segunda-feira, 10 de março de 2025
Uma nova ordem mundial
A questão é instigante: para onde se encaminhará o planeta nos próximos tempos? Que fenômenos balizarão seus rumos? Que entidades e valores permearão os sistemas políticos? Afinal, quais são os contornos e os eixos de uma Nova Ordem Mundial que começa a ganhar feição, a partir dos movimentos, formas de operação nos processos administrativos das Nações e no próprio sistema político?
Ao analista, impõe-se o dever de examinar o conjunto de hipóteses embutidas nas indagações acima, mesmo sabendo que a tarefa, se realizada no ambiente da Academia, abrigaria densas teses universitárias. Sob a sombra dessa observação, de caráter restritivo, tentarei avaliar o desdobramento dos feitos que se operam nos quadrantes do planeta e que servem de alicerce à edificação dos pilares de uma Nova Democracia , cujos sinais são bastante visíveis no horizonte do amanhã.
O norte que guiará essa modesta análise é a mudança que ocorre no seio da maior democracia ocidental, os EUA. Seu governante, que tomou posse no dia 20 de janeiro passado, em dois meses de administração, assinou, com sua emblemática caneta de ponta grossa (que mais parece um elemento de marketing, por conta da assinatura de decretos exibidos para as Câmeras de TV), o maior acervo de decretos e ordens executivas de que se tem conhecimento na história daquela Nação. Donald Trump, com seu modo abrupto e intempestivo, mais parece um ditador do mundo.
Dito isto, vamos ao conjunto de movimentos/hipóteses que constituem o pano de fundo de uma Nova Ordem Mundial em construção, que se torna crível a partir da ruptura proporcionada pelo modo Trump de governar:
Guerra comercial – O mundo entra, de espada em riste, na arena das tarifas e impostos, a partir da decisão do presidente norte-americano, de elevar o patamar das receitas do Estado. China, Canadá e México são os primeiros três países a reagir aos impactos causados pelo tufão tarifário dos EUA. Outros, entre os quais, o Brasil, se preparam para entrar na liça.
Maiores barreiras protecionistas – A guerra comercial é deflagrada com o argumento de que ela significa a defesa do mercado interno. Seu guerreiro maior é Mr. Trump, cujo discurso tem como foco o fortalecimento do parque produtivo americano. Ocorre que o tarifaço imposto aos parceiros (amigos e inimigos) pode produzir efeito contrário ao esperado, eis que a elevação de custos de produtos alimentícios e commodities certamente impactará e irritará os consumidores. A inflação tenderá a subir.
Globalização perde força – A globalização recua, ao mesmo tempo em que se expande o nacionalismo. Os países fecham fronteiras, levantam bandeiras nacionalistas, e os governos tiram do baú velhos símbolos do populismo, como o fomento de programas assistencialistas, os discursos de exaltação da grandeza de seus territórios (Make America Great Again- MAGA).
Curva à direita – No arco ideológico, é visível o declínio dos partidos de esquerda, alguns soterrados pela avalanche de votos e vitórias obtidas pela direita (moderada e radical). Na Europa, Itália, Alemanha, França e até os países nórdicos são exemplos da inclinação à direita. A social-democracia, sentada no meio do arco ideológico, perde força. Nos EUA, o trumpismo é uma eloquente demonstração de compromisso com valores conservadores da direita.
Pluralismo e diversidade (social, étnica, gêneros) perdem referência nas malhas administrativas; o fomento à meritocracia ganha força- Para dar vazão ao conservadorismo, os governos extinguem ou atenuam a presença de grupos minoritários no desenho institucional, com prejuízo de grupos étnicos/raciais e representações do LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pan, Não-binárias e mais). O machismo, velho fenômeno cultural, ganha terreno. O mérito passa ser o óleo lubrificador das administrações.
Movimentos migratórios em declínio – O fechamento de fronteiras nacionais, o impulso do nacionalismo e expansão do conservadorismo constroem barreiras para barrar a entrada de imigrantes. Muralhas de contenção de imigrantes voltarão a ser construídas, aumentando a tensão nas fronteiras. O México torna-se o maior vilão das levas migratórias.
Nova carta de valores e princípios – soberania, autoestima, direitos humanos- O planeta começa a conviver com uma Nova Ordem. Que altera conceitos, impõe novas regras, muda visões de mundo, reposicionando a escala de valores. Os direitos humanos passam a ser mais vilipendiados. A soberania será sempre um tema recorrente das Grandes Nações e um mero verbete no dicionário de territórios sem poder econômico e militar. A autoestima estará sujeita aos humores da economia.
Ondas de pânico, violência e medo se multiplicarão. Avanços tecnológicos poderão alcançar a meta de humanizar as máquinas. Disputas e ameaças emergirão com maior intensidade, sob o império de uma Nova Guerra Fria.
A conferir.
Ao analista, impõe-se o dever de examinar o conjunto de hipóteses embutidas nas indagações acima, mesmo sabendo que a tarefa, se realizada no ambiente da Academia, abrigaria densas teses universitárias. Sob a sombra dessa observação, de caráter restritivo, tentarei avaliar o desdobramento dos feitos que se operam nos quadrantes do planeta e que servem de alicerce à edificação dos pilares de uma Nova Democracia , cujos sinais são bastante visíveis no horizonte do amanhã.
