sábado, 30 de novembro de 2024

Pensamento do Dia

 


Brasileiro, homem do amanhã

Há em nosso povo duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Constituindo as colu­nas da brasilidade, as duas constantes, como todos sabem, são: 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar.

A primeira é ainda escassamente co­nhecida, e muito menos compreendida, no estrangeiro; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada no exterior, sem que o corpo diplomático contribua direta ou sistematicamente para isso.

Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã) não é no Brasil propriamente uma deliberada norma de conduta, uma diretriz de base. Não, é mais, é bem mais forte do que princípio voluntarioso: é um instinto inelutável, uma força espontâ­nea da estranha e surpreendente raça bra­sileira.

Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada).


Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo, se me permitem, psi­cossomático. Trata-se de um reflexo condi­cionado, pelo qual, proposto um problema a um brasileiro, ele reage instantaneamente com as palavras: daqui a pouco; logo à tar­de; só à noite; amanhã; segunda-feira.

Adiamos tudo, o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, pelo con­trário, que tantas vezes se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista, a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, o pagamento da prestação, adiamos até o amor. Só a morte e a promissória são mais ou menos pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento trimestral da reforma, uma instituição sacrossanta no Brasil. Quanto à morte, é de se lembrar dois poemas típicos do Romantismo: na “Canção do Exílio”, Gonçal­ves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, pra cá; já Álvares de Azevedo, tem aquele poema famoso cujo refrão é sintomaticamente bra­sileiro: “Se eu morresse amanhã!” Nem os românticos queriam morrer hoje.

Sim, adiamos por força de um incoer­cível destino nacional, do mesmo modo que, por força do destino, o francês poupa di­nheiro, o inglês confia no Times, o português espera o retorno de dom Sebastião, o ale­mão trabalha com um furor disciplinado, o espanhol se excita diante da morte, o japo­nês esconde o pensamento e o americano usa gravatas insuportáveis.

O brasileiro adia; logo existe.

Como já disse, o conhecimento da nos­sa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, achei no fim do volume algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embai­xadas e consulados, estatísticas, informações culinárias, o autor intercalou o seguin­te tópico:

DES MOTS
Hier: ontem
Aujourd’hui: hoje
Demain: amanhã
Le seul important est le dernier


A única palavra importante é amanhã. Esse francês malicioso agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.

Paulo Mendes Campos, Manchete (14.3.1964)

Populismo requer humildade dos especialistas

Em 2018, o Porta dos Fundos lançou a série “Polêmica da semana”, satirizando a prática jornalística de dar voz aos “dois lados”, mesmo quando uma das posições é desqualificada. No primeiro vídeo da série, um mediador tenta permanecer equidistante num debate entre a defesa científica das vacinas por uma professora da UFRJ e a defesa da eficácia do “óleo de coco e da bala de gengibre” por um gamer. A série segue satirizando outras falsas polêmicas, como o aquecimento global e o racismo. Como quase tudo do Porta dos Fundos, os vídeos são muito engraçados. O problema que apresenta, porém, é mais complicado do que parece: qual a responsabilidade dos especialistas na era do populismo?

Movimentos populistas, como bolsonarismo ou trumpismo, caracterizam-se pela profunda desconfiança das elites intelectuais e das instituições liberais. Populistas não confiam nos cientistas, nos jornalistas, nos artistas e em suas respectivas instituições. Acreditam que esses “sabidos” são movidos por interesses escusos ocultos — pela agenda woke ou por privilégios econômicos, como as “boquinhas” da Lei Rouanet. O populismo foi capaz de organizar um ressentimento social contra os especialistas e transformá-lo em plataforma política poderosa. Diante do desafio populista, as instituições têm agido da maneira recomendada pela sátira do Porta dos Fundos, negando acesso a vozes desqualificadas. Será que essa estratégia tem funcionado?


Negar espaço institucional a tais vozes não fará com que desapareçam ou permaneçam marginalizadas. O discurso populista tem forte penetração social e, quando a universidade ou o jornalismo profissional não oferecem respostas adequadas, as inquietações encontrarão acolhimento nos meios militantes. Há vários motivos por que devemos levar o discurso populista a sério, descer do pedestal das instituições consagradas e nos engajar didaticamente com as inquietações do povo comum seduzido pelo discurso populista.

