segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Pensamento do Dia

 


É preciso repensar a política em tempo de incerteza

Estou lendo um livro que estimula a imaginação. Chama-se “O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo”. Sua autora é Anna Tsing, e é um trabalho sério de pesquisa coletiva. Algumas conclusões, portanto, não podem ser atribuídas ao livro, mas a meu exercício de imaginar.

Matsutake é o nome de um cogumelo aromático muito valorizado no Japão. Ele sobrevive em áreas devastadas pela indústria madeireira, como no Oregon, e reapareceu em Hiroshima depois da explosão atômica. Esse crescimento inesperado em áreas devastadas faz do matsutake uma inspiração para repensar a política de nossos tempos, marcados pela incerteza: mudanças climáticas, ascensão de Trump, precariedade do trabalho.


Os políticos continuam falando em emprego, estabilidade e progresso. Mas a realidade é de pessoas se virando para sobreviver em situação difícil, que costumam chamar de “o corre”.

No meio do século passado, alguns intelectuais reclamavam da estabilidade, como se fosse uma espécie de prisão. Alguns tinham uma perspectiva revolucionária. Não deixava de ser uma grande certeza sobre o futuro.

Observando a experiência dos catadores de matsutake, vemos como exploram as ruínas e a incerteza. Não deixa de ser também um grande aprendizado ecológico. A indústria explora um produto e, quando o esgota, vai embora deixando todo o resto para trás. Esse resto, na verdade, são vidas que, combinadas com a atividade humana, podem contribuir para uma sobrevivência coletiva.

Essa constatação não significa deixar de lutar para manter a floresta em pé. Mas abre uma grande possibilidade para aproveitar o que ficou para trás, buscar novas associações entre espécies, inventar novos caminhos.

Com essas duas ideias, creio que já poderia iniciar um diálogo em torno de uma nova política. Os partidos tradicionais pensam em crescimento, progresso e estabilidade. Relacionam-se com os trabalhadores precários prometendo emprego fixo. Acham que eles recusam porque estão envenenados pela ideia de empreendimento, de ser seus próprios patrões.

Pode ser que recusem simplesmente porque não acreditam que o sistema ofereça saída estável e que a precariedade seja a melhor forma de sobreviver. Seria preciso um partido do corre, que estudasse sua condição e oferecesse alternativas dentro da incerteza.

Da mesma forma, será necessário um trabalho amplo na área devastada no Brasil, para estudar o que restou, que possibilidade de arranjos produtivos essas formas de vida combinadas podem oferecer. Está cada vez mais difícil acreditar num progresso inclusivo. A tendência é acentuar as diferenças, no impacto da revolução digital. Por mais que se lute contra a destruição ambiental, estaremos sempre diante de terras devastadas, deixadas para trás pela indústria madeireira, pela mineração ou mesmo pela agricultura.

Pensar uma política da incerteza voltada, na economia, para os trabalhadores precários e, na ecologia, para as ruínas do capitalismo talvez seja um caminho realista. De qualquer forma, o livro de Anna Tsing descortina horizontes. Outras ideias podem brotar daí, e isso já é uma grande qualidade de “O cogumelo no fim do mundo”.

O discurso político clássico não pode deixar de prometer crescimento, progresso e estabilidade. Mas pode chegar um tempo em que essas palavras já não façam mais sentido para a maioria da população.

O interessante no trabalho de Anna Tsing é que ela — ao destacar formas de vida que sobrevivem ao capitalismo e suas combinações — não vê um tipo de futuro único, numa só direção:

— Como partículas virtuais num campo quântico, múltiplos futuros espoucam dentro e fora da possibilidade, e a terceira natureza (o que consegue sobreviver ao capitalismo) emerge dentro dessa polifonia temporal.

O progresso condiciona nossa forma de ver o mundo. Emaranhados de vida que sobrevivem à fúria industrial abrem pelo menos uma nova e interessante maneira de olhar para a frente.

