sábado, 1 de fevereiro de 2020

Coronavírus espalha também antigos preconceitos sobre a China e seus hábitos culturais

Na cidade chinesa de Xangai, para onde se mudou a trabalho, o arquiteto Gabriel Kyoshima está cauteloso diante do novo tipo de coronavírus que teve origem no país. Mas há outra coisa o preocupando, e ela vem do Brasil diretamente para seu celular.

"Minha mãe me mandou um vídeo que recebeu em grupos — de pessoas correndo, caindo, parecia vídeo de ataque de zumbi. Nem era na China. A gente está sendo bombardeado de fake news", desabafa Kyoshima, de 30 anos, sobre informações falsas sobre a China e o surto atual de coronavírus.

"É fácil divulgar vídeo da China sem conhecer o país. No mundo é normal isso: o chinês é tratado como uma invasão. Estou muito cansado disso e bravo com esse preconceito", diz o arquiteto, que é descendente de japoneses, à BBC News Brasil.

O relato de Kyoshima se junta a outros pelo mundo de reações preconceituosas contra pessoas associadas à China — seja por sua nacionalidade, ascendência familiar ou aparência física.

Na França, por exemplo, relatos de hostilidades vividas por estas pessoas no transporte público, em escolas e em unidades de saúde estão sendo reunidos pela hashtag #JeNeSuisPasUnVirus (#NãoSouUmVírus).

A Associação de Jovens Chineses na França publicou em suas redes sociais estar recebendo pedidos de ajuda psicológica por vítimas de discriminação desde o surgimento do novo tipo de coronavírus — não só de pessoas de origem chinesa, mas também coreana, cambojana, vietnamita e filipina.

Na Coreia do Sul, mais de 500 mil pessoas assinaram uma petição na plataforma online Blue House (criada pelo governo para receber petições dos cidadãos) exigindo que visitantes chineses sejam impedidos de entrar no país — apesar de restrições a viagens de pessoas de um país inteiro irem contra normas internacionais, o que foi endossado no último dia 27 em comunicado da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmando que a entidade "não recomenda a aplicação de qualquer restrição no tráfico internacional, de acordo com as evidências existentes até agora".


Pesquisadores consultados pela BBC News Brasil apontam que preconceitos, como em relação a comidas consideradas exóticas consumidas na China ou a turistas saudáveis vindos de países asiáticos, podem mascarar problemas concretos e até atrapalhar a tomada de decisões em relação a eles — como uma vigilância sanitária eficiente em mercados que vendem alimentos de origem animal ou a transparência na circulação de passageiros por aeroportos.

"Segundo o Regulamento Sanitário Internacional, nenhum país pode tomar medidas consideradas extremas que não tenham evidências que as sustentem — por exemplo banimento de voos, fechamento de fronteiras. Essa proteção existe para evitar impedimentos ou restrições não justificáveis de viagem e comércio. Lutamos contra isso durante a pandemia de influenza em 2009, que alguns lugares estavam chamando de 'gripe mexicana'", explicou à BBC News Brasil o médico sanitarista e epidemiologista brasileiro Jarbas Barbosa, atualmente diretor-assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional nas Américas da OMS.

"Em 2015, havia três países com transmissão de ebola na África — mas outros países estavam inclinados a considerar como caso suspeito qualquer pessoa que vinha do continente africano, mesmo que 5 mil km longe dos locais de transmissão."

"Esse tipo de medida (restritiva) é excessiva, não protege nenhum país de importar casos e, pelo contrário, termina incitando as pessoas a não agirem com transparência — e nem os países que precisam comunicar os dados. Além de ser ética e moralmente desaconselhável, porque induz à xenofobia", diz Barbosa, indicando que em crises como a atual, a atuação nos aeroportos deve ser mais vigilante na saída de passageiros de locais com transmissão (como Wuhan, por exemplo) e, no mundo todo, deve fazer desses locais meios de divulgação de informações sobre sintomas e locais de atendimento.

