quarta-feira, 23 de outubro de 2024
O governo da lei e o poder dos costumes
Um período eleitoral repleto de agressões que põem em risco nossas hierarquias exprime a questão que ronda nosso espaço político: o conflito da lei com candidatos a um costumeiro mandonismo.
— O Estado Democrático de Direito é aquele em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos. Sua finalidade é coibir abusos do aparato estatal para com os indivíduos.
Essa conceituação, roubada da internet, esquece o problema: os abusos político-jurídicos dos mandões-salvadores contra o Estado Democrático de Direito. Abusos abonados por tradicional esperteza (“agora é nossa vez!”) e por costumes consagrados no preceito:
— Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei.
E no teorema de Oliveira Viana:
— Tenho coragem pra tudo, menos a coragem de negar o pedido de um amigo!
Desvios particularistas são simploriamente chamados de “jeitinho” porque seu objetivo é manipular a lei, não modificá-la. Sua prática reitera um conhecido paradoxo brasileiro: burlar sem romper a lei.
O “jeitinho” e o estridente e agressivo “você sabe com quem está falando?” demonstram a força dos costumes. Eles exibem a antipatia pela lei que iguala, com o costume que, no Brasil, hierarquiza e verticaliza. Quem está “em ou por cima” não pode ser “tratado” como quem está embaixo. A prática democrática esbarra na hierarquia. Tal movimento promove uma dialética de insegurança, minando a prática democrática porque, na maioria dos casos, o costume engloba a lei.
Leis têm motivos, data e nome. Max Weber as classifica como instrumentos de uma “dominação racional-burocrática”. Um estilo de dominação com assustadora autonomia porque — como uma “jaula de ferro” — ela, ao lado do mercado autorregulado, submete seus operadores. Em contraposição, hábitos e costumes sem autores ou história constituem a “dominação tradicional” ao lado da “carismática”, em que predominam o personalismo e o mítico.
A dominação legal-racional tem base na lei escrita e numa presumida racionalidade. Leis são promulgadas, costumes são rotinizados e vividos. Leis podem ter propósito e autoria. Costumes são coletivos e anônimos. São as tais coisas do povo, como faz prova o populismo que promete “cuidar do povo” promovendo seus cuidadores.
O confronto entre lei e costume produz uma rotina de reformas e explica nossas reviravoltas jurídicas e políticas. Experimentamos muitos regimes: Colônia, Império, República, Estado Novo, ditadura militar, parlamentarismo, democracia e democracia de coalizão. Todos esses regimes têm um fundo comum: um personagem capaz de aglutinar tendências ideológicas. A despeito disso, contudo, hábitos religiosos, vigentes na moralidade, só agora têm sido discutidos.
O resultado é a descoberta de que um Brasil republicano e universalista está em luta contra um resistente Brasil familista, populista e particularista. É o tumulto da “casa” contra a “rua”, e não da casa como complemento da rua, conforme mostrei no livro “A casa & a rua”, publicado em 1985.
Não é fácil romper hábitos e costumes hegemônicos da reciprocidade inscritos no aforismo “Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”; nem é tranquilo suprimir as hierarquias que dividiram nobres e plebeus, bispos e crentes e poderosos “donos” do povo.
Não é trivial relativizar as “regalias” com os “privilégios” e prerrogativas de cargos que usufruem isenção. Pois, caso seus ocupantes cometam um crime, são dele isentos ou julgados por leis apropriadas à sua condição.
Vale remarcar. Democracia é fácil de falar, mas difícil de fazer. Sobretudo num sistema em que a amizade, o companheirismo e a filiação podem relativizar a lei geral porque, até hoje, relativizamos pouco nossos costumes fincados em hierarquias e gradações.
Uma desconfiança da regra da lei paradoxalmente promovida pelo STF diz que é tempo de, com sensatez, harmonizar costumes e leis. E, se possível, de abandonar o axioma de Oliveira Viana, segundo o qual “tenho coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo”. É de cortar o coração, mas é preciso tentar.
— O Estado Democrático de Direito é aquele em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos. Sua finalidade é coibir abusos do aparato estatal para com os indivíduos.
Essa conceituação, roubada da internet, esquece o problema: os abusos político-jurídicos dos mandões-salvadores contra o Estado Democrático de Direito. Abusos abonados por tradicional esperteza (“agora é nossa vez!”) e por costumes consagrados no preceito:
— Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei.