Em primeiro lugar, temos de ter respeito e consideração com as inquietações. Caçoamos demais de gente que quer se certificar de que as vacinas são seguras. Não apenas caçoamos, também caricaturamos sua posição. Não ajuda a persuadir e ainda colabora para ampliar a desconfiança dos especialistas. Muitas posições populistas têm formulações mais sofisticadas que deveríamos incorporar, entender e debater, no espírito da “caridade interpretativa”, princípio filosófico de que devemos sempre tomar a versão mais racional das posições do interlocutor.

No debate sobre o voto impresso, juízes, jornalistas e acadêmicos retrataram a proposta como retrocesso ao voto manual dos anos 1980 e 1990 ou como se sugerisse que o eleitor poderia levar o voto impresso para casa. A proposta, porém, previa que a urna eletrônica imprimisse uma cópia do voto automaticamente numa urna física, para conferência em caso de suspeita de fraude — uma ideia razoável, adotada noutros países e respaldada por especialistas. Deveríamos ter enfrentado a proposta real e mostrado que ela não poderia ser implementada naquele momento por questões financeiras e logísticas. Além disso, era necessário explicar como essa proposta séria era usada para promover desconfiança em nosso robusto sistema eleitoral. A estratégia da caricatura não funcionou, fez a população se sentir desrespeitada, com ainda menos confiança nos especialistas.

Fizemos o mesmo com o debate sobre o poder moderador atribuído às Forças Armadas pela leitura dos golpistas do artigo 142 da Constituição, apresentando-o como se fosse uma interpretação amalucada, e não como um incômodo enxerto autoritário imposto pela ditadura na Constituinte de 1988. Poderíamos ter explicado isso e, em seguida, argumentado que ele não era acolhido pelo espírito democrático do conjunto da Carta. Mas preferimos tratar os proponentes como iletrados e ignorantes.

Fizemos isso de novo com o debate sobre os excessos do Judiciário, apresentando as críticas contra as exclusões de contas nas redes sociais como se fossem apenas uma defesa do direito de atacar a democracia ou de publicar fake news. No entanto a ideia de que essas exclusões poderiam configurar censura prévia era um lugar-comum no debate jurídico especializado antes dos eventos do 8 de Janeiro. Muitas vezes, temos feito o oposto do princípio da caridade interpretativa, acreditando, de forma equivocada, que maltratar o interlocutor e sugerir que siga a luz dos especialistas será suficiente para convencê-lo.

O caminho atual de ridicularizar, desqualificar e caricaturar falhou em recuperar a confiança pública nas instituições. Mais que nunca, especialistas precisam adotar uma postura humilde e didática, engajando-se com as preocupações populares e mostrando, com respeito, que o conhecimento científico e as instituições liberais ainda podem ser os pilares de uma sociedade democrática.

Petroleiras são responsabilizadas por crise do lixo plástico

É até difícil de conceber o que 400 milhões de toneladas representam. No entanto, esse é o volume de plástico virgem produzido anualmente – o equivalente ao peso de toda a população humana.

Mesmo com essa pegada gigantesca, o plástico está em vias de ocupar ainda mais espaço no mundo. Projeções atuais sugerem que a produção praticamente triplicará até 2060. Estima-se que 20 milhões de toneladas de plástico acabem no meio ambiente a cada ano, enquanto as taxas anuais de reciclagem global são de apenas 9%.

Há anos, especialistas e grupos da sociedade civil têm alertado sobre a impossibilidade de resolver o problema das crescentes montanhas de resíduos plásticos apenas por meio da reciclagem. Um limite para a produção tem sido sugerido no lugar, na contramão do que vem acontecendo na prática.

Em uma era de expansão das fontes de energia renováveis, o aumento do volume de produção de plástico virgem tem muito a ver com os setores de petróleo e gás, já que a grande maioria desse material é produzida a partir de combustíveis fósseis.

Cavalo em meio a lixo plástico no reservatório de Cerron Grande (El Salvador)

"Atualmente, as empresas de combustíveis fósseis não dependem da venda de gasolina ou combustível para energia ou transporte como forma de se manterem vivas", disse Delphine Levi Alvares, gerente da campanha global de petroquímicos do Centro de Direito Ambiental Internacional (CIEL), em um comunicado. "Elas estão dependendo cada vez mais da produção de produtos petroquímicos."

Em outras palavras, as empresas que tradicionalmente vendiam combustível para o mundo agora estão investindo cada vez mais na produção de plástico. Na ordem de dezenas de bilhões de dólares.