O norte que guiará essa modesta análise é a mudança que ocorre no seio da maior democracia ocidental, os EUA. Seu governante, que tomou posse no dia 20 de janeiro passado, em dois meses de administração, assinou, com sua emblemática caneta de ponta grossa (que mais parece um elemento de marketing, por conta da assinatura de decretos exibidos para as Câmeras de TV), o maior acervo de decretos e ordens executivas de que se tem conhecimento na história daquela Nação. Donald Trump, com seu modo abrupto e intempestivo, mais parece um ditador do mundo.
Dito isto, vamos ao conjunto de movimentos/hipóteses que constituem o pano de fundo de uma Nova Ordem Mundial em construção, que se torna crível a partir da ruptura proporcionada pelo modo Trump de governar:
Guerra comercial – O mundo entra, de espada em riste, na arena das tarifas e impostos, a partir da decisão do presidente norte-americano, de elevar o patamar das receitas do Estado. China, Canadá e México são os primeiros três países a reagir aos impactos causados pelo tufão tarifário dos EUA. Outros, entre os quais, o Brasil, se preparam para entrar na liça.
Maiores barreiras protecionistas – A guerra comercial é deflagrada com o argumento de que ela significa a defesa do mercado interno. Seu guerreiro maior é Mr. Trump, cujo discurso tem como foco o fortalecimento do parque produtivo americano. Ocorre que o tarifaço imposto aos parceiros (amigos e inimigos) pode produzir efeito contrário ao esperado, eis que a elevação de custos de produtos alimentícios e commodities certamente impactará e irritará os consumidores. A inflação tenderá a subir.
Globalização perde força – A globalização recua, ao mesmo tempo em que se expande o nacionalismo. Os países fecham fronteiras, levantam bandeiras nacionalistas, e os governos tiram do baú velhos símbolos do populismo, como o fomento de programas assistencialistas, os discursos de exaltação da grandeza de seus territórios (Make America Great Again- MAGA).
Curva à direita – No arco ideológico, é visível o declínio dos partidos de esquerda, alguns soterrados pela avalanche de votos e vitórias obtidas pela direita (moderada e radical). Na Europa, Itália, Alemanha, França e até os países nórdicos são exemplos da inclinação à direita. A social-democracia, sentada no meio do arco ideológico, perde força. Nos EUA, o trumpismo é uma eloquente demonstração de compromisso com valores conservadores da direita.
Pluralismo e diversidade (social, étnica, gêneros) perdem referência nas malhas administrativas; o fomento à meritocracia ganha força- Para dar vazão ao conservadorismo, os governos extinguem ou atenuam a presença de grupos minoritários no desenho institucional, com prejuízo de grupos étnicos/raciais e representações do LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais, Pan, Não-binárias e mais). O machismo, velho fenômeno cultural, ganha terreno. O mérito passa ser o óleo lubrificador das administrações.
Movimentos migratórios em declínio – O fechamento de fronteiras nacionais, o impulso do nacionalismo e expansão do conservadorismo constroem barreiras para barrar a entrada de imigrantes. Muralhas de contenção de imigrantes voltarão a ser construídas, aumentando a tensão nas fronteiras. O México torna-se o maior vilão das levas migratórias.
Nova carta de valores e princípios – soberania, autoestima, direitos humanos- O planeta começa a conviver com uma Nova Ordem. Que altera conceitos, impõe novas regras, muda visões de mundo, reposicionando a escala de valores. Os direitos humanos passam a ser mais vilipendiados. A soberania será sempre um tema recorrente das Grandes Nações e um mero verbete no dicionário de territórios sem poder econômico e militar. A autoestima estará sujeita aos humores da economia.
Ondas de pânico, violência e medo se multiplicarão. Avanços tecnológicos poderão alcançar a meta de humanizar as máquinas. Disputas e ameaças emergirão com maior intensidade, sob o império de uma Nova Guerra Fria.
A conferir.
A Democracia em seu crepúsculo
Em muitas democracias avançadas já não existe um debate comum, muito menos uma narrativa comum. As pessoas sempre tiveram opiniões diferentes. Agora têm fatos diferentes. Ao mesmo tempo, em uma esfera de informação sem autoridades – políticas, culturais, morais – e sem fontes confiáveis, não existe uma maneira fácil de distinguir entre teorias de conspiração e histórias verdadeiras. Narrativas falsas, partidárias e, amiúde, deliberadamente enganosas difundem-se agora como incêndios digitais, como cascatas de falsidades que se propagam rápido demais para que os verificadores de fatos as possam averiguar. E, mesmo que pudessem, isso já não importa: parte do público jamais lerá ou verá websites de checagem de fatos e, se o fizer, não lhes dará crédito.