E no teorema de Oliveira Viana:
— Tenho coragem pra tudo, menos a coragem de negar o pedido de um amigo!
Desvios particularistas são simploriamente chamados de “jeitinho” porque seu objetivo é manipular a lei, não modificá-la. Sua prática reitera um conhecido paradoxo brasileiro: burlar sem romper a lei.
O “jeitinho” e o estridente e agressivo “você sabe com quem está falando?” demonstram a força dos costumes. Eles exibem a antipatia pela lei que iguala, com o costume que, no Brasil, hierarquiza e verticaliza. Quem está “em ou por cima” não pode ser “tratado” como quem está embaixo. A prática democrática esbarra na hierarquia. Tal movimento promove uma dialética de insegurança, minando a prática democrática porque, na maioria dos casos, o costume engloba a lei.
Leis têm motivos, data e nome. Max Weber as classifica como instrumentos de uma “dominação racional-burocrática”. Um estilo de dominação com assustadora autonomia porque — como uma “jaula de ferro” — ela, ao lado do mercado autorregulado, submete seus operadores. Em contraposição, hábitos e costumes sem autores ou história constituem a “dominação tradicional” ao lado da “carismática”, em que predominam o personalismo e o mítico.
A dominação legal-racional tem base na lei escrita e numa presumida racionalidade. Leis são promulgadas, costumes são rotinizados e vividos. Leis podem ter propósito e autoria. Costumes são coletivos e anônimos. São as tais coisas do povo, como faz prova o populismo que promete “cuidar do povo” promovendo seus cuidadores.
O confronto entre lei e costume produz uma rotina de reformas e explica nossas reviravoltas jurídicas e políticas. Experimentamos muitos regimes: Colônia, Império, República, Estado Novo, ditadura militar, parlamentarismo, democracia e democracia de coalizão. Todos esses regimes têm um fundo comum: um personagem capaz de aglutinar tendências ideológicas. A despeito disso, contudo, hábitos religiosos, vigentes na moralidade, só agora têm sido discutidos.
O resultado é a descoberta de que um Brasil republicano e universalista está em luta contra um resistente Brasil familista, populista e particularista. É o tumulto da “casa” contra a “rua”, e não da casa como complemento da rua, conforme mostrei no livro “A casa & a rua”, publicado em 1985.
Não é fácil romper hábitos e costumes hegemônicos da reciprocidade inscritos no aforismo “Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”; nem é tranquilo suprimir as hierarquias que dividiram nobres e plebeus, bispos e crentes e poderosos “donos” do povo.
Não é trivial relativizar as “regalias” com os “privilégios” e prerrogativas de cargos que usufruem isenção. Pois, caso seus ocupantes cometam um crime, são dele isentos ou julgados por leis apropriadas à sua condição.
Vale remarcar. Democracia é fácil de falar, mas difícil de fazer. Sobretudo num sistema em que a amizade, o companheirismo e a filiação podem relativizar a lei geral porque, até hoje, relativizamos pouco nossos costumes fincados em hierarquias e gradações.
Uma desconfiança da regra da lei paradoxalmente promovida pelo STF diz que é tempo de, com sensatez, harmonizar costumes e leis. E, se possível, de abandonar o axioma de Oliveira Viana, segundo o qual “tenho coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo”. É de cortar o coração, mas é preciso tentar.
Os instintos mais primitivos
É muito mais fácil educar os povos para a guerra do que para a paz. Para educar dentro do espírito bélico, basta apelar para os seus instintos mais primitivos. Educar para a paz implica ensinar a reconhecer o outro, a ouvir seus argumentos, a entender suas limitações, a negociar com ele, a fazer acordos. Essa dificuldade explica por que os pacifistas nunca contam com a força suficiente para ganhar… as guerras.
José Saramago, "As palavras de Saramago"
Caminhando nas trevas
O curso dos acontecimentos é cruel. Passaram os incêndios no Brasil, a dor lancinante em Gaza se estendeu ao Líbano, quase não se fala nela, e, agora, o apagão na maior metrópole do país passará rápido também. Como também estou passando e passarei, não hesito em abordar esse tema.