A redução da produção surgiu como uma questão polêmica durante dois anos de negociações para chegar a um tratado global sobre plásticos. Ainda não se sabe se a rodada final, em andamento na Coreia do Sul, chegará a um acordo sobre esse ponto.

Mas há outros movimentos significativos em curso para forçar mudanças, como a queixa legal apresentada no início deste ano pelo estado americano da Califórnia contra a ExxonMobil, grande empresa de petróleo e gás.

Na ação judicial, o procurador-geral da Califórnia, Rob Bonta, alega que a ExxonMobil, a maior produtora de plásticos de uso único do mundo, "promoveu agressivamente o desenvolvimento de produtos plásticos baseados em combustíveis fósseis e fez campanha para minimizar a compreensão do público sobre as consequências prejudiciais desses produtos".

Dessa forma, a empresa "enganou os californianos por quase meio século ao prometer que a reciclagem poderia e resolveria a crescente crise do lixo plástico", sustenta a procuradoria.

Mark James, diretor interino do Instituto de Energia e Meio Ambiente da Faculdade de Direito de Vermont, disse que, embora a ExxonMobil não venda diretamente aos consumidores, as empresas de petróleo e gás têm sido muito intencionais na criação de mercados para os produtos plásticos que vão para a cesta de compras.

"Definitivamente, houve marketing da reciclabilidade dos plásticos para esses usuários finais", disse ele. "Mas essa é uma criação do setor e, quando sabemos disso, podemos entender tudo o que eles têm feito para manter essa falsa sensação de reciclabilidade de seus produtos."

Em resposta, a ExxonMobil argumentou que as autoridades da Califórnia "sabiam que seu sistema de reciclagem não era eficaz" e não agiram. Procurada pela DW, a empresa não comentou o assunto.

Levi Alvares vê a ação judicial da Califórnia como um passo fundamental para unir os pontos que o público em geral nem sempre vê – o elo entre a produção de plástico e as empresas de combustíveis fósseis.

"Esse tipo de ação judicial realmente consolida na mente das pessoas essa tendência de que muitos não estão conectando o impacto que essas empresas têm sobre a crise climática ao impacto que elas têm em outros setores."
"Reciclagem avançada" seria a solução?

Apesar da taxa historicamente baixa de reciclagem global – apenas 10% de todo plástico já produzido foi transformado em outra coisa – e da realidade de que muitos produtos não podem ser facilmente transformados em outros bens, a ExxonMobil está apostando na "reciclagem avançada". Essa tecnologia, segundo a empresa, "converte os resíduos plásticos de volta em blocos de construção molecular", o que significa que eles se tornam a matéria-prima para novos produtos.

A empresa afirma ter usado a reciclagem avançada para "processar mais de 60 milhões de libras [aproximadamente 27 mil toneladas] de resíduos plásticos em matérias-primas utilizáveis, mantendo-os fora dos aterros sanitários". E poucas semanas depois que a Califórnia entrou com a ação, a ExxonMobil anunciou que estava expandindo sua capacidade.

Mas a denúncia da procuradoria californiana, que se baseia em dois anos de investigação, diz que mesmo no "melhor cenário possível" da ExxonMobil, a reciclagem avançada será responsável por uma pequena fração do plástico que a empresa continua a produzir. E, portanto, "nada mais é do que um golpe de relações públicas destinado a incentivar o público a continuar comprando plásticos de uso único que estão alimentando a crise da poluição por plásticos".

Adam Herriott, especialista sênior da ONG de ação ambiental global WRAP, afirma que, devido à sua posição no início da cadeia de suprimentos de plástico, as empresas de combustíveis fósseis "afetam significativamente o volume de plástico que entra no mercado" e que "ao participar ativamente dos esforços para reduzir a produção de plástico virgem, elas podem ajudar a promover mudanças sistêmicas".

No entanto, assim como outras importantes empresas de combustíveis fósseis, petroquímicas e de bens de consumo de alta rotatividade, a ExxonMobil é membro da Alliance to End Plastic Waste (AEPW), uma organização global independente e sem fins lucrativos, que trabalha para lidar com o plástico depois que ele se torna resíduo, em vez de abordar o problema por meio da redução da produção.

Em um e-mail enviado à DW, Louise Lam, gerente de comunicações corporativas da AEPW, disse que seu mandato se concentra principalmente no desenvolvimento de "soluções que apoiem a coleta, a classificação e a reciclagem de resíduos plásticos para promover uma economia circular para o plástico". Lam acrescentou que a AEPW acredita que "é a soma do trabalho das várias partes interessadas – de soluções 'upstream' a 'downstream' – que ajudará a resolver o desafio".