Não se trata somente de histórias falsas, fatos incorretos ou mesmo campanhas eleitorais e marquetagem política desonestas: os próprios algoritmos das mídias sociais fomentam falsas percepções do mundo. As pessoas clicam apenas nas notícias que lhes interessam escutar; e então o Facebook, o YouTube e o Google mostram-lhes ainda mais do que sejam suas prévias preferências, quer se trate de uma certa marca de sabonete ou uma forma particular de política. Os algoritmos também radicalizam os usuários. Se alguém clica, por exemplo, em canais anti-imigração perfeitamente legítimos no YouTube, este podem levá-lo rapidamente, com apenas mais alguns cliques, a canais que estimulam o supremacismo branco e, logo após, a canais que incitam à mais violenta xenofobia. Como foram projetados para manter o usuário on-line, os algoritmos também favorecem as emoções, especialmente a raiva e o medo. E, como os sites são viciantes, eles afetam as pessoas de maneiras inesperadas. A raiva se torna um hábito. A divisão se torna normal.
A polarização passou do mundo on-line para a realidade.
O resultado é um hiperpartidarismo que aumenta a desconfiança em relação à política “normal”, aos políticos do “establishment”, aos ridicularizados “experts” e às instituições do “mainstream” – incluindo os tribunais, a polícia e o funcionalismo público –, o que não é de surpreender. À medida que aumenta a polarização, os funcionários do Estado são invariavelmente retratados como tendo sido “capturados” por seus oponentes.
O resultado é um hiperpartidarismo que aumenta a desconfiança em relação à política “normal”, aos políticos do “establishment”, aos ridicularizados “experts” e às instituições do “mainstream” – incluindo os tribunais, a polícia e o funcionalismo público –, o que não é de surpreender. À medida que aumenta a polarização, os funcionários do Estado são invariavelmente retratados como tendo sido “capturados” por seus oponentes.
Não por acaso, juízes e tribunais agora se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Num mundo polarizado não pode haver neutralidade, porque tampouco pode haver instituições apolíticas ou apartidárias.
Anne Applebaum, "A Democracia em seu crepúsculo"
Salvação
É urgente reconhecermos os espaços de encontro que podem nos salvar de ser uma multidão massificada assistindo isoladamente à televisão. O paradoxal é que essa tela nos dá a sensação de estarmos ligados ao mundo inteiro, quando na verdade ela nos rouba a possibilidade de convivermos de forma humana e, o que é igualmente grave, nos predispõe à abulia. Tenho dito em muitas entrevistas, em tom de ironia, que “a televisão é o ópio do povo”, alterando a famosa frase de Marx. Mas de fato acho que estamos ficando entorpecidos diante da tela, e mesmo quando não encontramos nada do que procuramos, continuamos lá, incapazes de nos levantar e ir fazer algo de bom.
Ela nos tira a vontade de trabalhar em algum artesanato, de ler um livro, de fazer um conserto na casa enquanto se escuta música ou se toma um mate. Ou de ir ao bar com um amigo, bater um papo com alguém da família. É um tédio, um fastio a que nos acostumamos “por falta de coisa melhor”. Ficar monotonamente sentado diante da televisão anestesia a
sensibilidade, torna a mente lerda, prejudica a alma.
Ernesto Sábato
O mensageiro do caos
Donald Trump está derrubando os pilares da relativa igualdade de oportunidades, justiça racial, tolerância, prosperidade e segurança, conquistadas pelos americanos com esforço e talento ao longo de décadas. Ele anunciou o fechamento do Departamento de Educação, encarregado de conceder bolsas para alunos de baixa renda e com deficiências, e verbas para capacitação profissional. O departamento não influi em currículos e conteúdos, a cargo de Estados e municípios.
É um ataque à mobilidade social, que garante não só justiça e paz social, mas também o máximo aproveitamento do potencial dos americanos, independentemente de renda e condição física. Isso contribui para o êxito do capitalismo americano.
Trump indultou dois policiais brancos condenados pela morte do jovem negro Karon Hylton-Brown. Agora, Elon Musk, dono do X e mais influente assessor do presidente, defende o indulto ao policial branco Derek Chauvin, que asfixiou até a morte o negro George Floyd, com o joelho sobre seu pescoço.
Trump só pode anular as condenações federais, que somam 20 anos. Chauvin também cumpre penas estaduais, de 22 anos e meio. Mas esses indultos passam a mensagem de que a vida dos negros vale menos do que a liberdade de seus assassinos brancos.
No primeiro dia de governo, Trump decretou que o Estado americano só reconhece os sexos masculino e feminino. Seguiram-se expurgos nas Forças Armadas de oficiais vinculados à diversidade e eliminação de programas de saúde de transição de gênero, entre outras supressões de direitos.
O presidente está desorganizando a economia americana e solapando sua competitividade, com as tarifas de importação, aplicadas ou anunciadas. Todos os setores produtivos do país estão integrados à cadeia de valores global e se beneficiam de matérias-primas, insumos, partes e componentes de menor custo, assim como os consumidores têm acesso a produtos mais baratos, graças às tarifas baixas.
Tanto é assim que os índices das bolsas de valores americanas têm sofrido sucessivas quedas. O mercado sofre com as ameaças de tarifas e com as incertezas de Trump.