Como Trump desorienta a oposição e a mídia

O maior desafio para analistas políticos, jornalistas e governos ao redor do mundo desde que Donald Trump voltou ao poder tem sido diferenciar notícias relevantes de manobras diárias de distração. Trump certa vez pediu a seus principais assessores que pensassem em cada dia de sua presidência como um episódio de um programa de televisão no qual ele derrota seus rivais. Isso implica acumular vitórias – mesmo que meramente simbólicas – e produzir, de forma metódica, notícias bombásticas que lhe permitam pautar a agenda política. Essa estratégia, conhecida como flooding the zone (inundando a área), busca desorientar e atordoar a oposição e a mídia, dificultando a construção de uma resposta eficaz.


Até agora, a tática tem funcionado. Sempre que Trump ameaça anexar territórios estrangeiros, provoca uma previsível onda de indignação. Da mesma forma, o Partido Democrata passou dias, na semana passada, debatendo os riscos de tarifas sobre produtos do Canadá e do México. No fim, Trump recuou, mas conseguiu fazer a oposição perder tempo valioso que poderia ser usado para desenvolver uma estratégia coordenada.

O mesmo ocorreu com suas ordens executivas: Trump assinou mais decretos nos primeiros dez dias de mandato do que qualquer presidente recente em seus primeiros 100. Muitos serão desafiados na Justiça, mas cumprem seu propósito imediato e ilustram a dificuldade da oposição em responder a essa enxurrada de ações.

FUMAÇA. Talvez a maior prova de que a estratégia de Trump está surtindo efeito seja o sucesso do live feed que o New York Times incluiu em sua página principal para acompanhar suas ações. Embora útil, o recurso apresenta um problema fundamental: ao gerar uma cobertura contínua, não ajuda o leitor a diferenciar entre o que é realmente importante e o que é apenas “fumaça” de Trump. Assim, até as declarações mais absurdas ganham ares de urgência.

A ideia de anexar o Canadá, por exemplo, é chocante, mas extremamente improvável de se concretizar. No entanto, ignorar esse tipo de declaração não é uma opção. O impacto da retórica de Trump é real: suas falas inflamam o sentimento anti-EUA no Canadá e reduzem a confiabilidade americana entre aliados, com consequências potencialmente duradouras para a ordem global.

IMPACTO DOMÉSTICO. Embora a maioria das declarações mais polêmicas esteja relacionada à política externa, é provável que suas ações mais duradouras ocorram no cenário doméstico. O governo tem iniciado um amplo desmonte da burocracia federal. Isso inclui incentivos para a saída de servidores de carreira e mudanças estruturais que enfraquecem a capacidade administrativa do governo, envolvendo planos de redução do funcionalismo por meio de programas de demissão voluntária e exonerações direcionadas. Muitos desses programas levarão os quadros mais qualificados, com fácil inserção no setor privado, a saírem do serviço público. Além disso, a decisão de demitir inspetores-gerais responsáveis pela supervisão interna das agências federais sinaliza um movimento deliberado para enfraquecer mecanismos de controle e transparência.

Outro fator é o papel crescente de Elon Musk No governo. Apesar de não ter credenciais de segurança adequadas, Musk tem participado de reuniões estratégicas e influenciado decisões de alto nível. Sua proximidade com Trump levanta questionamentos sobre até que ponto interesses privados estão se sobrepondo à governança institucional, o que pode facilitar tentativas estrangeiras de influenciar processos decisórios internos.

DESAFIO. Apesar de essas questões atraírem menos atenção do que as manchetes diárias sobre declarações provocativas de Trump, seus efeitos podem ser mais profundos. Porém, será um desafio para o Partido Democrata mobilizar a opinião pública em torno dessas questões, vistas como excessivamente técnicas. Da mesma forma, a imprensa continua enfrentando o dilema central imposto pela estratégia de inundação de Trump: reagir imediatamente às provocações diárias ou focar no que realmente importa? O desafio será encontrar um equilíbrio entre resistir à distração proposital e monitorar os impactos concretos da administração. Tudo indica que essa será uma batalha constante ao longo dos próximos quatro anos.

