quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Pensamento do Dia

 


O problema é que a mudança mudou

Muita gente conhece o início do Soneto 53 (outros atribuem-lhe o número 45) de Luís de Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades / Muda-se o ser, muda-se a confiança / Todo o mundo é composto de mudança / Tomando sempre novas qualidades". Menos conhecido e citado é o seu fim, que diz: "E, afora este mudar-se cada dia / Outra mudança faz mor espanto / Que não se muda já como soía".

Talvez seja por duas palavras desusadas no português contemporâneo, "mor" por maior, e sobretudo "soía" com o sentido de ser hábito ou costume, que o fim do soneto é menos citável ou hoje menos compreensível. Porque o que Camões nos está a dizer é, fundamentalmente, que a mudança já não é o que era. A mudança mudou.

Não admira que Camões sentisse isso, uma vez que ele nasceu (segundo se crê, faz agora 500 anos) numa das épocas da história que mais mudanças viram, da expansão da imprensa às guerras de religião na Europa e sobretudo à noção para eles inédita do Novo Mundo.


Por isso ele sentia que a mudança já não era apenas aquela sensação a que os gregos antigos chamavam de "panta rhei", ou seja, de que "tudo flui", e com a qual ele começa o poema.

E nem sequer apenas uma mudança cíclica, expectável, como nas estações do ano, a que ele dedicou o meio do poema ("O tempo cobre o chão de verde manto / Que já coberto foi de neve fria / E, em mim, converte em choro o doce canto"). Nada disso: há também outro tipo de mudança, que não só muda as coisas, mas que muda a sua própria textura ou padrão.

Pensamos muito nas coisas que mudam, mas pensamos pouco na própria mudança em si. Mas fazemos mal porque este tema aparentemente vago e teórico tem sérias consequências práticas. É que, na verdade, não há só uma mudança, mas vários tipos de mudança. A alguns tipos de mudança, gostando ou não, estamos acostumados como humanos que somos.

São eles a mudança constante, incremental ou cíclica. A outros tipos de mudança temos resistências emocionais, como no caso da mudança irreversível. E outros ainda —como é o caso da mudança exponencial— são difíceis até de abarcar cognitivamente. O cérebro humano recusa-se a querer compreender; ficamos perplexos e desorientados; perdemos a confiança nas lideranças, revoltamo-nos e queremos voltar ao passado, mesmo sabendo que é impossível.

Como é evidente, estamos a viver um desses momentos. Não só a mudança mudou, como há várias mudanças que mudaram ao mesmo tempo, e todas elas de tipos diferentes.

A pandemia trouxe uma mudança de tipo exponencial: o cérebro tinha dificuldade em aceitar que a infeção de um indivíduo seria amanhã de dez, cem, mil, 1 milhão e assim sucessivamente. Mas o desenvolvimento da inteligência artificial traz também uma mudança de tipo exponencial, e ainda estamos só no início.

A mudança trazida pelas alterações climáticas é disruptora, brutal e provavelmente irreversível. Mudanças trazem outras mudanças: migrações em massa, guerras, colapso institucional, quem sabe mais o quê?

Um dos nossos maiores problemas hoje é que as pessoas têm medo da mudança, os reacionários faturam com isso, e os democratas e progressistas não sabem explicar como prever, gerir e se beneficiar dessa mudança. Quem souber fazê-lo, em cada uma das áreas que listei acima, encontrará o caminho para sossegar a opinião pública e juntar as vontades coletivas. Até lá, o medo da mudança gerará monstros.
Rui Tavares

Assassinatos e guerra civil eram danos colaterais aceitáveis no plano de Bolsonaro

Agora é oficial. Um relatório detalhado da Diretoria de Inteligência da Polícia Federal, resultado de uma longa e minuciosa investigação, comprova que Jair Bolsonaro planejou manter-se no poder por meios ilícitos e violentos, chegando a colocar o plano em marcha. Bolsonaro e seu círculo íntimo —afinal, ninguém organiza uma operação dessa magnitude sem uma estrutura bem articulada e posicionada.

O relatório detalha quem foram os Goebbels, Himmler, Göring, Heydrich e Röhm de Bolsonaro. A maioria ostenta altas patentes militares —general, almirante, coronel, tenente-coronel—, mas também havia "juristas", políticos e até padre e juiz federal, deixando claro que o desprezo pela democracia não se restringe aos meios militares deste país.Como o círculo íntimo de Hitler, o de Bolsonaro também se dividia em especialidades bem definidas: a propaganda preparava o terreno; os conspiradores construíam pactos de lealdade e alianças estratégicas; os assassinos eliminavam (ou "neutralizavam", como preferem dizer) os obstáculos; os comandantes de tropas se preparavam para enfrentar ou intimidar a resistência; enquanto o núcleo jurídico fornecia um verniz de legalidade às monstruosas ilegalidades e corria para criar leis para um novo regime erguido sobre arbítrio, cadáveres e sangue. Tudo foi planejado, articulado, posto em movimento e, agora, devidamente investigado e documentado.