A Agência de Segurança e Infraestrutura Cibernética recebeu ordens de não monitorar nem relatar ameaças russas – sua principal atividade. Trump quer derrubar a lei, aprovada com apoio de republicanos, que baniu o acesso da China a chips sofisticados. Esses são apenas alguns exemplos de como o presidente americano governa contra os interesses de seu país.
É um ataque à mobilidade social, que garante não só justiça e paz social, mas também o máximo aproveitamento do potencial dos americanos, independentemente de renda e condição física. Isso contribui para o êxito do capitalismo americano.
Trump indultou dois policiais brancos condenados pela morte do jovem negro Karon Hylton-Brown. Agora, Elon Musk, dono do X e mais influente assessor do presidente, defende o indulto ao policial branco Derek Chauvin, que asfixiou até a morte o negro George Floyd, com o joelho sobre seu pescoço.
Trump só pode anular as condenações federais, que somam 20 anos. Chauvin também cumpre penas estaduais, de 22 anos e meio. Mas esses indultos passam a mensagem de que a vida dos negros vale menos do que a liberdade de seus assassinos brancos.
No primeiro dia de governo, Trump decretou que o Estado americano só reconhece os sexos masculino e feminino. Seguiram-se expurgos nas Forças Armadas de oficiais vinculados à diversidade e eliminação de programas de saúde de transição de gênero, entre outras supressões de direitos.
O presidente está desorganizando a economia americana e solapando sua competitividade, com as tarifas de importação, aplicadas ou anunciadas. Todos os setores produtivos do país estão integrados à cadeia de valores global e se beneficiam de matérias-primas, insumos, partes e componentes de menor custo, assim como os consumidores têm acesso a produtos mais baratos, graças às tarifas baixas.
Tanto é assim que os índices das bolsas de valores americanas têm sofrido sucessivas quedas. O mercado sofre com as ameaças de tarifas e com as incertezas de Trump.
A Agência de Segurança e Infraestrutura Cibernética recebeu ordens de não monitorar nem relatar ameaças russas – sua principal atividade. Trump quer derrubar a lei, aprovada com apoio de republicanos, que baniu o acesso da China a chips sofisticados. Esses são apenas alguns exemplos de como o presidente americano governa contra os interesses de seu país.
Mutação identitária do regime americano
Quem olhou pode não ter visto tudo. No Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump calado à mesa enquanto Elon Musk, de casaco e boné esportivos, com o filho X de quatro anos nos ombros, fala a um pequeno grupo de jornalistas. A certo instante, Trump tenta dizer alguma coisa, mas X, já no chão, o interpela: "Cale a boca, você não é o presidente!". Cena bizarra, um garoto não só refreia a língua do poderoso boquirroto como deixa transparecer o que deve ouvir em casa. Um episódio miúdo com relevância política que passou batido.
Esse "olhar sem ver" evoca o "inconsciente ótico", de Walter Benjamin, que afirma com esse conceito a existência de alterações perceptivas decorrentes das reproduções técnicas de máquinas visuais como o cinema e outras. Para ele, toda imagem guarda uma latência de acontecimentos despercebidos na ótica natural. A imagem é capaz de aumentar a configuração do campo visual, deixando aspectos imperceptíveis ao observador. Análises magistrais de filmes por grandes críticos de cinema centravam-se intuitivamente em vestígios óticos dessa natureza.
A leitura das imagens televisivas do Salão Oval detecta refrações de cortes reais do passado, agora com um monarca autodeclarado, seu bufão e o superministro, um meme de cardeal Richelieu que age como papa. Bufão é o inverso divertido do rei, mas também o seu alter ego crítico, de onde provêm verdades arriscadas. No Salão, o posto foi ocupado por uma criança aparentemente treinada em casa, ratificando aquilo de que a opinião pública e os chargistas suspeitam, ou seja, a preeminência do superministro também autodeclarado. Existem sem ser, eis a ambiguidade básica das figuras de poder nos EUA.
Não é interpretação ligeira. A existência histórica de um Estado-Nação implica um passado-presente-futuro em que a vida realizada prescreve objetivos para o futuro. Não repetir, mas inovar no essencial. Isso não acontece nas sociedades sem história, onde o passado é refeito ou reativado. Mas nas brechas abertas pela crise da democracia emerge um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas: é o que sugere a passagem do sistema imperialista global para um dúbio nacional-imperialismo. Com um golpe oligárquico, Trump autocoroa-se ao modo de Napoleão-3 (Luis Felipe, presidente republicano francês, tornado imperador por golpe). Sua política é bonapartista, e o bloco ocidental, o adversário a ser desmantelado. Por trás da monarquia como simulacro identitário do passado, real mesmo é a plutocracia.
Tudo começa com a demissão dos servidores públicos formados dentro de parâmetros constitucionais, seguida pelo facão tarifário e troca da diplomacia por grosseria, de que deu testemunho o bullying a Volodimir Zelenski no agora famigerado Salão Oval. Dias após, mentiras impudentes cara a cara com Emmanuel Macron e com o premiê britânico. Foram-se o decoro e o respeito.
