segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A corrupção e o voto

A ONG Transparência Internacional divulgou, na quarta-feira, a mais nova edição do Índice de Percepção da Corrupção, correspondente a 2017, e o Brasil continua a cumprir sua sina de cair nos rankings mais diversos: de 180 países, aparece em 96.º lugar, tendo perdido 17 posições. O índice vai de zero (mais corrupção) a 100 (menos corrupção), e o Brasil tem 37 pontos, três a menos que na edição de 2016.

Importante ressaltar que o índice não mede a corrupção objetivamente, mas a sua percepção entre a população. A própria Transparência Internacional explica que, em países onde a corrupção é prática frequente, a descoberta e ampla divulgação de um esquema tende a tornar o cidadão mais consciente da roubalheira que ocorre à sua volta, o que por sua vez contribui para números piores no índice. No entanto, se depois do impacto inicial há a efetiva punição dos responsáveis, a população tende a acreditar que a corrupção está sendo combatida, o que por sua vez refletiria em melhoria no índice. E o Brasil da Lava Jato é o exemplo perfeito dessa dinâmica.

O índice medido pela Transparência Internacional tem caído desde 2014, no caso brasileiro. Isso coincide com o estouro do petrolão e as primeiras prisões da Lava Jato, que não pouparam figuras importantes da política nacional. O brasileiro descobriu – mais uma vez – que vinha sendo roubado em um esquema montado para garantir o projeto de poder petista, desta vez por meio da pilhagem da Petrobras. As fases da Operação Lava Jato se sucediam, e o juiz Sergio Moro começava a emitir as primeiras condenações. Tanto que, em 2016, a percepção da corrupção entre o brasileiro manteve-se estável: havia um fio de esperança de que este grande mal estava, finalmente, sendo combatido como se deve.

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Mas 2017 trouxe uma série de baldes de água fria: o Supremo Tribunal Federal não julgou nenhum dos réus da Lava Jato com foro privilegiado; Michel Temer continuou mantendo a seu lado figuras suspeitas como Eliseu Padilha e Moreira Franco, este último transformado em ministro para ganhar uma “blindagem”; e o próprio Temer se viu no olho do furacão com as gravações de Joesley Batista, tendo de gastar seu capital político no Congresso para escapar de duas denúncias da Procuradoria-Geral da República. A condenação de Lula por Sergio Moro (a confirmação desta decisão, tendo ocorrido já em 2018, não impactou o índice da Transparência Internacional) não foi suficiente para impedir a população de perceber que o combate à corrupção estava chegando a um beco sem saída.

E, neste ano eleitoral, se o brasileiro está se tornando mais consciente da corrupção que permeia seu ambiente político, ele saberá usar essa informação sabiamente? No passado, o “rouba, mas faz” havia encontrado sua encarnação no ex-prefeito e ex-governador paulista Paulo Maluf, eleito e reeleito inúmeras vezes a despeito dos escândalos em que se via envolvido – em 2006, Maluf foi eleito deputado federal e conseguiu a reeleição duas vezes; agora, está preso na Papuda, com o mandato suspenso por decisão do presidente da Câmara.

Maluf pode estar com a vida política perto do fim, mas a mentalidade que fez dele um vencedor nas urnas ainda persiste. Só isso explica que partidos e figuras que foram protagonistas de todos os escândalos de corrupção recentes continuem gozando de algum prestígio popular, apoiando-se na mística mentirosa do “nunca antes na história deste país” para alegar que fizeram muito pelos pobres, quando na verdade se aproveitaram do legado (jamais reconhecido) de antecessores e de uma conjuntura internacional favorável para promover um “crescimento” e uma “inclusão social” que foram totalmente anulados pela maior recessão de nossa história.

Não basta que o brasileiro perceba a corrupção; é preciso que ele a trate como um critério importante – se não o principal deles – na hora do voto. O “rouba, mas faz” é uma ilusão em que se pequenas melhorias são oferecidas para que o cidadão feche os olhos a uma prática que mantém o Brasil no atraso.

Paisagem brasileira

Mauro ferreira (1958) Paisagem com igreja em MG,2000, osm 45x70
Paisagem com igreja em Minas Gerais (1958), Mauro Ferreira 

Falta um ator no teatro da intervenção: o nariz

Tratada pelo próprio Michel Temer como uma “jogada de mestre”, a intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro aproximou o noticiário de polícia da editoria de política. Contudo, o mais adequado talvez fosse acomodar todas as notícias sobre o tema no espaço reservado às manchetes de economia. O que são os traficantes dos morros cariocas senão homens de negócios?

