quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Pensamento do Dia


Presidente meia bomba

No meio da tarde de ontem, reunido em Brasília com um grupo de prefeitos de grandes cidades, o ministro Paulo Guedes, da Fazenda e de tudo o mais que tenha a ver com a economia, revelou que a reforma da Previdência Social incluirá os militares que gostariam de ficar de fora dela.

Poucas horas depois, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão Filho, confirmou o que Guedes dissera – com um detalhe que pode fazer diferença. Segundo Mourão a reforma para os civis será por meio de uma emenda à Constituição. A dos militares, via projeto de lei.

Tarde da noite, o secretário da Previdência, Rogério Marinho, anunciou que “por determinação do presidente Jair Bolsonaro” todos os segmentos da sociedade serão atingidos pela reforma. Os militares “vão entrar no processo”, fez questão de destacar o secretário.


No caso, não se pode falar em bate-cabeça entre integrantes coroados do governo. Eles disseram a mesma coisa. Mas pode-se falar em uma luta surda por protagonismo. Guedes fez o que lhe cabia. Mourão, o que gosta de fazer – comentar. Bolsonaro, o que dê a impressão de que é ele quem manda.

O incômodo de Bolsonaro com Mourão, mas não só com ele, foi o que o levou a pelo menos formalmente reassumir a presidência da República apenas 48 horas depois de ter sido operado pela terceira vez desde que um louco o esfaqueou em Juiz de Fora, em setembro do ano passado.

Primeiro foi dito que ele, a partir de ontem, despacharia com ministros no hospital Alberto Einstein, em São Paulo, de onde só deverá sair daqui a 10 dias. Depois se informou que, a princípio, ele não pode falar e que, por isso, os despachos seriam por vídeo, e-mail e recursos semelhantes.

Que mal haveria para o país e para o próprio Bolsonaro se Mourão ficasse durante mais alguns dias no exercício da presidência da República? Para a recuperação plena de Bolsonaro, talvez fosse o mais indicado. Para o ego dele, talvez não. Teremos um presidente meia bomba até a próxima semana.

Apenas histórias

O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias
João Ubaldo Ribeiro

Privilégio na prisão

Por decisão corroborada pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), o sr. Lula da Silva cumpre pena por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na carceragem da Polícia Federal (PF) em Curitiba. Apesar disso - em si um favorecimento -, repetem-se as tentativas de dar ao ex-presidente mais tratamentos especiais, aos quais nenhum outro presidiário no País tem direito. Essas manobras para conceder privilégios inéditos ao líder petista são uma afronta ao princípio da igualdade de todos perante a lei.

O ex-presidente Lula da Silva requereu à Justiça autorização para comparecer ao velório do seu irmão Genival Inácio da Silva. Seu pedido foi negado tendo por fundamento o relatório da Polícia Federal que atestou a impossibilidade de levar, com segurança e a tempo, o presidiário até o local do velório, em São Bernardo do Campo (SP).


O deslocamento do ex-presidente exigiria “um transporte de helicóptero da sede da Superintendência da PF em Curitiba até o primeiro aeroporto, uma aeronave da PF - com a devida segurança e piloto próprio - para o transporte entre Curitiba e São Paulo e outro helicóptero até o cemitério”, afirmou a PF. No entanto, não havia helicópteros disponíveis, já que “estão sendo utilizados para apoio aos resgates das vítimas de Brumadinho”. E, não fosse isso, a aeronave seria cedida ao réu condenado?

A análise de risco da PF concluiu ainda que levar Lula da Silva até São Bernardo do Campo poderia ocasionar situações graves, como a “fuga ou resgate do ex-presidente Lula; atentado contra a vida do ex-presidente Lula; atentados contra agentes públicos; comprometimento da ordem pública; protestos de simpatizantes e apoiadores do ex-presidente Lula; protestos de grupos de pressão contrários ao ex-presidente Lula”. Não havia, pois, razoabilidade em autorizar a ida de Lula da Silva ao velório do irmão. Esqueceu-se de argumentar que lugar de preso é na cadeia, onde deveria estar justamente porque cometeu, por vontade própria, atos que o colocaram à margem da sociedade, aí incluídos aqueles referentes à sua família. Há exceções.