Há muita coisa em jogo no caso da Califórnia contra a ExxonMobil. Além de definir se a empresa será condenada a atender às exigências da procuradoria, que incluem reparações financeiras, e se deixará de fazer alegações enganosas, o processo pode criar precedente e levar outras empresas de combustíveis fósseis para os tribunais.

Patrick Boyle, advogado de responsabilidade corporativa da CIEL, diz que espera ver mais casos desse tipo nos Estados Unidos, e até mesmo em outros países, porque as provas e os depoimentos apresentados no contexto do processo da Exxon – que provavelmente se desenrolará ao longo de alguns anos – se tornarão registros públicos.

Mesmo que um caso não pareça exatamente com esse litígio contra a Exxon, com essas alegações específicas, as evidências coletadas podem ser aproveitadas no futuro para combater outros casos relacionados a questões como microplásticos, lavagem verde ou licenças para reciclagem avançada, afirma Boyle.

"Portanto, acho que há muitas conversas e 'brainstormings' realmente interessantes a serem realizados e iniciados com parceiros para ver como podemos aproveitar o que obtemos aqui, no contexto internacional."

Enquanto isso, Levi Alvares diz que a queixa contra a Exxon está fortalecendo o entendimento de que os resíduos plásticos são um problema "criado pela indústria".

O que andam ensinando nas escolas militares?

Pelo português típico dos bordéis de zona portuária, pela visão de mundo da altura de uma sarjeta e pelo apego à violência com base na premissa de que atentados à vida são meios que justificam quaisquer fins, os militares presos pela Polícia Federal por terem elaborado um plano para matar o presidente da República, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal, na passagem de 2022 para 2023, entreabrem três perguntas.

São elas: 1 - Qual a formação que esse pessoal obteve nas escolas militares?; 2 - Em que medida eles representam o alunado médio dessas escolas?; 3 - Em caso negativo, de que modo esses militares conseguiram diplomar-se e fazer uma carreira nas Forças Armadas, ascendendo a posições de destaque e chegando à irresponsável iniciativa de afrontar o Alto Comando do Exército ao planejar um golpe de Estado?


Uma das respostas possíveis é a que tem sido dada por importantes historiadores, como José Murilo de Carvalho. Segundo eles, a República foi fruto de uma intervenção militar, configurando um golpe que viciou o regime político desde seu início. A partir daí, a intervenção militar na vida pública teria se convertido numa espécie de norma, em decorrência da propensão dos membros das Forças Armadas a intervir na via política quando assim o desejassem, como se sua missão fosse tutelar a sociedade.

Outra resposta tem sido dada por respeitados analistas e sociólogos, como Roberto Godoy, Eliezer de Oliveira e Celso de Castro. Por ficarem reclusos aos quartéis e às academias, apartando-se do restante da sociedade, os militares transformaram-se progressivamente num grupo social específico dotado de formação técnica. Constituindo-se numa corporação disposta a se emparelhar com a elite civil, eles se imaginaram como um "poder moderador", agindo a partir daí como um poder potencialmente desestabilizador da ordem jurídica.

Por mais que nos primórdios do golpe de 1964 o então ministro Roberto Campos dissesse que o "‘projeto de grandeza’" do novo regime apagaria "a imagem do militar como um profissional abrutalhado pela caserna, de treinamento estreito e bitolado", isso não ocorreu, como revelam as gestões de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Desde então, o que se vê é um confronto entre duas burocracias. A inerente ao sistema representativo, com suas negociações e acertos, garantindo governabilidade mas não o desenvolvimento econômico e social. E a burocracia militar, com suas concepções de patriotismo. Enquanto na vida política os atores são obrigados a respeitar a ordem jurídica, no caso dos militares —ainda que estejam sujeitos ao direito positivo— prevalecem mais a autoridade hierárquica superior e os regulamentos disciplinares.

São duas formas de pensar e agir, como dizia o professor Oliveiros Ferreira, nos anos 1960. Ao decidir, o burocrata civil se ampara nas leis, com base nas quais pode se recusar a cumprir decisões impostas por seus chefes, colocando-os diante da alternativa de serem responsabilizados no caso de irregularidades.