Estava em São Paulo na noite de sexta, 11 de outubro, quando caiu a tempestade. Na manhã de sábado, fui pegar para viajar uma pessoa que passara por uma cirurgia: ela estava com as malas tentando descer as escadas de um prédio sem luz. Pensei nessa contradição: uma cidade com grandes hospitais e medicina avançada, mas com um serviço de energia vagabundo. Confesso que já vi apagões em Boa Vista, quando dependiam da energia da Venezuela, e comentei aquele longo apagão de Macapá, que, por sinal, definiu as eleições de 2020 contra o governo.
Não me interessa muito o empurra-empurra sobre a culpa. Nem as oscilações cosméticas na burocracia reguladora. O que parece absurdo é o fato de estarmos diante de mudanças climáticas: novas tempestades virão; com elas, ventos que varrem a cidade, inundações, talvez. E quase não se fala em saídas de longo prazo, em adaptação aos novos tempos, que já chegaram e nos colheram de calças na mão.
Soube que, em 2009, foi aprovada uma lei para aterrar os fios. Mas, ao que tudo indica, essa lei não pegou. É uma saída cara, talvez nem tanto quanto os prejuízos do apagão que, nos cinco primeiros dias, somavam R$ 1,5 bilhão. Descentralizar a produção de energia, também não ocorre. O presidente George W. Bush, na sua época, quem diria, lançou um projeto para financiar painéis solares nas casas. Isso poderia ser feito em São Paulo com o estímulo de redução no IPTU. Não é saudável ficar dependendo de elefantes como a Enel. Não funcionam nem investem o necessário para manter a qualidade do serviço.
Cada vez mais entendo a falência dos partidos políticos, inclusive os da esquerda. Estes tiveram um alento quando olharam um pouco mais longe da luta de classes e viram as lutas identitárias. Mas a fórmula já não corresponde à nova realidade. As lutas identitárias se desgastaram com o rigor do politicamente correto, com as lacrações. Conforme ressaltou Mark Lilla, num livro que mencionei aqui, a vitória de Trump em 2016 já foi um aviso: as lutas identitárias sozinhas não sustentam uma campanha política nacional.
Assim como se ampliou em certo momento a ideia das classes sociais, hoje é preciso renovar. No meu entender, o passo a ser dado é reconhecer não apenas uma sociedade de classes, mas uma sociedade de riscos, onde os pobres se expõem muito mais. Essa é uma ideia do sociólogo Ulrich Beck, que já morreu, mas deixou uma teoria sobre a metamorfose do mundo, indicando que era preciso uma nova luz para entender a realidade.
O espaço é curto para expor tudo. Mas, se os partidos adotassem a visão de sociedade de riscos, não iriam para a porta de fábrica, como fizemos no passado. Eles precisam ir para a periferia, organizar não só as lutas elementares, mas principalmente a autodefesa da população diante dos eventos extremos cada vez mais frequentes. Em outras palavras, é preciso deduzir estratégia a partir do fato dominante que são as mudanças climáticas. Na verdade, elas ocupam hoje muita atenção: debates, conferências, viagens, teses e seminários. Mas falta quem arregace as mangas e vá trabalhar na realidade cotidiana a transição necessária.
Secas, incêndios, tempestades, tufões e apagões são a consequência dos novos tempos. A política não só ainda não descobriu essa realidade, como não se adaptou a ela para orientar a adaptação da própria sociedade. Caminhamos nas trevas, como diz o texto bíblico. O apagão na maior cidade do Brasil é o tipo de mensagem que não pode ser esquecida. Embora, como quase tudo que acontece, daqui a pouco também vai para a gaveta dos acontecimentos passados. Pelo menos, até que uma nova tempestade nos sacuda.
Estava em São Paulo na noite de sexta, 11 de outubro, quando caiu a tempestade. Na manhã de sábado, fui pegar para viajar uma pessoa que passara por uma cirurgia: ela estava com as malas tentando descer as escadas de um prédio sem luz. Pensei nessa contradição: uma cidade com grandes hospitais e medicina avançada, mas com um serviço de energia vagabundo. Confesso que já vi apagões em Boa Vista, quando dependiam da energia da Venezuela, e comentei aquele longo apagão de Macapá, que, por sinal, definiu as eleições de 2020 contra o governo.