Gaza: uma oportunidade de negócio ou um projeto de desapropriação?

A proposta de Trump não é reconstruir. Gaza não é um projeto de desenvolvimento econômico. Esta é a fase final de um genocídio em câmera lenta — envolto na linguagem dos negócios e da diplomacia.

Um amigo me mandou uma mensagem perguntando se eu tinha assistido à coletiva de imprensa entre Donald Trump e Benjamin Netanyahu. “Felizmente, não assisti ao vivo”, respondi. Levei quase 24 horas para estar no estado de espírito certo para suportar assistir a duas figuras narcisistas no palco, esbanjando elogios uma à outra.

Enquanto eu ouvia atentamente os comentários iniciais de Trump, também percebi os movimentos furtivos dos olhos de Netanyahu em pontos-chave. Com uma expressão presunçosa no rosto, ele repetidamente lançava olhares furtivos para Ron Dermer, o Ministro de Assuntos Estratégicos de Israel, como se silenciosamente o reconhecesse por elaborar as palavras de Trump. Era evidente que o discurso de Trump trazia a marca inconfundível do ministro israelense.

Eu vi Netanyahu, um criminoso de guerra indiciado, explorar habilmente o narcisismo de Trump por meio de bajulação calculada. Suas interações não eram apenas estranhas; eram profundamente reveladoras. O elogio efusivo de Netanyahu foi um movimento calculado, projetado para manter Trump firmemente em seu canto e garantir apoio contínuo às políticas de Israel.

Trump, por sua vez, pareceu mais focado em se deleitar com a admiração do que em lidar com as realidades complexas da destruição israelense de Gaza e das vidas de mais de 2 milhões de seres humanos. Quando ele respondia a perguntas, suas frases eram frequentemente desconexas, cheias de divagações e desprovidas de percepção substancial, destacando sua preocupação com autoelogios.



Desde o momento em que Trump entrou na arena política, Netanyahu reconheceu uma oportunidade de cultivar um relacionamento que serviria aos interesses de Israel. A personalidade de Trump — marcada por um desejo de admiração, um ego frágil e um desejo insaciável de validação — o tornou excepcionalmente suscetível à bajulação. Netanyahu, um vigarista experiente, adaptou habilmente sua abordagem para apelar à vaidade de Trump.

Os comentários de Netanyahu na coletiva de imprensa foram particularmente reveladores. Embora tenha falado longamente sobre a importância do apoio dos EUA a Israel, ele não fez nenhuma menção ao povo palestino ou seus direitos. Esse apagamento não foi acidental; foi uma tentativa deliberada de contornar a ocupação, o deslocamento e o genocídio israelense.

Trump, por sua vez, ofereceu vagas platitudes sobre paz e prosperidade sem abordar qualquer reconhecimento dos palestinos como um povo distinto com direitos legítimos. Embora tenha expressado vaga simpatia pelo sofrimento, ele nunca menciona o direito palestino à autodeterminação, liberdade ou igualdade. A omissão não é acidental; é um movimento calculado para deslegitimar as aspirações palestinas e reforçar a narrativa de que sua situação é meramente uma questão humanitária e não política enraizada em décadas de ocupação e injustiça sistêmica.


O que mais chamou a atenção na coletiva de imprensa foi sua falta de substância. Enquanto a terrível situação em Gaza e na Cisjordânia se torna cada vez mais sombria, nenhum deles ofereceu nenhuma resposta coerente. Em vez disso, eles passaram a maior parte do tempo relatando “conquistas” passadas e reiterando seu comprometimento com um relacionamento que cada vez mais passou a simbolizar apoio unilateral às políticas israelenses.

Uma das propostas mais grotescas de Trump foi sua chamada visão para o futuro de Gaza. Ele falou em criar empregos a partir da destruição que Israel infligiu ao território sitiado, como se a obliteração completa de uma sociedade inteira fosse meramente uma oportunidade de negócios.

