse o descalabro no manejo da maior pandemia a assolar o planeta em um século, que gerou a maior perda de vidas relacionadas a um único evento em toda a história da República ― e da Monarquia também, salvo a eterna chaga da escravidão e do genocídio indígena pelos colonizadores europeus ―, a propaganda criminosa do suposto milagre de Nossa Senhora da Cloroquina, a tentativa de maquiar ou esconder os dados que demonstravam o tamanho da nossa presente catástrofe sanitária, o Brasil de 2020, literal e metaforicamente, se transformou num enorme incêndio fora de controle. Avassalador e sem limite, gerado pela ganância infinita e sem nexo e que já ameaça conduzir o país, em alguns outros poucos meses, às cinzas de um passado calcinado e estéril de onde nenhuma Fênix - ou qualquer tipo de futuro digno e soberano - será capaz de emergir. 

E no meio deste pandemônio de sinistros confeccionados diuturnamente, tanto por labaredas naturais, como pelas chamas institucionalizadas do desgoverno, enquanto mil brasileiros e brasileiras morrem diariamente e aproximadamente 20% do Pantanal ― e uma fração não menos pornográfica da Amazônia ― ardem em chamas que nem Dante ousou evocar, para o espanto e revolta de todo o mundo, joga-se futebol em meio a uma pandemia fora de controle, lota-se praias e bares e, para todos os fins e propósitos, dá-se um proverbial chute nos fundilhos do dia de amanhã, em troca do sibilante e inebriante chamado de Circe em prol do prazer imediato. 

Trocando em miúdos, no Brasil de 2020, nestes trópicos que infelizmente voltaram a ser tão tristes, o hedonismo, em todas as suas manifestações e mutações mais perversas, definitivamente triunfou, até mesmo sobre o mais primitivo instinto de sobrevivência. Assim, regido pelo mantra dominante deste mundo, tão pós-moderno quanto raso, que caminha a passos largos para o anti-clímax máximo da sua própria destruição, um grande número dos habitantes de Pindorama, finalmente, faz parte de alguma vanguarda: os primeiros desbravadores a darem as mãos e sorridentes, como parte de uma brainet mais do que coesa, saltarem rumo ao fundo do abismo, sem esquecer, evidentemente, de no percurso, agradecer aos céus pela dádiva de serem os pioneiros, deste derradeiro auto da fé, desta sua não tão sapiens irmandade. 

O fundo dos fundos

Bem me importam a mim as tragédias e as mortes!...Interesses, ambição, medo, tantos fantasmas que nem eu supunha existir e que levantam a cabeça!

Não há nada que chegue a estes momentos históricos em que o fundo dos fundos se agita e remexe, para cada um se avaliar e saber o que vale uma alma

Raul Brandão, "Memórias"

De corpo e alma

Nada mais exemplar do establishment que Bolsonaro prometeu destruir do que a reunião promovida pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal em sua casa em Brasília nesse domingo. O almoço, que em qualquer país civilizado provocaria escândalo, começou às 14 horas e foi até a noite, com futebol e pizza. A fauna brasiliense presente ia de advogados que atuam no Supremo, políticos de vários matizes, presidente do TCU e, por último, mas não menos importante, o presidente da República em pessoa, que está sendo investigado pelo STF. 

Bolsonaro tenta separar o corpo da alma, pelo menos finge querer. De um lado, entendeu que precisa de acordos políticos e aproximações com o Congresso e o STF; e de outro, enfrenta os radicais que querem afrontar o Congresso e o STF, na batida do início do governo, o que não é possível numa democracia.  

Bolsonaro entendeu que por esse caminho ia acabar sofrendo impeachment, porque não há possibilidade de governar em guerra com o Congresso e o STF. E a guerra com os dois outros poderes pressupõe uma visão democrática deformada. Os três poderes são equivalentes, e é preciso obter uma posição majoritária através de negociações. 


Como só sabe fazer a baixa política, do toma lá, dá cá, que viveu durante os 30 anos como parlamentar do baixo clero, e prometeu acabar quando Presidente, aproximou-se da ala mais conservadora do STF e do Centrão, que sempre está com todos os governos em troca de favores, poder, emprego.  

Atacado por seus próprios aliados nas redes sociais, acusado de ter feito acordo com o diabo, ou seja, a esquerda, Bolsonaro tenta se defender como se sua alma estivesse onde sempre esteve, junto aos radicais da extrema-direita, enquanto seu corpo circula pelos bastidores do establishment “porque tenho que governar”. 