A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) estabelece que “os condenados que cumprem pena em regime fechado (...) poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos seguintes fatos: falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão”. A lei não concede um direito irrestrito e automático. Em caso de falecimento de familiares próximos, os presos “poderão obter” a permissão de saída, a ser autorizada pelo diretor de estabelecimento penal.

Não satisfeito com a impossibilidade reconhecida pela PF, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, concedeu uma criativa ordem de habeas corpus de ofício, arbitrando que o preso Lula da Silva teria direito de se encontrar com os seus familiares em uma unidade militar, “inclusive com a possibilidade do corpo do de cujos ser levado à referida unidade militar, a critério da família”.
Trata-se de tratamento privilegiado. Nenhum preso tem à sua disposição unidade militar para se encontrar com familiares por ocasião do falecimento de um ente querido. Qual é a razão, portanto, para oferecer tal mimo ao líder petista?

A condição de ex-presidente da República exige das autoridades policiais alguns cuidados em relação ao preso Lula da Silva. Em seu caso, a simples visita a um velório poderia gerar transtornos e riscos para a ordem pública, além da possibilidade de transformar o que deveria ser um ato de solidariedade familiar, íntimo, em comício político - o que não apresenta nenhuma correspondência com as situações previstas na Lei de Execução Penal.

O fato de Lula da Silva ter-se recusado a ir a São Bernardo do Campo nas condições concedidas pelo presidente do STF não elimina o arbítrio da concessão do privilégio, ao qual nem ele nem outro preso teria direito. Não cabe à Justiça criar direitos exclusivos para um presidiário. É preciso habituar-se à ideia de que o ex-presidente tem de cumprir sua pena como todos os outros presos.

Marco Aurélio vai melar a festa

O 1º de fevereiro deveria marcar o apogeu político dos Bolsonaro. Depois de se instalar no Planalto, a família esperava celebrar a posse do deputado mais votado do país e do senador mais votado do Rio. O clima de festa foi quebrado pelas investigações que envolvem Flávio, o filho mais velho do presidente.

O zero-um foi aconselhado a desistir do manda topara estancara sangria do clã. Ignorou os apelos, mas vai assumir sob forte pressão. Ontem ele teve uma amostrado que o espera, em breve passagem pelo Congresso.

Flávio ganhou uma recepção típica de políticos envolvidos em grandes escândalos. Assim que pisou no prédio, foi rodeado por um batalhão de repórteres. Ele apressou o passo, mas não conseguiu escapar do cerco.

Ao ouvira primeira pergunta, sacou uma desculpa surrada: “Está todo mundo vendo que eu sou vítima de perseguição ”. Em seguida, tentou desconversar :“Já falei o que tem [sic] que falar. Não tem novidade nenhuma”.

Não é bem assim. A primeira novidade virá amanhã mesmo. O ministro Marco Aurélio Mello deve cassar a liminar do colega Luiz Fux que blindou o senador. “A decisão sai na sexta-feira. As investigações estão paradas, não podem continuar assim”, disse à coluna.

Depois do dia 1º, a situação de Flávio tende a se complicar. Sem a proteção do foro privilegiado, seu caso deverá ser devolvido à primeira instância. Os promotores vão receber novas informações do Coaf. Se quiserem, também poderão avançar na apuração sobre os elos da família presidencial com as milícias.

Apesar dos 4,3 milhões de votos, o senador chega a Brasília enfraquecido. Isso explica sua mudança de tom ao falar de Renan Calheiros. Até outro dia, os Bolsonaro prometiam escantear o emedebista na disputa pelo comando do Senado. Agora podem ser obrigados a beijar sua mão para salvar o mandato do zero-um.

Ao opinar contra o pedido de Lula para acompanhar o velório do irmão, um direito assegurado em lei, os procuradores de Curitiba escreveram que o ex-presidente “não é um preso comum”. Já tinha dado para perceber.

Imagem do Dia


Ministro da Educação diz que 'universidade é somente para algumas pessoas'

A universidade "não é para todos", disse o ministro Ricardo Vélez Rodriguez (Educação) em vídeo veiculado no Twitter. Ele avalia que o ensino superior é "somente para algumas pessoas"; que têm desejo e capacitação. Numa crítica velada ao sistema de cotas, Vélez declarou que a melhor forma de democratizar as universidade é o "ensino básico de qualidade". Não disse o que pretende fazer para qualificar o ensino.