A cena com Musk e X é mínima, mas reveladora. Não se achincalha à toa, com bufonaria de circo, a liturgia presidencial de uma potência como os EUA. É uma ruptura simbólica. Testemunhado pelo mundo inteiro, o inimaginável aconteceu: o regime democrático americano alterou sua identidade histórica, tornando-se um não sei o quê. Para condutores de feroz caça às bruxas do identitarismo, uma pungente ironia objetiva.
Muniz Sodré
Esse "olhar sem ver" evoca o "inconsciente ótico", de Walter Benjamin, que afirma com esse conceito a existência de alterações perceptivas decorrentes das reproduções técnicas de máquinas visuais como o cinema e outras. Para ele, toda imagem guarda uma latência de acontecimentos despercebidos na ótica natural. A imagem é capaz de aumentar a configuração do campo visual, deixando aspectos imperceptíveis ao observador. Análises magistrais de filmes por grandes críticos de cinema centravam-se intuitivamente em vestígios óticos dessa natureza.
A leitura das imagens televisivas do Salão Oval detecta refrações de cortes reais do passado, agora com um monarca autodeclarado, seu bufão e o superministro, um meme de cardeal Richelieu que age como papa. Bufão é o inverso divertido do rei, mas também o seu alter ego crítico, de onde provêm verdades arriscadas. No Salão, o posto foi ocupado por uma criança aparentemente treinada em casa, ratificando aquilo de que a opinião pública e os chargistas suspeitam, ou seja, a preeminência do superministro também autodeclarado. Existem sem ser, eis a ambiguidade básica das figuras de poder nos EUA.
Não é interpretação ligeira. A existência histórica de um Estado-Nação implica um passado-presente-futuro em que a vida realizada prescreve objetivos para o futuro. Não repetir, mas inovar no essencial. Isso não acontece nas sociedades sem história, onde o passado é refeito ou reativado. Mas nas brechas abertas pela crise da democracia emerge um autoritarismo sujeito a anacrônicas veleidades monárquicas: é o que sugere a passagem do sistema imperialista global para um dúbio nacional-imperialismo. Com um golpe oligárquico, Trump autocoroa-se ao modo de Napoleão-3 (Luis Felipe, presidente republicano francês, tornado imperador por golpe). Sua política é bonapartista, e o bloco ocidental, o adversário a ser desmantelado. Por trás da monarquia como simulacro identitário do passado, real mesmo é a plutocracia.
Tudo começa com a demissão dos servidores públicos formados dentro de parâmetros constitucionais, seguida pelo facão tarifário e troca da diplomacia por grosseria, de que deu testemunho o bullying a Volodimir Zelenski no agora famigerado Salão Oval. Dias após, mentiras impudentes cara a cara com Emmanuel Macron e com o premiê britânico. Foram-se o decoro e o respeito.
A cena com Musk e X é mínima, mas reveladora. Não se achincalha à toa, com bufonaria de circo, a liturgia presidencial de uma potência como os EUA. É uma ruptura simbólica. Testemunhado pelo mundo inteiro, o inimaginável aconteceu: o regime democrático americano alterou sua identidade histórica, tornando-se um não sei o quê. Para condutores de feroz caça às bruxas do identitarismo, uma pungente ironia objetiva.
Muniz Sodré
A política do espetáculo
“A política, outrora, era ideias. Hoje, é pessoas. Ou melhor, personagens. Pois cada dirigente parece escolher um emprego e desempenhar um papel. Como no espetáculo”. Assim começa o livro O Estado Espetáculo de Roger-Gérard Schwartzenberg, (Flamarion, 1977), professor, escritor, político militante. Caso a definição fosse atualizada incluiria inevitavelmente “e algoritmos”, a obra não estaria totalmente comprometida, mas teria que ser submetida a substancial revisão.
Em 1967, foi publicada A Sociedade do Espetáculo, várias vezes reeditados em diversos idiomas, a obra clássica do notável pensador marxista Guy Debord, escrito em nove capítulos e 221 proposições, qualifica o espetáculo como a “ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna” (proposição 213)”. Nesta “ilusão” a vida deixou de ser vivenciada para ser apenas representada, vive-se “por procuração e “o consumidor real torna-se um consumidor de ilusões” (proposição n. 47).
Por sua vez, Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura em 1910), desiludido militante de esquerda, hoje, um liberal de sólidas convicções, escreveu em A Civilização do Espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (Rio de Janeiro: Objetiva, 2013): “Para essa nova cultura são essenciais a produção industrial maciça e o sucesso comercial. A distinção entre preço e valor se apagou, ambos agora são um só tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo […] O único valor existente é agora fixado pelo mercado”.
De fato, o fenômeno da espetacularização abarca e transforma todos os aspectos da sociedade contemporânea. No caso da política, o acréscimo do “algoritmo e da internet” é um permanente desafio porque altera profundamente os mecanismos da competição democrática. Este processo de transformação afeta profundamente o que parecia sólido e impõe uma enorme fluidez nas relações sociais e nas instituições que dão suporte à democracia liberal. Os mecanismos tradicionais não respondem com presteza ao ritmo vertiginoso exigido pelas demandas e aspirações sociais.