A indicação do desembargador Kassio Marques, escolhido por Dilma Rousseff para o TRF-1, e a amizade repentina com Dias Toffoli, ex-advogado do PT, mostram para seus radicais uma promiscuidade inaceitável, embora aceitem sem grandes protestos os acordos políticos com o Centrão, que significam abandonar definitivamente o combate à corrupção. 

Toffoli à frente do Supremo, cargo que deixou recentemente, marcou sua gestão pela proximidade com o presidente Bolsonaro, com quem assinou um pacto político totalmente inadequado. Os então presidentes do STF Nelson Jobim e Gilmar Mendes firmaram pactos republicanos com os poderes Executivo e Legislativo, mas com o objetivo de tornar a Justiça brasileira mais eficiente. 

Nada semelhante ao pacto firmado por Dias Toffoli, à frente do Supremo, com o objetivo de apoiar as reformas que tramitam no Congresso, sobretudo a Previdenciária, que estava em discussão naquele momento. Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pelas reformas. O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar. 

Aliás, foi o que disse o novo presidente do Supremo, ministro Luis Fux, ontem em uma palestra. Fux ficou de fora dos convescotes de Brasília desde o primeiro dia em que o desembargador Kassio Marques foi com Bolsonaro à casa de Gilmar Mendes ser oficializado como o candidato a substituir Celso de Mello.  

Ao assumir o cargo, disse que o Supremo terá “autoridade e dignidade” fortalecidas, e advertiu que a harmonia entre Poderes “não se confunde com subserviência”. A relação de Fux com o presidente Bolsonaro começou marcada pela liturgia do cargo, o que só fará bem à democracia brasileira. 

O abraço fraternal dado em Bolsonaro não seria mais apertado em Lula, antigo mentor de Toffoli que, cedo, descobriu que tem mais anos pela frente de Supremo do que Lula de expectativa de poder.
Merval Pereria

Vai para cima dele, Celso de Mello, enquanto o Kassio não vem

Imagine você se Donald Trump tivesse ido jantar na casa de Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, acompanhado de Amy Coney Barrett, antes de indicá-la formalmente para o tribunal, do presidente pro tempore do Senado americano, Chuck Grassley, e da secretária de Imprensa, Kayley McEnany. No jantar hipotético, também estaria presente outro juiz da Suprema Corte, como John Roberts. Mais uma exercício de imaginação: depois de ser indicada, a juíza foi almoçar na casa de Roberts, onde mais tarde o presidente foi recebido com um abraço fraternal pelo anfitrião. Grassley também apareceu por lá. O encontro foi tão gostoso que se estendeu até a hora do jantar. Se você acha que seria um escândalo de proporções tectônicas, acertou. Estimo que Barrett seria reprovada na sabatina do Senado, se é que Trump conseguiria manter a indicação. A separação dos poderes nos Estados Unidos é coisa séria demais para começar com costelão e terminar em pizza.


No Brasil, porém, a avacalhação institucional de Executivo, Legislativo e Judiciário é tamanha, nunca foi tão grande, que houve apenas um suspiro de indignação em Brasília com a notícia dos convescotes de Jair Bolsonaro e Kassio “100% alinhado” Marques com Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Davi Alcolumbre e demais convivas. Tudo passou a ser do jogo, o que equivale a dizer que não existem regras para o jogo: ministro do Supremo pode dar festa de aniversário para réu de processo que ele está julgando, presidente do Senado pode tentar reeleger-se contrariando o regimento, parlamentar pode ficar impune por roubar em votação, presidente da República pode receber lobista que chega secretamente ao Palácio do Alvorada de jet ski – e nada tem consequências, além de gente como eu resmungando na imprensa.

Se você que tem outra profissão e pode deixar de ler o noticiário de vez em quando está cansado, imagine eu, que não tenho outra profissão. Sou obrigado a falar de uma gente que certamente não convidaria para tomar um café, muito menos almoçar ou jantar. São muitos ossos para pouco ofício.

Sobre heróis e bandidos

A morte pode ser um passo necessário para eternizar alguém como santo, mas “quase morrer” é o caminho mais seguro para se tornar herói. Os exemplos são numerosos e começam milhares de anos atrás. É só deixar o ceticismo de lado e aceitar textos religiosos como verdades estabelecidas. Querem ver?