Não me interessa muito o empurra-empurra sobre a culpa. Nem as oscilações cosméticas na burocracia reguladora. O que parece absurdo é o fato de estarmos diante de mudanças climáticas: novas tempestades virão; com elas, ventos que varrem a cidade, inundações, talvez. E quase não se fala em saídas de longo prazo, em adaptação aos novos tempos, que já chegaram e nos colheram de calças na mão.
Soube que, em 2009, foi aprovada uma lei para aterrar os fios. Mas, ao que tudo indica, essa lei não pegou. É uma saída cara, talvez nem tanto quanto os prejuízos do apagão que, nos cinco primeiros dias, somavam R$ 1,5 bilhão. Descentralizar a produção de energia, também não ocorre. O presidente George W. Bush, na sua época, quem diria, lançou um projeto para financiar painéis solares nas casas. Isso poderia ser feito em São Paulo com o estímulo de redução no IPTU. Não é saudável ficar dependendo de elefantes como a Enel. Não funcionam nem investem o necessário para manter a qualidade do serviço.
Cada vez mais entendo a falência dos partidos políticos, inclusive os da esquerda. Estes tiveram um alento quando olharam um pouco mais longe da luta de classes e viram as lutas identitárias. Mas a fórmula já não corresponde à nova realidade. As lutas identitárias se desgastaram com o rigor do politicamente correto, com as lacrações. Conforme ressaltou Mark Lilla, num livro que mencionei aqui, a vitória de Trump em 2016 já foi um aviso: as lutas identitárias sozinhas não sustentam uma campanha política nacional.
Assim como se ampliou em certo momento a ideia das classes sociais, hoje é preciso renovar. No meu entender, o passo a ser dado é reconhecer não apenas uma sociedade de classes, mas uma sociedade de riscos, onde os pobres se expõem muito mais. Essa é uma ideia do sociólogo Ulrich Beck, que já morreu, mas deixou uma teoria sobre a metamorfose do mundo, indicando que era preciso uma nova luz para entender a realidade.
O espaço é curto para expor tudo. Mas, se os partidos adotassem a visão de sociedade de riscos, não iriam para a porta de fábrica, como fizemos no passado. Eles precisam ir para a periferia, organizar não só as lutas elementares, mas principalmente a autodefesa da população diante dos eventos extremos cada vez mais frequentes. Em outras palavras, é preciso deduzir estratégia a partir do fato dominante que são as mudanças climáticas. Na verdade, elas ocupam hoje muita atenção: debates, conferências, viagens, teses e seminários. Mas falta quem arregace as mangas e vá trabalhar na realidade cotidiana a transição necessária.
Secas, incêndios, tempestades, tufões e apagões são a consequência dos novos tempos. A política não só ainda não descobriu essa realidade, como não se adaptou a ela para orientar a adaptação da própria sociedade. Caminhamos nas trevas, como diz o texto bíblico. O apagão na maior cidade do Brasil é o tipo de mensagem que não pode ser esquecida. Embora, como quase tudo que acontece, daqui a pouco também vai para a gaveta dos acontecimentos passados. Pelo menos, até que uma nova tempestade nos sacuda.
Acerca da opinião
Quando me manifestei com tanto ardor contra a opinião, estava ainda sob o seu jugo, sem me aperceber. Queremos ser estimados pelas pessoas que estimamos e, enquanto pude julgar favoravelmente os homens, ou pelo menos certos homens, os juízos que eles faziam a meu respeito não me podiam ser indiferentes. Via que os juízos do público são muitas vezes justos; mas não via que essa justiça resultava do acaso, que as regras sobre as quais os homens fundamentam as suas opiniões são extraídas apenas das suas paixões ou dos seus preconceitos, que provêm deles, e que, mesmo quando ajuízam bem, é frequente que esses bons juízos nasçam de um mau princípio, como acontece quando fingem honrar, a propósito de algum sucesso, o mérito de um homem, não por espírito de justiça, mas para se dar ares de imparcialidade, ao mesmo tempo que caluniam à vontade esse homem relativamente a outros pontos.