No entanto, os meios de comunicação desafiam no palco do “estado espetáculo” métodos maquiavelianos de “O Príncipe” por meio de conselhos, até hoje, em plena validade. O Principe no exercício do poder (a política como ela é de não como devia ser, eis do que se ocupa o notável pensador “florentino”) não pode dispensar a “astúcia da raposa” e a “força do leão”; fingir e disfarçar é um mandamento irrecusável “pois o vulgo só se pronuncia quanto aquilo que vê”, ou seja, no “teatro” da política o que parece é, mesmo não sendo.
Vivendo o momento histórico da transição da estrutura feudal descentralizada e fragmentada para o Estado moderno unificado e centralizado, Maquiavel, arguto observador e pensador sábio, compreendeu profundamente o funcionamento do poder, a psicologia dos governantes e governados; fundou uma nova ética, laica, apartada dos dogmas; e elaborou um tratado sobre a política aplicada à conquista e à manutenção do poder para uma efetiva sobrevivência do Estado.
De lá para cá, a “arte de mentir” lançou mão de progressos tecnológicos extraordinários o que levou Hannah Arendt a uma lúcida constatação: “A política é feita, em parte, da fabricação de uma certa ‘imagem’ e, em parte, da arte de levar a acreditar na realidade dessa imagem” (Da Mentira em Política). Trata-se de manipular a opinião para “comprar” ou “vender” uma imagem no mercado eleitoral ainda que seja necessário enganar e iludir.
Embora decorrido quase meio século de publicado, o livro de Schwartzenberg serve como fonte de consulta e discorre sobre três vertentes: personagens, espetáculo e o público.
No caso dos personagens, estabelece uma tipologia a ser assumida diante das circunstâncias históricas e os respectivos perfis a serem assumidos: o herói, inflado pelo culto à personalidade, salva; o homem comum, o líder que se iguala qualquer pessoa e que, além de manejar ideias e ações populistas, provoca nas pessoas com o jeito simples de ser o “prazer da igualdade”; o líder “charmoso” é o personagem que esbanja jovialidade, dinamismo, sucesso, atrai as pessoas pelas distinções contrastante, traços aristocráticos que não afastam, mas aproximam com uma calibrada igualdade.
O espetáculo é o palco montado onde o líder interpreta o papel da persona que melhor se ajusta e que tenha aderência à preferência do eleitor. Aí entra a gigantesca tarefa das equipes de campanha, com generalistas, especialistas, marqueteiros, redatores, um grupo eclético capaz utilizar as tecnologias disponíveis para dar voz, tela, a um one show man que atraia espectadores, ou seja, o público a ser persuadido, votar no candidato e obedecer ao líder.
O espetáculo, o público, os candidatos são dirigidos por instrumentos de medida cada vez mais sofisticados e desafiadores no quesito ganhar o voto. Neste ponto, tudo que foi dito é produzido por sofisticada tecnologia e, institucionalmente, regrada por um sistema político e eleitoral que, bem ou mal, funcionem.
Atualmente, e diante da revolução digital, tudo que aqui foi escrito, diria Cazuza, é um “museu de grandes novidades”. Nele estão o velho aperto mão, o abraço amistoso e o desempenho nos debates que não resistem ao engajamento provocado por um dedinho deslizando pelo aplicativo Tik Tok.
Analógicos, aposentem-se! digitais, atualizem-se! A geração Alfa vem aí, a Beta começou a nascer. A Inteligência pode ser comprada no Mercado Livre. E a era Trump está, apenas, começando.
Em 1967, foi publicada A Sociedade do Espetáculo, várias vezes reeditados em diversos idiomas, a obra clássica do notável pensador marxista Guy Debord, escrito em nove capítulos e 221 proposições, qualifica o espetáculo como a “ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna” (proposição 213)”. Nesta “ilusão” a vida deixou de ser vivenciada para ser apenas representada, vive-se “por procuração e “o consumidor real torna-se um consumidor de ilusões” (proposição n. 47).
Por sua vez, Mario Vargas Llosa (Nobel de Literatura em 1910), desiludido militante de esquerda, hoje, um liberal de sólidas convicções, escreveu em A Civilização do Espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura (Rio de Janeiro: Objetiva, 2013): “Para essa nova cultura são essenciais a produção industrial maciça e o sucesso comercial. A distinção entre preço e valor se apagou, ambos agora são um só tendo o primeiro absorvido e anulado o segundo […] O único valor existente é agora fixado pelo mercado”.
No entanto, os meios de comunicação desafiam no palco do “estado espetáculo” métodos maquiavelianos de “O Príncipe” por meio de conselhos, até hoje, em plena validade. O Principe no exercício do poder (a política como ela é de não como devia ser, eis do que se ocupa o notável pensador “florentino”) não pode dispensar a “astúcia da raposa” e a “força do leão”; fingir e disfarçar é um mandamento irrecusável “pois o vulgo só se pronuncia quanto aquilo que vê”, ou seja, no “teatro” da política o que parece é, mesmo não sendo.