Vélez levou o vídeo ao ar dois dias depois da publicação de uma entrevista que concedera ao jornal Valor. Nela, o ministro defendeu a valorização do ensino técnico como porta de acesso rápido dos jovens ao mercado de trabalho. E acrescentou: "A ideia de universidade para todos não existe."


O ministro insinuou na entrevista que, para muitos, o banco de universidade pode ser uma perda de tempo, pois não faz sentido o sujeito estudar durante anos para ser advogado e depois virar motorista de Uber. "Nada contra o Uber, mas esse cidadão poderia ter evitado perder seis anos estudando legislação", afirmou.

Vélez esmiuçou seu raciocínio com um comentário que ateou polêmica nas redes sociais: "As universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual, que não é a mesma elite econômica."  Foi a péssima repercussão do comentário que levou o ministro a retornar ao tema. Em vez de convocar os jornalistas, Vélez recorreu às redes sociais, tal como costuma fazer o chefe Jair Bolsonaro.

"Digo que universidade, do ponto de vista da capacidade, não é para todos. Somente algumas pessoas que têm desejo de estudos superiores e que se habilitam para isso entram na universidade", declarou Vélez, expressando-se num em português  "espanholado"; "O que não significa que eu não defenda a democracia na universidade. A universidade tem que ser democrática."

Ou seja, todos aqueles que quiserem entrar estarem em pé de igualdade para poder competir pelo ingresso na universidade ", prosseguiu o ministro. "Então, a coisa melhor para democratizar a universidade, sabe qual é? Ensino básico de qualidade, onde todo mundo se forma, todo mundo se habilita e todo mundo pode competir em pé de igualdade. Universidade para todos, nesse sentido, vale."

É improvável que as novas declarações do ministro da Educação apaguem a polêmica que ele próprio acendeu.

Explicação complicada

Cemitério de Brumadinho
Estatisticamente tudo se explica, pessoalmente tudo se complica
Daniel Pennac

O conservador e o atrasado

Fernando Henrique Cardoso gosta de relembrar uma cena na qual o historiador Sérgio Buarque de Holanda discutia o tamanho de algumas figuras do Império e ensinou: "Doutora, eles eram atrasados. Nós não temos conservadores no Brasil. Nós temos gente atrasada."

Foi a gente atrasada que levou o Brasil a ser um dos últimos países a abolir a escravidão e a adotar o sistema de milhagem para os passageiros de aviões, deixando a rota Rio-São Paulo de fora.

É a gente atrasada quem trava os projetos de segurança das barragens que tramitam no Senado, na Câmara e na Assembleia de Minas Gerais.

Essa gente atrasada estagnou a economia durante o século 19 e, no 20, faliu as grandes companhias de aviação brasileiras. No 21, produziu os desastres de Mariana e Brumadinho.


Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República com uma plataforma conservadora, amparado pelo atraso. Sua campanha contra os organismos defensores do meio ambiente foi a prova disso. Não falava em nome do empresariado moderno do agronegócio, mas da banda troglodita que se confunde com ele. Felizmente, preservou o Ministério do Meio Ambiente.

Outra bandeira de sua ascensão foi a defesa da lei e da ordem. A conexão dos "rolos" de Fabrício Queiroz com as milícias do Rio de Janeiro ilustrou quanto havia de atraso na sua retórica. (O Esquadrão da Morte do Rio surgiu em 1958 e anos depois alguns de seus "homens de ouro" tinham um pé no crime.)

Nos anos 70, o presidente de Scuderie Le Cocq era contrabandista, e o delegado Sérgio Fleury, grão-mestre do esquadrão paulista, ilustre janízaro da repressão política, protegia traficantes de drogas.

Ronald Reagan e Margaret Thatcher foram conservadores, já os patronos dos esquadrões foram e são simplesmente atrasados. Por isso, Nova York e Londres são cidades seguras, enquanto o Rio é o que é. O detento Sérgio Cabral dizia que favelas eram fábricas de marginais.

As mineradoras nacionais moveram-se nos escurinhos do poder, e mesmo depois do desastre de Mariana bloquearam as iniciativas que aumentariam a segurança das barragens. Deu Brumadinho. As perdas da Vale nas Bolsas e com as faturas dos advogados superarão de muito o que custaria a proteção de Brumadinho. Será a conta do atraso.