Vejam o caso de Moisés. Conta-se que ele nasceu em lar judaico, teve sua vida ameaçada, foi colocado em um cesto e largado na correnteza do rio, foi levado pelas águas e salvo por uma serva da princesa do Egito, e acabou sendo criado como filho do faraó. Dizem também que, ao dar-se conta de sua origem, preferiu ser fiel a seu povo, abrindo mão dos privilégios que teria na terra das pirâmides. Liderou seu povo contra o próprio faraó, peregrinou pelo deserto por quarenta anos, recebeu as tábuas da lei, morreu ao avistar a Terra Prometida. É considerado o fundador do judaísmo, o maior dos judeus e um grande profeta, tanto para cristãos, quanto para muçulmanos.

Quem se der ao trabalho de consultar os mitos de origem mesopotâmicos (região que fica entre o Tigre e o Eufrates, mais ou menos no atual Iraque) vai encontrar várias histórias semelhantes, como a de Sargão, rei de Agade, cuja mãe “me colocou numa cesta de junco, com betume, ela selou milha tampa, ela me jogou no rio que não me cobriu, o rio me conduziu e me levou até Akki, o tirador de água&”, etc. A lenda de Rômulo e Remo também inclui o risco de vida para os gêmeos fundadores de Roma. Quando recém-nascidos, foram colocados no Tibre, como podemos ler em narrativa um tanto irônica de Tito Lívio. A infância cheia de riscos atinge até a figura de Jesus, que é carregado por sua mãe e por José em sua fuga, segundo nos é narrado nos catecismos. O fato de ter conseguido se salvar, milagrosamente, de morte provável, quase certa, pretende indicar a ligação que o herói tem com a divindade, a estreita relação que o mito tem com seu deus. A ideia de quem escreveu é mostrar que, desde criança, ele tinha sido escolhido, o que significa que já era diferente dos demais, especial, selecionado para viver e ser o responsável por grandes feitos.


O herói que correu risco de vida é um clássico. Além da literatura religiosa, ele frequenta as sagas de diferentes povos, dos escandinavos aos indígenas americanos. Pode ser encontrado até nos antigos seriados americanos. Quem não conhece super-heróis, super-homens que, antes de mostrar a que vieram, quase perderem a vida, prematuramente? São seres que superaram adversidades, não qualquer adversidade, mas ameaças graves, ódio de gente poderosa que, mesmo dispondo de enorme arsenal, não conseguem abater o herói, uma vez que ele é o protegido dos deuses (ou de um deus só, aí depende da religião). Mas nas narrativas, para ser mito, o futuro herói deve preencher outros quesitos. O principal deles, na definição do meu neto, é que ele precisa ser “do bem”. Mesmo sendo primário, grosseiro, vingativo, violento, até cruel, se é mocinho, é “do bem”. Em faroestes clássicos era aquele que montava cavalos claros, usava roupas claras. Nas antigas matinês do Cine Lider, em Sorocaba, qualquer criança (eu também, é claro) distinguia assim entre o escolhido dos deuses e os bandidos. Estes eram vaiados inapelavelmente desde sua primeira aparição, enquanto os heróis eram ovacionados. Eles escapavam de todos os perigos, porque eram os mitos, os mocinhos.

O herói sofreu um atentado? Ele é forte, vai se recuperar. Pegou a doença que apavora o mundo e já matou mais de um milhão de pessoas? Ele tem a benção dos deuses, vai dar dois espirros e dar o assunto por encerrado. "Máscara é coisa de fracos". Dinheiro estranho tem aparecido em conta de familiares? “Ora, ora, quem foi o bandido que fez esse depósito, só para tentar envolver um homem tão reto”? A Amazônia e o Pantanal estão queimando? “Esses índios não deixarão nenhuma árvore em pé”.

Sem entender de política internacional, nosso herói nos defende na ONU. Sem falar uma palavra de inglês, tornou-se o melhor amigo do presidente americano. O mundo mais uma vez se curvou diante do Brasil. O mito driblou a morte, está firme e forte no seu posto para nos defender de todos os perigos.

Como os ingênuos meninos do Cine Lider, tem gente que aplaude: “É o mito, o favorito dos deuses”.

O mesmo neto inteligente mais uma vez se manifesta: “só que não, vovô, só que não”.
Jaime Pinsky