Quando, porém, após longas e vãs pesquisas, vi que todos eles, sem exceção, se mantinham dentro do sistema mais iniquo e absurdo que um espírito infernal pode inventar; quando vi que, a meu respeito, a razão fora banida de todas as cabeças e a justiça de todos os corações; quando vi uma geração frenética entregar-se totalmente à fúria cega dos seus guias contra um infortunado que nunca fez, nem quis, causar mal a ninguém; quando, após ter em vão procurado um homem, fui obrigado a apagar a minha lanterna e a exclamar; já não os há; comecei então a ver-me sozinho na terra e compreendi que os meus contemporâneos eram, em relação a mim, nada mais do que seres mecânicos que não agiam senão levados pelo impulso e cuja ação eu só podia calcular pelas leis do movimento. Fosse qual fosse a intenção, a paixão que eu tivesse admitido existir nas suas almas, jamais teriam explicado a sua conduta para comigo, de forma que eu pudesse entender. Foi por isso que as suas disposições interiores passaram a não significar nada para mim; passei a não ver neles mais do que massas que se movimentam de diferentes maneiras, desprovidas, a meu respeito, de qualquer moralidade.
Quando, porém, após longas e vãs pesquisas, vi que todos eles, sem exceção, se mantinham dentro do sistema mais iniquo e absurdo que um espírito infernal pode inventar; quando vi que, a meu respeito, a razão fora banida de todas as cabeças e a justiça de todos os corações; quando vi uma geração frenética entregar-se totalmente à fúria cega dos seus guias contra um infortunado que nunca fez, nem quis, causar mal a ninguém; quando, após ter em vão procurado um homem, fui obrigado a apagar a minha lanterna e a exclamar; já não os há; comecei então a ver-me sozinho na terra e compreendi que os meus contemporâneos eram, em relação a mim, nada mais do que seres mecânicos que não agiam senão levados pelo impulso e cuja ação eu só podia calcular pelas leis do movimento. Fosse qual fosse a intenção, a paixão que eu tivesse admitido existir nas suas almas, jamais teriam explicado a sua conduta para comigo, de forma que eu pudesse entender. Foi por isso que as suas disposições interiores passaram a não significar nada para mim; passei a não ver neles mais do que massas que se movimentam de diferentes maneiras, desprovidas, a meu respeito, de qualquer moralidade.
Jean-Jacques Rousseau, "Os Devaneios do Caminhante Solitário"
O apagão visto por quem sobe em poste
O nome pomposo, Eduardo de Vasconcellos Correia Annunciato, virou Chicão ainda no Senai, onde entrou aos 14 anos para fazer o curso técnico de elétrica/eletrônica. A culpa é do corpulento 1,88m que colide com o jeito manso com que abre o celular para mostrar o vídeo recebido dias atrás. A imagem traz o vapor saindo de um poço com esgoto onde um termômetro marcava 71,7 graus centígrados. É nesse poço que um técnico de manutenção de uma empresa terceirizada teria que entrar para consertar um cabeamento subterrâneo.
Ao longo de uma hora e meia em que Chicão discorre sobre a manutenção da rede elétrica da cidade, a cena se repete. Anseios como o enterramento dos fios não guardam nenhuma relação com a rede como ela é. O jogo de empurra entre governantes, empresa e agências reguladoras ganha concretude no relato do presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo.
Aos 51 anos, trabalhou por 13 anos na manutenção da rede, antes de se tornar dirigente sindical, na Eletropaulo na AES, concessionária estreante da privatização, e na Enel. A corda e o capacete que usava estão pendurados na parede do sindicato no centro de São Paulo.
O problema não era diferente quando o serviço estava a cargo da Eletropaulo, mas como havia mais técnicos, os trabalhadores podiam se revezar em turnos. Agora, como a parada térmica foi abolida, é obrigado a acionar a Justiça para garantir horas extras que permitam jornadas com pausas. Ainda que esvaziados e resfriados, esses túneis têm temperaturas que ultrapassam 40 graus pela amperagem dos fios que lá correm.
O piso salarial dos eletricitários é de R$ 2.450, com 30% de periculosidade para aqueles da manutenção. O adicional, em função dos riscos a que estão submetidos, não permite que acumulem a insalubridade decorrente de ambientes como túneis de fiação.
Os números estão na ponta da língua. Dos 10.800 funcionários da Eletropaulo, 1.084 foram demitidos logo no primeiro ano da privatização, em 1998. A AES era mais dura na negociação do que a Enel, mas acabou se dando conta de que precisava recontratar quando, cinco anos depois, um apagão expôs a situação de um serviço que havia reduzido em 60% os contratados. Quando a Enel comprou a empresa, em 2018, eram 8.050 funcionários. No apagão de 2023, restavam 3,9 mil.