Com menos de um mês de governo, Jair Bolsonaro foi confrontado pela diferença entre conservadorismo e atraso. Seu mandato popular ampara-se numa plataforma conservadora com propostas atrasadas. Muita gente que votou nele pode detestar o Ibama e as ONGs do meio ambiente. Também pode achar que bandido bom é bandido morto.

Quando acontecem desgraças como Brumadinho ou quando são expostas as vísceras das milícias e seus mensalinhos, essas mesmas pessoas mudam de assunto e o presidente fica só, como ficou o general João Figueiredo depois do atentado do Riocentro.

O atraso é camaleônico. Escravocratas do Império tornaram-se presidentes na República Velha. A Federação das Indústrias de São Paulo financiou o DOI, aderiu à Nova República e varreu os crimes da ditadura para a porta dos quartéis.

Trogloditas do agronegócio e espertalhões das mineradoras sabem o que querem. Conviveram com o comissariado petista esperando por um Messias. Tiveram-no. Quando a Vale caiu na frigideira, fizeram o que deviam e, num só dia, venderam suas ações derrubando em R$ 71 bilhões o seu valor de mercado.

Durante a campanha eleitoral, quando confrontado com os problemas que encontraria na Presidência, Bolsonaro repetia um versículo do Evangelho de João:

"Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.”

Brumadinho e suas relações com Fabrício Queiroz mostraram a Jair Bolsonaro o verdadeiro rosto do atraso.
Elio Gaspari

Estatizem o Estado

Vamos falar francamente: no mundo real da política, o governo federal exerce – ou pode exercer – muita influência sobre a Vale, assim como a Vale exerce influência sobre governos federal e estaduais.

Não que o presidente Bolsonaro possa mandar demitir Fabio Schvartsman. Mas pode complicar muita a vida do executivo da Vale, até conseguir sua saída.

Já aconteceu antes, nos dois sentidos. Lula e Dilma forçaram a demissão de Roger Agnelli, em 2011, porque este queria dirigir a mineradora como se fosse uma empresa privada, independente do governo. Depois, Dilma e Lula controlaram a escolha do sucessor, Murilo Ferreira, assim como Temer coordenou a indicação de Schvartsman, com a participação de Aécio Neves, já que a Vale sempre foi considerada um “patrimônio” mineiro.

Duas circunstâncias permitem esses arranjos, um econômico, outro político. No econômico: o governo é o maior acionista da Vale.

Somando as participações dos fundos de pensão de estatais, Previ, Petros e Funcef, mais as ações do BNDES, o governo tem 27,7% do capital da mineradora. A segunda maior participação é do Bradesco, com 5,80%.

No momento, a Vale passa uma complexa mudança estrutural, cujo objetivo é tornar a empresa totalmente aberta. Mas até aqui, há um grupo de acionistas controladores , formado justamente pelos fundos de estatais, BNDES, Bradesco e a japonesa Mitsui. Como nem o Bradesco nem os japoneses querem brigar com o governo, dá para entender quem exerce a maior influência. Esse é o fator político.

Esqueçam, portanto, a tal “Golden share”, de propriedade do governo. Ela só serve para o Planalto impedir, por exemplo, a transferência da companhia para o exterior, o que não passa pela cabeça de ninguém.

Dirão: mas os fundos de pensão de estatais são entidades independentes.

Deveriam ser. Na prática, sempre foram, digamos, coordenados pelo governo. Nos tempos do PT, então, o aparelhamento foi total, levando-se os fundos a negócios e investimentos, digamos, duvidosos.

Portanto, a providência mais importante a ser tomada é a completa privatização da Vale e sua transformação numa companhia pública, no sentido americano da palavra. Uma empresa aberta de capital pulverizado em bolsas, administrada profissionalmente. Esse processo já está em curso e precisa ser mantido.

E já que estamos no assunto, é preciso introduzir regras mais firmes que garantam a autonomia dos fundos de pensão.

A segunda grande providência é no sentido inverso: a estatização do Estado, ou seja, das agências reguladores e fiscalizadoras.

A trama política nas relações Vale/governo/Congresso/assembleias legislativas inclui um controle sobre agências que deveriam regular a mineração. São inúmeros os casos de atuação de políticos lobistas em favor das mineradoras, quer facilitando licenciamentos, por exemplo, quer derrubando normas mais rigorosas para o controle da atividade.