Uma conspiração com tantas etapas naturalmente teria várias oportunidades de fracasso. E fracassou. Não, certamente, por falha da propaganda, que entregou aos golpistas uma base popular extremamente mobilizada e disposta a tudo, como se viu no 8 de Janeiro, quando o beneficiário do golpe já havia recuado e o plano militar estava desabilitado. Tampouco falharam os que estavam prontos para legalizar e institucionalizar o golpe consumado, como atestam os inúmeros planos estratégicos, minutas do golpe e até o discurso de posse do novo ditador encontrados pela polícia.


O elaboradíssimo plano para "neutralizar" Alexandre de Moraes foi abortado, mas não devido a falhas do núcleo de assassinos, recrutados entre os agora famigerados "kids pretos", e sim por força das circunstâncias e, posteriormente, por decisão política.

A verdadeira falha parece ter ocorrido entre os conspiradores, que não conseguiram convencer todos os envolvidos de que os ganhos superavam os riscos. Não foi virtude moral nem apego à democracia o que emperrou a engrenagem golpista, mas cálculos pragmáticos. Alguns conjurados em posição de comando reavaliaram custos, perdas prováveis e riscos presumidos, concluindo que não valia a pena. Afinal, sequestrar e assassinar um ministro do Supremo, envenenar o presidente eleito, "neutralizar" o vice-presidente, prender opositores e correr o risco de uma guerra civil —e tudo isso para quê? Para garantir poderes ditatoriais a Jair Bolsonaro, alguém com perfil mais de golpista de artigo 171 que de golpista comandante de tropas? Só para lunáticos essa conta fecharia.

Ainda assim, foi uma proeza considerável. Não parece plausível que um homem com tão poucas qualidades tenha convencido tantos a arriscar tudo por sua permanência no poder. É mais razoável supor que havia interesses tão determinados a destruir um regime em que esquerda e liberais podem vencer eleições que aceitaram Bolsonaro como um inconveniente menor. Isso era o de menos para quem considerava a guerra civil como hipótese e achava "danos colaterais aceitáveis" as mortes de Moraes e sua equipe de segurança, os assassinatos de Lula e Alckmin, além de planejar, como primeira medida estratégica pós-golpe, a prisão preventiva dos juízes do STF "geradores de instabilidade".

O relatório não apenas revela as entranhas de uma conspiração, mas ilumina a natureza de alguns protagonistas da política nacional. Mostra o desconforto de boa parte da elite militar com governos civis, com os freios impostos por uma Constituição democrática e com a abstinência de poder político. E o quão longe estão dispostos a ir para mudar essa situação.

Assim como expõe a completa ausência de escrúpulos de Bolsonaro e de seus aliados, mesmo considerando apenas o senso moral mais elementar. Afinal, o que se pode dizer de alguém que, para permanecer no poder, aceita que se elimine o juiz que arbitrou as eleições, mate-se o adversário que o derrotou nas urnas e se arraste o país para uma guerra civil? Tal disposição só evidencia a absoluta falta de qualquer limite moral de Bolsonaro e do projeto autoritário que ele representou.

Homem atirado da ponte lembra caso do Rio da Guarda

Treze policiais envolvidos direta ou indiretamente no episódio em que um agente jogou um homem dentro de um rio na região de Cidade Ademar, Zona Sul de São Paulo, foram afastados de suas funções pela Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo. Dois sargentos e 11 cabos e soldados estão sendo ouvidos. O fato ocorreu na madrugada de segunda-feira, após uma abordagem policial de duas pessoas, uma das quais é a testemunha do caso, que foi gravado. A vítima da violência policial estaria viva, mas não foi localizada.

Durante uma patrulha, os policiais deram ordem de parada a duas pessoas que trafegavam em uma moto. Os rapazes fugiram, e os PMs, então, iniciaram uma perseguição que terminou com a captura da dupla. Um deles foi jogado no rio por um dos policiais. O outro chegou a ser levado para a delegacia. Agora, é a principal testemunha do caso. Câmaras corporais dos policiais registraram o episódio, que representa uma escalada da violência policial em São Paulo, onde vigora uma política de endurecimento das ações repressivas da Polícia Militar.