A terceirização de metade da mão de obra não fere a lei mas afeta a memória e a sinergia, como acabou se provando. Depois daquele apagão, a Enel comprometeu-se a repor 1,2 mil e não 2,5 mil como tem sido dito. E o fez, diz Chicão. O que não significa que deem conta.
Das 390 empresas cobertas pelo sindicato, há outras três distribuidoras além da Enel: EDP, Eletro e State Grid. Nenhuma, diz, terceiriza tanto. Depois da aprovação da lei da terceirização em 2017, até os serviços de emergência entraram na roda.
O sindicato perdeu uma ação de cumprimento da convenção coletiva de uma empresa terceirizada que tinha se valido de três CNPJs, um para a concessionária, outro para os funcionários e um terceiro para o sindicato. E assim, alegou desconhecer o objeto da ação.
Ao longo dos seis anos em que convive com a Enel pôde concluir que determinações, como a da terceirização, vêm da matriz na Itália. Impedidos por lei de estender a dívida com o fundo de pensão dos funcionários para dez anos além da vigência da concessão, quiseram tirar o patrocínio. Um dirigente da Itália chegou a vir ao Brasil para bater (vigorosamente) à porta do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sem sucesso.
Nem por isso, Chicão é favorável à cassação da concessão. “Se mantiver o modelo de gestão, não adianta mudar a empresa”, disse ao ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira. Por modelo, chama, por exemplo, os religadores automáticos que garantem indicadores de frequência e duração das interrupções aceitos pela Aneel. Esses religadores caem na conta do consumidor e não na da empresa que, por conta do mecanismo, acaba adiando serviços de manutenção necessários à saúde da rede.
Não vê como a coisa possa melhorar sem uma mudança nas agências, a Aneel e a estadual, Arsesp. Diz que a fiscalização é feita a partir dos dados fornecidos pelas empresas. Tampouco exime o prefeito. Conta que depois do apagão de 2023, recebeu mensagem de Ricardo Nunes no celular, convidando-o para um encontro. Achou que fosse trote, mas, em seguida, o próprio ligou e reiterou o convite.
Filiado ao PCdoB desde a juventude, migrou para o Solidariedade para disputar a Câmara dos Deputados em 2022. Recebeu 8,8 mil votos. Apesar de seu partido apoiar Nunes, é eleitor de Guilherme Boulos (Psol), o que não o impediu de ter tido uma boa impressão do prefeito: “Ele se mostrou humilde, disse que desconhecia o setor e pediu ajuda. Se fosse má pessoa não se exporia assim.”
Entregou-lhe um mapeamento georreferenciado. Mostrou que, a cada 800 metros, havia problemas graves e, cada 1 km, risco de morte. Disse que a categoria tinha 16 mil aposentados aptos para podas emergenciais. Os meses para os eletricitários dividem-se entre aqueles que não têm “R” e aqueles que têm. É naqueles desprovidos da letra (maio a agosto) que a poda deve ser feita. Nunes ignorou o alfabeto. Às vésperas do apagão de 2023, a fila da poda tinha 3 mil árvores. Este ano, o número se repetiu.
Faz um único pedido antes de a conversa acabar. Que as pessoas não joguem pedra nos eletricitários da manutenção. Como muitos atendem em áreas dominadas pelo crime organizado, nem boletim de ocorrência podem fazer.
Ao longo de uma hora e meia em que Chicão discorre sobre a manutenção da rede elétrica da cidade, a cena se repete. Anseios como o enterramento dos fios não guardam nenhuma relação com a rede como ela é. O jogo de empurra entre governantes, empresa e agências reguladoras ganha concretude no relato do presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo.
Aos 51 anos, trabalhou por 13 anos na manutenção da rede, antes de se tornar dirigente sindical, na Eletropaulo na AES, concessionária estreante da privatização, e na Enel. A corda e o capacete que usava estão pendurados na parede do sindicato no centro de São Paulo.
O problema não era diferente quando o serviço estava a cargo da Eletropaulo, mas como havia mais técnicos, os trabalhadores podiam se revezar em turnos. Agora, como a parada térmica foi abolida, é obrigado a acionar a Justiça para garantir horas extras que permitam jornadas com pausas. Ainda que esvaziados e resfriados, esses túneis têm temperaturas que ultrapassam 40 graus pela amperagem dos fios que lá correm.