Mas a arma mais poderosa é quase silenciosa: o aparelhamento político agências reguladoras e o seu “desaparelhamento” prático. Exemplo: a recente Agência Nacional de Mineração, criada para colocar moral nessa história, tem 35 agentes para fiscalizar 790 barragens de rejeitos mais o funcionamento de minas e a situação da pesquisa mineral. E vem o governo atual dizer que vai fiscalizar nada menos que 3.386 de barragens de algum risco. (Notaram a precisão do número?)

Nesse ambiente, não é de estranhar que surjam propostas tão equivocadas, como a de intervenção federal na Vale, tão ilegal quanto inútil. Assim como um suposto endurecimento da legislação, inútil se não há instrumentos de aplicação.

Além disso, essa situação prejudica o debate sobre o licenciamento ambiental. Uns querem afrouxar, outros, apertar. Mas o problema não está aí, está na “privatização” e no aparelhamento das agências.

Do jeito que está o debate, corremos o risco de ou liberar geral ou proibir tudo.

Como resolver, então? Simples, copiem do Canadá.

Pensamento do Dia


Afinal, o que Bolsonaro tem contra Mourão que o fez reassumir tão açodadamente?

Mesmo aqueles que não aceitam teorias conspiratórias estão percebendo que existe alguma coisa estranha acontecendo nos bastidores da política em Brasília. É inexplicável, injustificável e inqualificável o fato de o presidente Jair Bolsonaro ter oficialmente reassumido a Presidência da República no início da manhã desta quarta-feira, dia 30, sem estar recuperado da complicada e longa cirurgia que sofrera na manhã de segunda-feira, quando ficou mais de nove horas na mesa de operação, sob anestesia geral.

Na véspera, com o presidente enfraquecido na UTI, ainda sem ingerir alimentação, sendo sustentado por soro intravenoso e tomando uma bateria de medicamentos, inclusive para evitar trombose, o porta-voz do Planalto, general Rego Barros, se apressou em anunciar à imprensa que o Bolsonaro reassumiria o cargo às 7 horas da manhã. Por que tanta pressa? Ninguém sabe.

Na manhã desta quarta-feira, o Planalto confirmou que o presidente já reassumira integralmente suas funções e o Hospital Albert Einstein preparara uma sala especial para que o chefe do governo possa despachar com seus assessores e ministros, tudo pago pelo Hospital Central do Exército, que está custeando as despesas, apesar de a Presidência contar com orçamento próprio, vejam que a bagunça ainda reina.

Mas a realidade era bem diferente. Bolsonaro não tinha a menor condição de reassumir. Na tarde desta quarta-feira, ao dar entrevista sobre a questão de Brumadinho, o vice-presidente Hamilton Mourão informou que Bolsonaro, operado há dois dias, ainda não estava podendo receber visitas nem conversar, por prescrição médica.

Mesmo assim, nesta quinta-feira os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e do Desenvolvimento Regional, Gustavo Canuto, devem visitar o presidente no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para trocar meia dúzia de palavras com ele, porque o presidente continua proibido de conversar, para evitar formação de gases no aparelho gastrointestinal. Ora, isso não é governar, é apenas fingir que governa.

É inaceitável que o Planalto imponha essa pantomima. O país nada ganha com isso e a inusitada situação apenas contribui para a formação de teorias conspiratórias de que – por alguma razão recôndita – o presidente Bolsonaro está temendo ser substituído por seu vice, o general Hamilton Mourão.

Todos sabem que Mourão é do tipo boquirroto, que não pode ver um microfone e logo começa a dar declarações. Mas acontece que Bolsonaro também é assim, tendo se tornado um verdadeiro colecionador de afirmações impróprias, algumas até lhe causaram problemas e processos judiciais. Comparado a Bolsonaro, o vice Mourão é apenas um iniciante em matéria de deslizes oratórios.

Com toda certeza, o Planalto deveria deixar o chefe recuperar plenamente a saúde, ao invés de expô-lo a uma situação estranha e até ridícula. Fica parecendo que há um boicote ao vice, que claramente está sendo escanteado. E la nave va, cada vez mais fellinianamente.