O episódio lembra uma chacina ocorrida no Rio de Janeiro, na década de 1960, durante o governo de Carlos Lacerda (UDN), no antigo Estado da Guanabara. A "Operação mata-mendigo" foi revelada pelo jornal Última Hora, vespertino que revolucionou a imprensa carioca. Moradores de rua, Elias Marcondes, Expedito Jesus Vieira e José dos Santos foram detidos e obrigados a entrar na caminhonete do Serviço de Repressão à Mendicância (SRM), órgão ligado à Secretaria de Segurança do Estado.



Era noite de segunda-feira, 15 de outubro de 1962, quando foram levados até os limites da então capital federal, em Santa Cruz, na Zona Oeste. O carro parou às margens do Rio Guandu, onde Elias, Expedito e José foram amarrados e jogados no curso d'água. Os três morreram afogados. Mais três viagens seriam realizadas. Carlos Lacerda promovia uma política de remoção de favelas na Zona Sul do Rio e pretendia erradicar a população de rua das vias públicas da região. Os agentes destacados para esse serviço decidiram resolver o problema jogando-os nos rios da Guarda e Guandu, que eram pontos de desova de cadáveres.

Cerca de 20 pessoas foram comprovadamente tiradas das ruas e lançadas nos dois rios pelos agentes do SRM, entre outubro de 1962 e janeiro de 1963, nove das quais morreram. A chacina só foi interrompida porque, em 17 de janeiro de 1963, a pernambucana Ondilina Alves Japiassu nadava bem. Jogada no Rio da Guarda, nadou até a outra margem e fugiu. Dias depois, denunciou a "Operação Mata-Mendigos", ao jornal Última Hora. Quatro agentes da SRM foram presos e acusados da chacina.


O guarda civil José Mota, o fiscal da Guarda Noturna Pedro Saturnino dos Santos (mais conhecido como Tranca Ruas), o motorista Mário Teixeira, da Assistência Policial, e Nilton Gonçalves da Silva, servente do Ministério da Justiça, confessaram os crimes. Segundo a edição de O Globo de 28 de janeiro de 1963, a certa altura do seu depoimento, Tranca Ruas, que admitira ter disparado um tiro no ouvido de uma vítima antes de jogá-la no rio, denunciou os demais: "Eu não amarrei o peste sozinho! Todos fizemos isso, e eu, que já estou desgraçado, não posso pagar tudo sozinho. Vocês me ajudaram a amarrar o doido e jogar ele no rio!".

Em 12 de fevereiro, os acusados da matança participaram da reconstituição do crime promovida pela polícia e pelo Ministério Público. Demonstraram como várias de suas vítimas resistiram e foram torturadas antes de serem lançadas ao rio. Ondilina não foi a primeira a escapar. Um homem identificado como Saci chegou a se segurar numa proteção de ferro na margem do rio, mas teve as mãos golpeadas com uma lanterna. Ele caiu na água, mas conseguiu nadar até a margem e começou a gritar. Assustados, segundo os depoimentos, os agentes fugiram levando Maria do Socorro, que foi espancada e abandonada numa rua. Estima-se em 50 pessoas o total de desaparecidos.

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Assembleia do Estado da Guanabara constatou que os chefes do Serviço de Repressão à Mendicância autorizavam "deportações" de pessoas em situação de rua para suas cidades de origem, fora da capital. Entretanto, disseram não saber da matança. Relator da CPI, o deputado Paulo Duque livrou, em seu relatório, qualquer responsabilidade do governador Carlos Lacerda no escândalo.

Essa chacina se tornou um exemplo de violência de Estado contra populações vulneráveis em situação de rua. A associação ao caso do homem jogado no rio pelos policiais na Cidade Ademar, flagrados pelas próprias câmaras corporais, é pertinente. A política de endurecimento da repressão e flexibilização do uso de câmeras corporais estimula a violência policial desmedida. Sem elas, os policiais do 24° Batalhão da PM, localizado na cidade de Diadema, na Grande SP, poderiam ocultar o fato do homem atirado no rio, que ficaria na obscuridade.

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), reagiu: em uma rede social, disse que o policial militar que "atira pelas costas" ou "chega ao absurdo de jogar uma pessoa da ponte" não está à altura de usar farda. Será investigado e "rigorosamente" punido. O secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite (PL), também criticou a ação do policial militar: "Anos de legado da PM não podem ser manchados por condutas antiprofissionais". O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, também emitiu uma nota pública de repúdio: as imagens são "estarrecedoras e absolutamente inadmissíveis".

Nunca fomos leitores

Toda vez que comento notícias, lamentando o decréscimo do hábito de leitura no Brasil, tenho a sensação de estar perdendo tempo e enganando meu interlocutor. É elementar: só podemos perder um hábito que temos, não um que nunca tivemos. Quem nunca fumou não tem como parar de fumar. Quem nunca leu não pode deixar de ser leitor. E, com as devidas desculpas aos que afirmavam o contrário, no Brasil o hábito de leitura, como se diz, "não pegou". Nunca.