O piso salarial dos eletricitários é de R$ 2.450, com 30% de periculosidade para aqueles da manutenção. O adicional, em função dos riscos a que estão submetidos, não permite que acumulem a insalubridade decorrente de ambientes como túneis de fiação.
Os números estão na ponta da língua. Dos 10.800 funcionários da Eletropaulo, 1.084 foram demitidos logo no primeiro ano da privatização, em 1998. A AES era mais dura na negociação do que a Enel, mas acabou se dando conta de que precisava recontratar quando, cinco anos depois, um apagão expôs a situação de um serviço que havia reduzido em 60% os contratados. Quando a Enel comprou a empresa, em 2018, eram 8.050 funcionários. No apagão de 2023, restavam 3,9 mil.
A terceirização de metade da mão de obra não fere a lei mas afeta a memória e a sinergia, como acabou se provando. Depois daquele apagão, a Enel comprometeu-se a repor 1,2 mil e não 2,5 mil como tem sido dito. E o fez, diz Chicão. O que não significa que deem conta.
Das 390 empresas cobertas pelo sindicato, há outras três distribuidoras além da Enel: EDP, Eletro e State Grid. Nenhuma, diz, terceiriza tanto. Depois da aprovação da lei da terceirização em 2017, até os serviços de emergência entraram na roda.
O sindicato perdeu uma ação de cumprimento da convenção coletiva de uma empresa terceirizada que tinha se valido de três CNPJs, um para a concessionária, outro para os funcionários e um terceiro para o sindicato. E assim, alegou desconhecer o objeto da ação.
Ao longo dos seis anos em que convive com a Enel pôde concluir que determinações, como a da terceirização, vêm da matriz na Itália. Impedidos por lei de estender a dívida com o fundo de pensão dos funcionários para dez anos além da vigência da concessão, quiseram tirar o patrocínio. Um dirigente da Itália chegou a vir ao Brasil para bater (vigorosamente) à porta do ministro da Previdência, Carlos Lupi, sem sucesso.
Nem por isso, Chicão é favorável à cassação da concessão. “Se mantiver o modelo de gestão, não adianta mudar a empresa”, disse ao ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira. Por modelo, chama, por exemplo, os religadores automáticos que garantem indicadores de frequência e duração das interrupções aceitos pela Aneel. Esses religadores caem na conta do consumidor e não na da empresa que, por conta do mecanismo, acaba adiando serviços de manutenção necessários à saúde da rede.
Não vê como a coisa possa melhorar sem uma mudança nas agências, a Aneel e a estadual, Arsesp. Diz que a fiscalização é feita a partir dos dados fornecidos pelas empresas. Tampouco exime o prefeito. Conta que depois do apagão de 2023, recebeu mensagem de Ricardo Nunes no celular, convidando-o para um encontro. Achou que fosse trote, mas, em seguida, o próprio ligou e reiterou o convite.
Filiado ao PCdoB desde a juventude, migrou para o Solidariedade para disputar a Câmara dos Deputados em 2022. Recebeu 8,8 mil votos. Apesar de seu partido apoiar Nunes, é eleitor de Guilherme Boulos (Psol), o que não o impediu de ter tido uma boa impressão do prefeito: “Ele se mostrou humilde, disse que desconhecia o setor e pediu ajuda. Se fosse má pessoa não se exporia assim.”
Entregou-lhe um mapeamento georreferenciado. Mostrou que, a cada 800 metros, havia problemas graves e, cada 1 km, risco de morte. Disse que a categoria tinha 16 mil aposentados aptos para podas emergenciais. Os meses para os eletricitários dividem-se entre aqueles que não têm “R” e aqueles que têm. É naqueles desprovidos da letra (maio a agosto) que a poda deve ser feita. Nunes ignorou o alfabeto. Às vésperas do apagão de 2023, a fila da poda tinha 3 mil árvores. Este ano, o número se repetiu.
Faz um único pedido antes de a conversa acabar. Que as pessoas não joguem pedra nos eletricitários da manutenção. Como muitos atendem em áreas dominadas pelo crime organizado, nem boletim de ocorrência podem fazer.
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