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Temer declarou “guerra” ao crime organizado. Braga Netto, o general-interventor, arma estratégias para percorrer a anatomia da criminalidade. Tenta-se equipar o poder público para atingir o cérebro do narcotráfico, sem perder de vista que o empreendimento já tem os pés fincados em franquias espalhadas por todos os Estados, com braços que enfeixam negócios variados —da extorsão ao roubo de cargas.

Falta um personagem nesse enredo: o Grande Nariz. Por que existem traficantes?, eis a pergunta singela que todos evitam fazer. Eles estão por aí porque existe um mercado consumidor, eis a resposta óbvia. Vende-se cocaína no Brasil porque há quem a aspire. Vende-se muita cocaína, porque há quem a sorva em grandes quantidades. Simples assim.

Estudo divulgado há dois anos pelo Escritório de Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC, na sigla em inglês) anotou que o Brasil, além de ser um corredor exportador de cocaína, virou um dos maiores mercados consumidores. O relatório estimou que a taxa de consumo da droga no país (1,7% da população adulta) é quatro vezes maior do que a média mundial (0,4% dos adultos).

Para que Temer consiga manter sua pose de “mestre”, será necessário providenciar nos próximos meses um par de prisões espalhafatosas. Não basta anunciar a intenção de higienizar as polícias. A coreografia da guerra exige a captura de prisioneiros vistosos nos morros, que possam ser exibidos à turma do asfalto como troféus das forças interventoras.

O que ninguém diz é que essa modalidade de prisão cenográfica não resolve o problema. Enquanto existir o mercado consumidor sempre haverá um homem de negócios com operadores nos morros para satisfazer a demanda. Prende-se um Beira-Mar, um Ném, um Elias Maluco… E entram no lugar fulano da Rocinha, beltrano da Maré e sicrano do Alemão. Nada muda substancialmente.

Diz-se que a intervenção federal no Rio é uma providências inédita. Que seja. Mas num ponto ela é idêntica às inúmeras operações de garantia da lei e da ordem que transformam as Forças Armadas em polícia. Novamente, arma-se um escarcéu contra o tráfico e suas ramificações. Mas erguem-se barricadas de silêncio ao redor do consumo —como se um pudesse existir sem o outro.

Por que esculhamba-se o traficante e poupa-se sua clientela? Mais uma resposta simples: os consumidores de cocaína estão situados em pedaços do mapa das cidades onde os mandados coletivos de busca e apreensão são proibidos. Não se fala neles porque, se se falasse, talvez não houvesse intervenção no Rio.


O Grande Nariz não está na favela carioca nem na periferia paulista. Ele trafega em ambientes mais sofisticados: festas no Leblon e nos Jardins, sets de filmagem, coxias de shows, camarins de desfiles de moda, recepções à beira do Lago Paranoá, corredores do Congresso, porões da Esplanada, escritórios da Avenida Paulista, redações de veículos de comunicação…

Acionar o Exército para guerrear contra os malvadões incultos de pele escura sempre renderá aplausos fáceis. Mas o desejo de combater o narcotráfico e suas franquias só será genuíno no dia em que a sociedade enxergar o Nariz invisível que financia o fuzil AR-15 distribuído pelos executivos do mal às suas falanges. Impossível derrotar os criminosos sem enfrentar a hipocrisia.

Mais uma vez o povo contra o povo

Uma coisa que me revolta é que eu, que sou trabalhador, não tenho valor nenhum pro governo. To valendo só 900 reais acordando 5 horas da manhã pra pegar o ônibus lotado. Se eu tiver pagando imposto e INSS em dia e tomo tiro na cabeça, vai ser difícil pra caralho conseguir o que tenho direito 
Wellington, 33 anos e morador na Vila Kennedy

O delírio da certeza

Duas coisas fundamentais para o viver: a dúvida e a confiança. O mundo gira em torno desses dois sentimentos. Tanto a dúvida quanto a confiança nos impulsionam. Ambos, porém, estão em falta no Brasil.