Alguém ousaria sugerir que a destruição de cidades europeias nas mãos dos “antigos nazistas” como uma oportunidade de criação de empregos? Que tal a oportunidade de reconstruir os campos de concentração na Polônia? Os sobreviventes teriam aceitado essa narrativa? No entanto, Trump quer que o mundo acredite que o genocídio de Gaza deve ser celebrado como uma chance de “reconstruir melhor” — só que sem as próprias pessoas cuja terra natal é.

Em vez de responsabilizar Israel por sua destruição, Trump quer recompensá-lo. Sua proposta não era sobre reconstruir Gaza pelo bem de seu povo, mas sobre terminar o trabalho que Israel não conseguiu terminar. Afinal, qual melhor maneira de disfarçar o deslocamento forçado do que vesti-lo como “renovação urbana”?

Trump vê Gaza não como uma catástrofe humanitária, mas como um projeto de gentrificação — como um prédio decadente na cidade de Nova York esperando que os incorporadores o invadam e o transformem para seu próprio benefício. A diferença, claro, é que isso não é sobre imóveis — é sobre a destruição sistemática de um povo, sua história e seu direito de existir.

A coletiva de imprensa Netanyahu-Trump foi mais do que apenas um espetáculo embaraçoso; foi uma lição sobre o que acontece quando a liderança é interesse próprio e política performática. Ambos os indivíduos são conhecidos há muito tempo por seu narcisismo e sua disposição de priorizar o ganho pessoal em detrimento do bem público, e o evento de hoje foi um encapsulamento perfeito dessas falhas.

A proposta de Trump não é reconstruir. Gaza não é um projeto de desenvolvimento econômico. Esta é a fase final de um genocídio em câmera lenta — envolto na linguagem dos negócios e da diplomacia.

A sugestão de Trump para novas oportunidades após uma guerra de destruição seria como catar migalhas em um aterro e chamar isso de festa. A ideia de que o genocídio de Gaza deve ser reformulado como uma oportunidade econômica não é apenas obscena — é o projeto final de desapropriação.

Jamal Kanj autor de “Children of Catastrophe" e ”Journey from a Palestinian Refugee Camp to America"

Estamos vivendo uma Nova Inquisição?

Era uma vez a terra das oportunidades, que, em nome da liberdade, calou a ciência. Sob a batuta de Donald Trump, o NIH (Instituto Nacional de Saúde nos Estados Unidos), epicentro mundial de pesquisas biomédicas, transformou-se em palco de medidas que parecem saídas de um roteiro distópico. Pesquisadores foram proibidos de viajar, palestrar ou até mencionar sua profissão – porque, aparentemente, cientistas são subversivos perigosos.

Mas o espetáculo de horror não para por aí. Entre as medidas mais assombrosas, está a instituição de um sistema de delações entre pesquisadores. A ordem é clara: se alguém ousar manter programas de diversidade ou usar “linguagem codificada” para esconder tais iniciativas, é hora de reportar. Caso contrário, as consequências podem ser severas.


Esse ambiente, que mais lembra uma caça às bruxas, tem provocado um efeito paralisante. Conferências canceladas, pesquisas interrompidas e cientistas temendo pela renovação de seus vistos. Até mesmo ensaios clínicos em andamento – que poderiam salvar vidas – estão ameaçados pela burocracia.

A ironia é escancarada: o país que se gaba de premiar o mérito, agora desmantela programas de inclusão e marginaliza a ciência em nome de uma suposta moralidade. Enquanto isso, o atraso na liberação de fundos e na condução de projetos compromete avanços no tratamento de doenças como câncer, diabetes, entre outras – tudo em nome de uma agenda que subestima a inteligência coletiva.

A delação, antes associada a regimes autoritários, basta lembrar do fascismo e do nazismo, agora veste o jaleco branco ou variações do tipo. E o preço dessa política não é apenas a erosão da confiança entre cientistas, mas a estagnação de avanços que poderiam beneficiar toda a humanidade. Num cenário desses, cabe perguntar: quem será o próximo a ser silenciado? Escreva e leia enquanto há tempo!