Para cientistas sociais que vêm estudando especificamente a contaminação de questões de saúde por preconceitos culturais, o episódio do novo coronavírus não é novo: é uma atualização de antigos preconceitos associados à China e à Ásia que já apareceram desde em uma epidemia de peste bubônica no século 19 ao surto mundial da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) no início dos anos 2000.

"A expressão 'perigo amarelo' (usada no Ocidente como designação preconceituosa contra o Leste asiático a partir do século 19) pode parecer datada, mas definitivamente vemos que algumas narrativas tradicionais contra os chineses continuam hoje — em particular na forma com que eles são estimatizados como bodes expiatórios em questões médicas", apontou em entrevista à BBC News Brasil o historiador Sören Urbansky, especialista em Rússia e China do Instituto Alemão de História em Washington, EUA.

"Na situação de agora (do coronavírus), algumas representações na mídia e falas de políticos ou pessoas comuns certamente têm paralelos no passado", diz Urbansky, citando como exemplo um cartum publicado por um jornal dinamarquês em que uma bandeira chinesa é formada por partículas representado o coronavírus.

"O mais preocupante em conteúdos como esse é a xenofobia que podem estimular entre pessoas comuns. Nas redes sociais, você pode encontrar muitas postagens e tuítes com avisos para que não se coma comida chinesa ou pedidos de proibição de viagens."

Urbansky é organizador do livro Yellow perils: China narratives in the contemporary world ("Perigo amarelo: Narrativas sobre a China no mundo contemporâneo", em tradução livre), lançado em 2018, ao lado do antropólogo Franck Billé, da Universidade da Califórnia em Berkeley.

Na introdução do livro, Billé destaca que há muito a Ásia representa culturalmente "o outro" para os europeus, o que é perpetuado na cultura ocidental também contemporaneamente pela preponderância dos EUA — como em papéis estereotipados nos filmes de Hollywood, cujo poder de influência é global.

Os chineses, por sua vez, foram muitas vezes representantes de estigmatizações relacionadas à Ásia como um todo. Mas, como os estudos da cultura não são uma ciência exata, o autor destaca que os ocidentais não têm "monopólio" dessas discriminações — elas variam de local para local e, inclusive, acontecem dentro das fronteiras da própria Ásia e China.

O livro traz capítulos de diversos autores, entre eles Christos Lynteris, antropólogo da medicina e professor na Universidade St. Andrews, no Reino Unido. Ele estuda especificamente aspectos sociais de epidemias e escreveu um capítulo sobre como, ao longo da história, surtos e doenças contribuíram para a estigmatização dos chineses.

"O surto do novo coronavírus trouxe de volta à tona a sinofobia (xenofobia contra a China) em formas veladas ou abertas. A mais nociva, talvez, como no caso anterior de Sars, seja o ódio digital e a difamação dos hábitos alimentares dos chineses", escreveu Lynteris à BBC News Brasil por email.

Um símbolo disso, diz o antropólogo, são os chamados wet markets ("mercados molhados"), usualmente caracterizados por vender animais vivos e abatidos no local — "um termo que não ajuda, porque abrange vários tipos de mercados", explica o antropólogo.

No início de janeiro, a própria China informou à OMS que os primeiros casos de coronavírus podiam ter ligação com um mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan.

Lynteris critica o habitual retrato desses variados mercados na mídia ocidental, com imagens "destinadas a chocar o público" de animais apresentados como exóticos; que misturam capturas de diferentes mercados ao redor da China apesar das diferenças locais e culturais; e que excluem "a maior parte das atividades desses mercados, que seriam absolutamente familiares (aos ocidentais)".

"Essa é uma forma sutil, mas perniciosa, através da qual até a mídia mais esclarecida estimula a sinofobia: retratando os hábitos chineses de alimentação e consumo como em descompasso com a modernidade; como resquícios irracionais, nojentos e patogênicos de um passado obscuro", afirma, apontando que essa estigmatização contribui para uma pressão internacional pelo banimento desses mercados.