Vivendo o momento histórico da transição da estrutura feudal descentralizada e fragmentada para o Estado moderno unificado e centralizado, Maquiavel, arguto observador e pensador sábio, compreendeu profundamente o funcionamento do poder, a psicologia dos governantes e governados; fundou uma nova ética, laica, apartada dos dogmas; e elaborou um tratado sobre a política aplicada à conquista e à manutenção do poder para uma efetiva sobrevivência do Estado.
De lá para cá, a “arte de mentir” lançou mão de progressos tecnológicos extraordinários o que levou Hannah Arendt a uma lúcida constatação: “A política é feita, em parte, da fabricação de uma certa ‘imagem’ e, em parte, da arte de levar a acreditar na realidade dessa imagem” (Da Mentira em Política). Trata-se de manipular a opinião para “comprar” ou “vender” uma imagem no mercado eleitoral ainda que seja necessário enganar e iludir.
Embora decorrido quase meio século de publicado, o livro de Schwartzenberg serve como fonte de consulta e discorre sobre três vertentes: personagens, espetáculo e o público.
No caso dos personagens, estabelece uma tipologia a ser assumida diante das circunstâncias históricas e os respectivos perfis a serem assumidos: o herói, inflado pelo culto à personalidade, salva; o homem comum, o líder que se iguala qualquer pessoa e que, além de manejar ideias e ações populistas, provoca nas pessoas com o jeito simples de ser o “prazer da igualdade”; o líder “charmoso” é o personagem que esbanja jovialidade, dinamismo, sucesso, atrai as pessoas pelas distinções contrastante, traços aristocráticos que não afastam, mas aproximam com uma calibrada igualdade.
O espetáculo é o palco montado onde o líder interpreta o papel da persona que melhor se ajusta e que tenha aderência à preferência do eleitor. Aí entra a gigantesca tarefa das equipes de campanha, com generalistas, especialistas, marqueteiros, redatores, um grupo eclético capaz utilizar as tecnologias disponíveis para dar voz, tela, a um one show man que atraia espectadores, ou seja, o público a ser persuadido, votar no candidato e obedecer ao líder.
O espetáculo, o público, os candidatos são dirigidos por instrumentos de medida cada vez mais sofisticados e desafiadores no quesito ganhar o voto. Neste ponto, tudo que foi dito é produzido por sofisticada tecnologia e, institucionalmente, regrada por um sistema político e eleitoral que, bem ou mal, funcionem.
Atualmente, e diante da revolução digital, tudo que aqui foi escrito, diria Cazuza, é um “museu de grandes novidades”. Nele estão o velho aperto mão, o abraço amistoso e o desempenho nos debates que não resistem ao engajamento provocado por um dedinho deslizando pelo aplicativo Tik Tok.
Analógicos, aposentem-se! digitais, atualizem-se! A geração Alfa vem aí, a Beta começou a nascer. A Inteligência pode ser comprada no Mercado Livre. E a era Trump está, apenas, começando.
O planeta ficará mais quente e desigual
Depois do carnaval, começa o ano no Brasil. Espero que seja próspero e feliz, mas duvido. Passamos por um momento difícil. Algo parecido com o que li neste início de romance: “Naquela época o céu era tão baixo que nenhum homem ousava se erguer em toda a sua estatura. No entanto havia vida, havia desejos e festas. E, ainda que nunca se esperasse o melhor neste mundo, esperava-se a cada dia escapar do pior” ( O rochedo de Tânios — Amin Maalouf) .
Os Estados Unidos se retiraram não apenas do Acordo de Paris, mas também deixaram de apoiar a Ucrânia. Isso significa que a Europa tem dois caminhos: assumir o esforço de guerra sozinha ou receber milhões de refugiados da ocupação russa. Talvez os dois, na pior das hipóteses.
De qualquer forma, faltará recurso para combater o aquecimento global e ajudar os povos em desenvolvimento. Como Trump praticamente fechou a Usaid, o combate à fome e à doença pode minguar no mundo. Em síntese: o planeta ficará mais quente e desigual. Uso esses dois adjetivos, mas reconheço que dão apenas uma pálida impressão do sofrimento real que podem conter: desterro em massa, desastres ambientais, epidemias. A frase que o futuro primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, usou para a Europa poderia ser estendida também a outras partes do mundo: faltam cinco minutos para a meia-noite.
Aqui no Brasil há uma polêmica sobre as relações da oposição com o governo Trump, principalmente as denúncias contra Alexandre de Moraes. De modo geral, quando se sentem estranguladas, as oposições sempre pedem socorro fora. São quase sempre também acusadas de trair a pátria, mas a verdade é que no aperto todos usam essa tática.
O problema do enlace entre parte da oposição e o governo Trump é a própria natureza do autocrata laranja. Se ele conseguir, por meio de seu poder associado às big techs, tirar a direita do sufoco e levá-la de novo ao poder, o preço será alto. A primeira coisa que Trump dirá é o seguinte: o que podemos ganhar com isso? Na Ucrânia, foram as riquezas minerais, em Gaza a transformação dos escombros num resort de luxo, naturalmente expulsando 2 milhões de pessoas que não cabem nesse delírio. O que seria no Brasil?