Ainda que possa parecer paradoxal, os idiotas têm muitas certezas. Já os sábios têm dúvidas e confiança na necessidade de buscar respostas. No Brasil, os idiotas fazem mais barulho do que os homens comuns e os sábios. A certeza é outro componente da questão central da dúvida e da confiança. Mas é uma vulgata, já que a certeza foi vulgarizada pela sua banalização.

Sem dúvidas e desconfiando de tudo, os adoradores do “não é possível que” utilizam essa expressão como abertura dos trabalhos mentais para, adiante, concluí-los com um “com certeza”. Em especial, nas respostas prontas a perguntas que visam respostas ratificadoras ao que é perguntado. Do tipo entrevista de rua sobre o BBB.

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Nesse caso, perguntado e perguntador são hamsters que dividem a roda onde correm para ficar no mesmo lugar. É o prazer de atender à expectativa de quem pergunta e encaixar a sua previsível resposta em um quebra-cabeça de e para debiloides.Hoje, no mundo, existe uma conspiração contra os especialistas. Ironicamente, o tema é tratado por alguns especialistas e não é revanchismo. Milhares de subcelebridades e celebridades falam sobre tudo com aparente propriedade e são validados pela mídia.

Muitas vezes a mídia opera para transportar o que a mediocridade majoritária quer ouvir e/ou manipular os sentimentos de acordo com as suas expectativas. Ignorantes são indagados e respondem o que serve para validar o que se quer mostrar ao público.

Atualmente, sabemos mais em volume de informação do que sabia Michel de Montaigne em 1580 . Contudo, o que ele sabia vale muito mais do que o que sabemos hoje em termos de filosofia. Na roda do hamster, quanto mais sabemos menos sabemos.

Avançar para trás

Regras eleitorais perfeitas são raríssimas ou simplesmente utópicas. Isso vale para todas as partes do mundo. No Brasil, elas são perversas: parecem servir apenas para perpetuar oligarquias, inibir a participação popular e a renovação.

Cada vez que se mexe nas normas, consegue-se piorá-las.

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O exemplo mais recente disso é a fixação de limites para autofinanciamento de campanhas, generoso benefício dado pelo TSE aos candidatos mais ricos. A questão ainda deverá passar por um novo escrutínio na própria Corte, que tem até o dia 5 de março para publicar as regras de 2018, e no STF, em resposta às ações impetradas pelo PSB e Rede.

Juntam-se à essa estranheza o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, criação do Congresso que estreia este ano com R$ 1,7 bilhão, e o Fundo Partidário, já existente e agora autorizado pelo TSE para compor o caixa dos candidatos. Somados, os dois fundos vão propiciar uma farra de R$ 2,58 bilhões, dinheiro de todos os brasileiros que pagam impostos.

Com eles, o eleitor estará bancando, indiscriminadamente, campanhas de todos os candidatos, inclusive daqueles aos quais se opõe. Nos fundos, direitistas ferrenhos pagam por petistas ou pelo PSOL, a esquerda e o centro financiam Jair Bolsonaro.

Defensores do mecanismo chamam isso de democracia, embora fique anos-luz de distância dela.

Não há nada de democrático na decisão de distribuir recursos com critérios de proporcionalidade definidos pelos parlamentares durante seus mandatos, com usufruto direto do sistema que criaram. Mais: no modelo nacional, não há qualquer vinculo com o número de filiados da legenda.

Partidos políticos, organizações de direito privado e seus candidatos deveriam ser custeados de forma voluntária, por aqueles que comungam ideários.

No máximo, com participação pública vinculada não apenas ao tamanho da representação parlamentar, mas às contribuições individuais de seus militantes. É o que se vê, por exemplo, na Alemanha, que nos anos eleitorais coloca 30 centavos para cada euro doado permanentemente por filiados.

Há outros modelos. Na França, o financiamento público cobre gastos já realizados, após apresentação de notas e, ainda assim, em volumes muito inferiores aos que o Brasil adotou. No total, o estado francês gastou R$ 314 milhões no último pleito, oito vezes menos do que a previsão de financiamento brasileiro.

Por aqui, o eleitor, contribuinte compulsório dos fundos públicos, não teve a chance de aprovar ou reprovar as novas regras. A ele nada foi facultado, nem mesmo o voto, que, contra a sua vontade, continua obrigatório.

É vitima da inadimplência dos políticos, que se esmeram em avançar para trás.
Mary Zaidan