Já o militar se ampara em decisões superiores tomadas por seus chefes e adotadas com base em princípios diferentes daqueles que regem os cidadãos comuns. Como os dois grupos disputam o controle de recursos escassos, decorre daí a tensão entre eles —e, principalmente, a hostilidade dos segundos aos primeiros.

Este ponto é essencial. O que se viu na prisão de militares pela PF não é apenas um choque entre as duas burocracias, como em 1964. Foi, sim, um choque dentro da própria burocracia militar. Foi um embate em que os defensores de um plano de assassinato de três autoridades agiram contra a vontade de seus próprios superiores. E os palavrões que disseram ao afrontar generais oficialistas dá a medida do desrespeito desse pessoal pela hierarquia.

Felizmente, as instituições foram mais fortes do que esses aventureiros bolsonaristas. Mas isso não obscurece as indagações feitas acima: o que se passa com as escolas militares, que diplomam fardados sem formação e condições morais de vestir uma farda?

Influencers mirins

Estarrecido. Foi como me senti num tempo em que nada mais estarrece, com a matéria da GloboNews sobre influencers mirins e seus coaches. São crianças de 11, 12 anos dizendo que ganham mais de R$ 100 mil por mês influenciando. Para que estudar? Para que trabalhar? É tudo tão fácil e agradável. É só postar vídeos de cenas divertidas, viagens, bichos, dancinhas, e falar o que fala uma criança de 11, 12 anos. Se forem bonitinhos, com graça, com personalidade, é tiro certo, ganharão milhares de seguidores, influenciarão a opinião e o gostos de milhares de outras crianças. Logo serão patrocinados por uma marca de produtos para crianças, venderão reels e stories como espaço publicitário.


Sim, a publicidade gasta cada vez mais dinheiro na internet do que na mídia tradicional. Já estão no mercado malandros que vendem cursinhos para aspirantes a influencer mirim. O pior: muitas vezes os pais incentivam. Em alguns casos são crianças pobres que se tornam arrimo de família, o que é bacana, em outras são os pais, de várias classes sociais, que estimulam e faturam em cima da popularidade do seu influencer mirim. Um vídeo promocional de um cursinho impressiona: o garoto paupérrimo que dá para o pai seu grande sonho, um celular — a arma de fazer dinheiro do filho. Não é preciso dizer que as consequências serão desastrosas, para influenciadores e influenciados.

Sim, tem todo um problema legal, de menores de tantos anos só poderem exercer certas atividades com autorização judicial. No caso de novelas, filmes, teatro e comerciais, a fiscalização pode ser realizada com relativa facilidade. Mas um influencer mirim... acho que a lei ainda nem prevê essa possibilidade. Os juizados de crianças e adolescentes podem tirar do ar páginas e sites de crianças? Como controlar e fiscalizar isso, sem a ajuda dos pais? Mas os pais querem essa grana mole. Quem não?

Estarrecedor 2: saber que 9 entre 10 crianças, quando perguntadas o que queriam ser quando crescessem, responderam em massa: influencer. É claro: moleza máxima, é só fazer o que quiser e gravar em vídeo, não tem que fazer nenhum esforço, nenhuma pesquisa, estudar nada. O que pode ser melhor?

As dicas e os conselhos e valores dessas crianças não valem nada, mas tem o poder de fazer outras crianças acreditarem naquelas bobagens. Só o que conta são as aparências, o conteúdo é vazio, fugaz como os stories. E crianças passam horas on-line vendo páginas de crianças, em vez de estudar, brincar, jogar, aprontar alguma, como crianças. E quando são manipuladas pelos pais, o inferno é o limite.
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Poeminha dos 80 anos

não tenho saudades de nada,
porque tudo foi vivido intensamente,
até o fundo em cada momento,
de felicidade e de sofrimento.
saudades, só de algumas pessoas
amadas, idas mas sempre presentes,
e não de tempos e acontecimentos,
de vitórias, derrotas e vivências.
não tenho mais tempo a perder
para lembrar, tenho mais a fazer,
lazer, viagens, diversão, prazer,
amar, criar, curtir e compartilhar.
Nelson Motta

Os criadores de boatos aproveitam a indignação para espalhar mentiras online

A indignação vende. Quem mexe os cordelinhos da desinformação na internet, seja quem for , sabe disso melhor do que ninguém e usa isso a seu favor para amplificar suas narrativas. Um estudo publicado esta quinta-feira na revista Science mostra que as publicações nas redes sociais que contêm informações falsas provocam mais indignação do que aquelas que incluem informações fiáveis. E é precisamente essa emoção que facilita a propagação de mentiras pela Internet.