Com exceção de meia dúzia de leitores teimosos, entre os quais se inclui o punhado de amigos que me leem, no Brasil não se lê. Estou falando, evidentemente, de ler como hábito, como vício, como dependência, estou falando de ler livros inteiros e entender o que se lê, de absorver, assimilar o escrito, como falava Antonio Cândido, e só, então, questionar o escrito, não passar os olhos e redigir um comentário idiota, demonstrando despreparo e ignorância. Falo de ler sendo letrado, não apenas alfabetizado. Desse tipo de leitores, temos poucos. Apesar dos esforços de meia dúzia de valentes batalhadores pela democratização do saber. O fato é que não somos um país de letrados. E, como sempre, a história ajuda a explicar por quê.


Para início de conversa, nossos "descobridores", os queridos portugueses, quando utilizavam nosso território como colônia, impuseram uma série de limitações culturais aos brasileiros, entre as quais a proibição de disporem de máquinas impressoras de livros. Assim, apenas no início do século 19, quando a América espanhola tinha universidades havia três séculos e graças a Napoleão Bonaparte (que fez a família real fugir de Portugal e se instalar no Brasil), é que se criou a Imprensa Régia e livros começaram a ser confeccionados em nosso país! Até então, eles tinham que ser importados, o que implicava em onerá-los e limitar sua circulação.

Por outro lado, não havia grande demanda por livros, pois a leitura não era estimulada, nem a laica, nem a religiosa, uma vez que uma das funções dos sacerdotes católicos era a de explicar as questões religiosas que importavam, para que o fiel não tivesse motivos para investigar, por conta própria, e eventualmente questionar o próprio poder da verdade única. Nem a Bíblia se estudava. Decorava-se apenas algumas rezas e obedecia aos sacerdotes. Afinal, a verdade única era a da Igreja. Para quem insistisse em ter visões diferentes da oficial, havia a Santa Inquisição com seus instrumentos de tortura e fogueiras. Assim, eram tratados os candidatos a dissidentes.

Pouca gente lia. Além de saber decifrar a escrita (algo raro por aqui), era necessário ter grande dose de curiosidade intelectual e possuir dinheiro para importar livros. Ser leitor no Brasil durante o período colonial não era para qualquer um.

E continuou assim, mesmo no século 19, a época dos nossos Pedros, o I e o II. O enorme contingente de negros escravizados raramente era alfabetizado, o mesmo acontecendo com os numerosos membros de grupos indígenas, também marginalizados. Mesmo para o restante da população brasileira não havia programas consequentes de acesso às letras neste território em que os cartórios e o bacharelismo improdutivo davam as cartas. A cultura oral prevalecia em detrimento de conhecimentos mais estruturados que dessem conta de, pelo menos, buscar compreender os avanços científicos e culturais dos quais o século 19 era pródigo.

Lembro-me sempre da narrativa que, no livro didático que minha classe utilizava, falava da República proclamada por Deodoro da Fonseca diante do povo abestalhado, que sequer entendia o que estava acontecendo. Claro que os militares sabiam muito bem o que estavam fazendo, mas a população presenciando a história sem entendê-la é um retrato da relação entre os poucos poderosos e a "plebe rude", que não somente não era chamada a se manifestar, mas sequer se dava conta do que se falava. Este era o Brasil no final do século 19.

Na República, tivemos, finalmente, momentos iluminados, com alguns políticos e um punhado de educadores entendendo que da quantidade se obtém a qualidade e que era preciso dar oportunidade a todos para que o país pudesse crescer e ter gente qualificada em diferentes áreas, seja na esportiva, na artística, nas ciências e nas letras, na administração privada e na pública. Ao longo do século 20, o país se urbanizou, modernizou-se, ganhou salas de aula nas cidades e privadas nas casas, mas, a despeito dos esforços de educadores do porte de uma Magda Soares, não avançou muito nos hábitos de leitura.

Nunca se leu muito neste país, essa é a triste verdade. E sempre se leu mal, como se a ignorância, uma vez assumida, pudesse valer como se fosse um título honorífico. Não é. A fase de mostrar músculos poderosos ficou para trás. Agora o mundo é dos que sabem. Parece que ainda não nos demos conta disso. Que tal nossas autoridades da área de educação criarem projetos corajosos, ousados, como os de países que, em diferentes fases da história e em diferentes lugares do planeta, praticando diferentes regimes políticos, fizeram grandes revoluções educacionais e mudaram radicalmente para melhor?