A mesma espada

Somos todos irmãos, não porque dividamos o mesmo teto e a mesma mesa: divisamos a mesma espada, sobre nossa cabeça
Ferreira Gullar

Nossa vida, mais amores

Um dos maiores poemas, e talvez o mais célebre, da literatura brasileira diz em sua segunda estrofe: “Nosso céu tem mais estrelas/ Nossas várzeas têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida, mais amores”. Você adivinhou: é a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias</a> (1823-1864), que começa, claro, com “Minha terra tem palmeiras/ Onde canta o sabiá”.


Quando o poeta o escreveu, em 1843, o Brasil, ainda com 90% de território a desbravar, tinha de si próprio uma visão romântica e idealizada. Hoje sabemos muito mais sobre o país —e tanto que, se Gonçalves Dias fosse reescrever seu poema, teria outras imagens a escolher. Eis algumas.

Nossas barragens são criminosas e inseguras —rompem-se e levam à morte o que encontram pela frente. Nossos viadutos / pontes vão abaixo ou racham, pela ação do tempo ou por serem feitos com material de quinta. Nossos museus /se incendeiam e destroem patrimônios que não nos pertencem, mas à humanidade.

Nossos mares, baías e rios recebem nossos abjetos dejetos naturais e industriais e só têm o odor como protesto antes de morrer. Nosso céu é, às vezes, uma hipótese —algo que deve existir acima da camada de poluição. E nossos sistemas de fiscalização, obedientes a interesses maiores, não fiscalizam.

Nossos hospitais, escolas e transportes públicos são carentes, insuficientes ou inexistentes. Nossas estradas, ruas e calçadas são crateras, impróprias para humanos e carros. Nossas cidades têm vastos territórios vedados aos cidadãos e outros em que, pela miséria, seus habitantes podem praticar tudo, menos a cidadania. E nossos administradores são inoperantes, incompetentes ou corruptos.

Falando neles, nossos corruptos são, estes, sim, dignos de poemas e rapsódias. Penetraram por todas as brechas conhecidas da vida pública — e, como não paramos de descobrir, também pelas desconhecidas.

Mourão, o moderado

Em agosto de 2018, Eduardo Bolsonaro disse à Folha de S. Paulo: “Sempre aconselhei o meu pai: tem que botar um cara faca na caveira pra ser vice. Tem que ser alguém que não compense correr atrás de um impeachment”. Depois de várias tentativas fracassadas, Jair Bolsonaro acabou escolhendo o general da reserva Hamilton Mourão para ser seu vice na chapa que acabou vitoriosa. Ele atendia ao requisito exposto pelo terceiro filho, o de proteger o presidente, a partir da sombra das Forças Armadas.

Por um lado, um país que viveu 21 anos de ditadura militar, no qual centenas foram sequestrados, torturados e mortos, deveria ter resistência à volta de um general no comando da nação. Até então, os defensores do retorno da ditadura militar formavam um grupo minoritário, meio amalucado e sempre apontado nos movimentos da “nova direita”, na Avenida Paulista, epicentro das manifestações de rua no Brasil. Por outro lado, o vice estaria sintonizado com os quartéis para garantir a presidência, muito mais do que um capitão que chegou a ser preso por indisciplina e que, nas últimas três décadas, tornou-se político profissional. O vice “faca na caveira” seria um seguro anti-impeachment para Bolsonaro.


Hoje, ao final de um primeiro mês de governo com mais crises do que qualquer um dos anteriores, o “mito” começa a ser desmitificado por parte dos mitômanos que o elegeram, já recebe críticas pesadas dentro do seu partido e os descontentamentos no núcleo duro do governo são perceptíveis. Mourão, que até então era conhecido como uma língua solta e truculenta acima das quatro estrelas do peito, tornou-se, por comparação, um exemplo de sensatez, diplomacia e bons modos. Com o bode na sala, outros espécimes tornam-se subitamente aceitáveis.

O “faca na caveira” é elogiado por diplomatas como o embaixador da Alemanha, que diz ter tido uma conversa “excelente” com Mourão, e manda afagos à imprensa pelo Twitter, a mesma rede social em que a família Bolsonaro ataca os jornalistas, algo que funcionou na campanha mas está dando sinais de esgotamento. Mourão, o gentleman, tuitou em 23 de janeiro: “Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da vice-presidência. Boas matérias a todos!”.

Tudo é uma questão de referência. E, quando a referência é Bolsonaro, é fácil um Mourão soar moderado. Em caso de naufrágio, qualquer tábua de pinho vira navio.