Para chegar a essa conclusão, Killian McLoughlin, doutorando em psicologia e política social na Universidade de Princeton e principal autor da pesquisa, e sua equipe analisaram mais de um milhão de links no Facebook e 44 mil postagens na rede social, classificando as fontes como confiáveis ou desinformativo. Eles então conduziram dois experimentos nos quais mediram a indignação gerada por certas manchetes – verdadeiras e falsas – em 1.475 participantes. McLoughlin concluiu que “as pessoas podem partilhar informações ultrajantes sem verificar a sua exatidão, porque a partilha é uma forma de sinalizar a sua posição moral ou o pertencimento a determinados grupos”. E isso parece importar mais do que a verdade ou a mentira.

À luz dos resultados, Ramón Salaverría, professor de Jornalismo da Universidade de Navarra e coordenador do Observatório Ibérico dos Meios Digitais, assegura que “esse estudo confirma com fortes evidências empíricas a hipótese de que as emoções desempenham um papel fundamental nos processos de comunicação pública”. O especialista acredita que a principal novidade deste estudo é que “detecta que a indignação é especificamente a emoção chave na ativação dos processos de disseminação de falsidades”.

Sander Van Der Linden, diretor do Laboratório de Tomada de Decisões Sociais de Cambridge, que não esteve envolvido na pesquisa, confirma que a indignação é uma emoção muito intensa e negativa. “Não acho que a maioria das pessoas goste de experimentar isso. Pode haver um sentimento de indignação moral coletiva face aos acontecimentos mundiais que pode ser socialmente gratificante, mas, de um modo geral, não é uma emoção que as pessoas persigam.”

Então, qual é a recompensa? Van Der Linden arrisca uma hipótese: “Os usuários que compartilham esse tipo de notícia, verdadeira ou falsa, buscam interação, pois isso leva tanto à validação social quanto a recompensas financeiras em plataformas como X. Se você produz conteúdo que gera muita interação, você pode monetizá-lo, o que cria incentivos perversos nas redes sociais.” O negócio da indignação existe, muitas vezes impulsionado pela amplificação algorítmica das próprias plataformas.

Os pesquisadores também descobriram que os usuários são mais propensos a compartilhar informações falsas e indignantes sem lê-las primeiro. Esta descoberta coincide com a de outro estudo publicado dias atrás na revista Nature Human Behavior . Uma análise de mais de 35 milhões de publicações com links para notícias que circularam na rede social com grande virulência entre 2017 e 2020, mostrou que três em cada quatro usuários as compartilharam sem clicar ou ler seu conteúdo. Ou seja, se você encontrou este artigo no Facebook e está lendo estas linhas, você foi muito além de 75% dos usuários.

Esta segunda pesquisa sugere que a maioria dos internautas se limita a ler manchetes e notas curtas sem se envolver muito com a informação. S. Shyman Sundar, co-diretor do Laboratório de Pesquisa de Efeitos de Mídia da Penn State e principal autor do estudo, diz que sempre se preocupou com a facilidade com que os usuários das redes sociais confiam no que veem por aí. “Neste projeto, meus colaboradores e eu nos perguntamos se as pessoas leem e verificam o que compartilham”, acrescenta. A resposta à sua pergunta é categórica na maioria dos casos: não.

“O fato de o percentual de pessoas que compartilham notícias sem lê-las chegar a 75% nos chocou muito”, diz o pesquisador. Embora os dados deste estudo tenham sido limitados ao Facebook, Shyman diz que os padrões não deveriam ser diferentes em outras plataformas como X. “O que descobrimos é uma tendência psicológica, um padrão de comportamento online que resulta da função de compartilhamento de conteúdos. Portanto, desde que uma plataforma ofereça esse recurso, provavelmente veremos resultados semelhantes.”

Agora, por que fazemos isso? Todos os especialistas consultados concordam que grande parte da responsabilidade reside na sobrecarga de informação. “Somos bombardeados diariamente com informações de todos os tipos de mídia por meio de diversos dispositivos, o que esgota nossa capacidade mental. Assim, economizamos nossos recursos cognitivos recorrendo a atalhos, como ler apenas as manchetes e clicar imediatamente no botão de compartilhar, sem pensar muito nas consequências de nossos atos”, arrisca Shyman.