Ele gosta de petróleo e certamente se interessaria pelo pré-sal, pela exploração na Margem Equatorial. Gosta também de expulsar gente para construir resorts de luxo. Fernando de Noronha é um espaço ideal para esse sonho. Bolsonaro queria criar uma Cancún em Angra; Flávio, seu filho, queria liberar a entrada de transatlânticos em Noronha. Tudo isso é um excelente aperitivo para Trump.
Existem alguns caminhos para evitar essa atividade externa em torno das questões políticas brasileiras. Infelizmente, o que defendo é o menos popular e me vale às vezes alguns insultos e acusações de cumplicidade com a direita. O ideal, no meu entender, seria uma completa transparência sobre os atos de Alexandre de Moraes, para que possamos avaliar internamente. Também seria ideal o conhecimento maior dos detalhes de todos os casos julgados do 8 de Janeiro para avaliar a dosimetria das penas. Da mesma forma, poderíamos esclarecer enigmas, como a denúncia de que se falsificou a entrada de Filipe Martins, ou mesmo a suposição de que contas bancárias de opositores com câncer têm sido bloqueadas.
Antes de me jogarem na lata de lixo da História e de me classificarem como incurável reacionário, quero apenas reafirmar que essa é a melhor forma de combate. A maneira como os vencedores estão conduzindo o processo, no meu entender, fortalece estrategicamente a oposição. Na verdade, travamos um diálogo de surdos com acusações recíprocas de favorecer a vitória da direita. Posso estar errado, mas, pelo que vi e aprendi, há uma arrogância e autossuficiência no ar, e isso é sempre péssimo sinal.
Os Estados Unidos se retiraram não apenas do Acordo de Paris, mas também deixaram de apoiar a Ucrânia. Isso significa que a Europa tem dois caminhos: assumir o esforço de guerra sozinha ou receber milhões de refugiados da ocupação russa. Talvez os dois, na pior das hipóteses.
De qualquer forma, faltará recurso para combater o aquecimento global e ajudar os povos em desenvolvimento. Como Trump praticamente fechou a Usaid, o combate à fome e à doença pode minguar no mundo. Em síntese: o planeta ficará mais quente e desigual. Uso esses dois adjetivos, mas reconheço que dão apenas uma pálida impressão do sofrimento real que podem conter: desterro em massa, desastres ambientais, epidemias. A frase que o futuro primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, usou para a Europa poderia ser estendida também a outras partes do mundo: faltam cinco minutos para a meia-noite.
Aqui no Brasil há uma polêmica sobre as relações da oposição com o governo Trump, principalmente as denúncias contra Alexandre de Moraes. De modo geral, quando se sentem estranguladas, as oposições sempre pedem socorro fora. São quase sempre também acusadas de trair a pátria, mas a verdade é que no aperto todos usam essa tática.
O problema do enlace entre parte da oposição e o governo Trump é a própria natureza do autocrata laranja. Se ele conseguir, por meio de seu poder associado às big techs, tirar a direita do sufoco e levá-la de novo ao poder, o preço será alto. A primeira coisa que Trump dirá é o seguinte: o que podemos ganhar com isso? Na Ucrânia, foram as riquezas minerais, em Gaza a transformação dos escombros num resort de luxo, naturalmente expulsando 2 milhões de pessoas que não cabem nesse delírio. O que seria no Brasil?
Ele gosta de petróleo e certamente se interessaria pelo pré-sal, pela exploração na Margem Equatorial. Gosta também de expulsar gente para construir resorts de luxo. Fernando de Noronha é um espaço ideal para esse sonho. Bolsonaro queria criar uma Cancún em Angra; Flávio, seu filho, queria liberar a entrada de transatlânticos em Noronha. Tudo isso é um excelente aperitivo para Trump.
Existem alguns caminhos para evitar essa atividade externa em torno das questões políticas brasileiras. Infelizmente, o que defendo é o menos popular e me vale às vezes alguns insultos e acusações de cumplicidade com a direita. O ideal, no meu entender, seria uma completa transparência sobre os atos de Alexandre de Moraes, para que possamos avaliar internamente. Também seria ideal o conhecimento maior dos detalhes de todos os casos julgados do 8 de Janeiro para avaliar a dosimetria das penas. Da mesma forma, poderíamos esclarecer enigmas, como a denúncia de que se falsificou a entrada de Filipe Martins, ou mesmo a suposição de que contas bancárias de opositores com câncer têm sido bloqueadas.
Antes de me jogarem na lata de lixo da História e de me classificarem como incurável reacionário, quero apenas reafirmar que essa é a melhor forma de combate. A maneira como os vencedores estão conduzindo o processo, no meu entender, fortalece estrategicamente a oposição. Na verdade, travamos um diálogo de surdos com acusações recíprocas de favorecer a vitória da direita. Posso estar errado, mas, pelo que vi e aprendi, há uma arrogância e autossuficiência no ar, e isso é sempre péssimo sinal.
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