Mourão melhorou? Não. Bolsonaro piorou? Não. O que acontece é que agora Bolsonaro é o presidente. Era melhor ele "Jair se acostumando", mas Jair não se acostuma. Segue acreditando que ainda está fazendo campanha e que continuará ganhando no grito das redes sociais.

A série de tuítes que publicou após a divulgação de que o deputado federal eleito Jean Wyllys (PSOL) deixaria o país por ter medo de ser morto é a expressão do comportamento de Bolsonaro. Wyllys, o primeiro deputado declaradamente gay a assumir uma cadeira no Congresso, iniciaria em fevereiro o terceiro mandato. Recebendo ameaças de morte semanais, andava com escolta policial desde março de 2018, quando sua colega de partido, a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, teve a cabeça arrebentada a tiros, um crime até hoje não apurado e impune.

Entre as ameaças que o parlamentar recebeu, estavam as seguintes, conforme divulgou o jornal O Globo: “Vou te matar com explosivos", "já pensou em ver seus familiares estuprados e sem cabeça?", "vou quebrar seu pescoço", "aquelas câmeras de segurança que você colocou não fazem diferença". E esta: “Vamos sequestrar a sua mãe, estuprá-la, e vamos desmembrá-la em vários pedaços que vamos te enviar pelo Correio pelos próximos meses. Matar você seria um presente, pois aliviaria a sua existência tão medíocre. Por isso vamos pegar sua mãe, aí você vai sofrer”.

Duas horas depois da notícia de que deixava o Brasil, uma mensagem foi enviada a Jean Wyllys: "Nossa dívida está paga. Não vamos mais atrás de você e sua família, como prometido. Mesmo após quase dois anos, estamos aqui atrás de você e a polícia não pôde fazer nada para nos parar".

O que deveria fazer o presidente de um país em que um parlamentar é obrigado a abdicar do mandato para salvar a vida? Certamente não mandar uma série de tuítes, começando por “Grande dia!”, seguido por um sinal de positivo. Depois, claro, Bolsonaro disse que se referia ao cumprimento de sua “missão” no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça.

Também no nível escolar (ruim) foi o seu discurso em Davos. Tinha 45 minutos disponíveis para falar sobre seu projeto para o Brasil para uma plateia internacional altamente qualificada e influente. Só ocupou seis minutos e meio. Aparentemente não tinha o que dizer. Diante do público de Davos, sua apresentação foi um “big fail” (grande fracasso), como definiu o jornal americano Washington Post. No púlpito, o presidente do Brasil soava como um estudante medíocre de colégio, apresentando um trabalho copiado de um colega, porque nem convicção havia. As frases não se conectavam umas com as outras.

“Fiasco” foi a palavra usada por uma colunista do jornal francês Le Monde, no Twitter, para definir a participação do presidente do Brasil. Para ampliar o vexame, Bolsonaro, o superministro da economia, Paulo Guedes, o superministro da Justiça, Sergio Moro, e o superdelirante chanceler, Ernesto Araújo, não apareceram para a entrevista coletiva à imprensa. Foram três explicações diferentes, nenhuma convenceu sobre o porquê do desrespeito que chocou jornalistas e os organizadores do fórum. Desconfia-se, porém, que Bolsonaro temia perguntas difíceis sobre o escândalo que ronda o primeiro filho e alcança a conta bancária de sua mulher. Afinal, os jornalistas que cobriam Davos não eram repórteres de estimação.

Bolsonaro, como presidente, é o que sempre foi, aquele tio que constrange as pessoas na festa, porque tosco e sem noção. De esconder sua natureza, ninguém pode acusá-lo. Ele sempre foi isso aí. Dava para fingir que era “mito” enquanto tudo ficava no nível de torcida de futebol. Na presidência da República, porém, sua figura se desloca para outro lugar.

Não é mais Bolsonaro, “o mito”; também não é Bolsonaro, “o coiso”. É a presidência da República, lugar com mística própria, ocupada pela mediocridade. E a mediocridade é perigosa. Os olhos de parte do mundo, como em Davos, percebem e se horrorizam. "Ele me dá medo”, disse Robert Shiller, prêmio Nobel de Economia e professor na Universidade de Yale, depois de ouvi-lo. “O Brasil é um grande país. Merece alguém melhor."