"O que é preciso é uma regulação melhor, mais intensa e baseada em evidências desses mercados, e não levá-los para a ilegalidade", diz.

O consumo de animais como cachorros, cobras e ratos atende a diferentes habitos culturais locais na China e podem ter finalidades tanto alimentícias quanto místicas. Estudiosos, porém, são cautelosos quanto ao alcance deste tipo de alimentação no país.

Nas redes sociais, inclusive no Brasil, circularam fotos e vídeos do que seriam sopas de morcegos consumidas em Wuhan — apontadas, nos boatos, como possível origem do novo coronavírus. Checagens profissionais posteriores mostraram, por exemplo, que uma dessas imagens era antiga e feita em outro país; tampouco foi encontrada comprovação de que alguma das imagens de sopa de morcego fosse verdadeira.

Inclusive, nada menos do que 35 cientistas, a maioria da China, publicaram nesta semana um artigo no Lancet, um dos periódicos de medicina mais importantes do mundo. No trabalho, eles frisam que não havia venda ou presença de morcegos no mercado de Huanan.

Estes animais entram, sim, na hipótese dos acadêmicos para a origem do coronavírus — comparando a sequência genética do vírus encontrado em humanos com uma "biblioteca" de vírus já sequenciados, os cientistas encontraram compatibilidade de 88% com coronavírus encontrados em morcegos.

No entanto, estes seriam hospedeiros do vírus, por sua vez possivelmente transmitido por algum outro animal ainda indeterminado e vendido no mercado de Wuhan.

Sobre a época do surto de Sars, Lynteris e Sören citam relatos de queda no comércio de imigrantes chineses em metrópoles ocidentais, como em Toronto, no Canadá (o país teve o maior número de casos fora da Ásia, com mais de 40 mortes).

Também houve casos de consumidores chineses saudáveis sendo impedidos de comprar ou se hospedar em acomodações pelo mundo; ou ainda a ilustração de reportagens sobre a síndrome com uma enxurrada de fotos de Chinatowns (bairros com muitos imigrantes chineses) e pessoas com traços asiáticos, ainda que estas não tivessem infecções.

A síndrome surgiu em 2002 na Província chinesa de Guangdong, ficando por meses desconhecida da comunidade internacional, o que motiva críticas à transparência do governo chinês até hoje. Com ápice em 2003, ela chegou a mais de 26 países e matou quase 800 pessoas ao redor do mundo.

Lynteris destaca que questões de saúde recentes como essa vão ao encontro de uma noção de crescimento, populacional e econômico, descontrolado da China. Outros estudos no livro Yellow perils: China narratives in the contemporary world apontam para uma "ansiedade" quanto ao poder da China, perceptível também na recorrência de palavras como "ameaça" em publicações científicas e leigas.

Mas, no passado, doenças e infecções eram associadas a uma outra imagem da China: a de decadência, aponta Lynteris.

No fim do século 19, uma terceira epidemia de peste bubônica teve início em Hong Kong (quando era parte do Império Britânico; hoje, ela é uma Região Administrativa Especial da China).

De acordo com o antropólogo, uma extensa bibliografia já mostrou como, nesse período, publicações da imprensa e relatos de médicos britânicos contribuíram para associar a doença às casas e aglomerações chinesas — inclusive em comunidades de imigrantes no exterior.

Somaram-se a isso pressões internas e externas contra a última dinastia imperial da China, a era Qing, vista por médicos coloniais como resistente à vacinação e associada a uma ideia de decadência da civilização chinesa e sua suposta resistência a se adaptar à modernidade.

Nas Chinatowns dos EUA, por exemplo, além de serem encarados pelos americanos como competidores em negócios e postos de trabalho, os imigrantes asiáticos passaram a ser relacionados a doenças.

"Estudo a história de várias comunidades da diáspora chinesa no Pacífico. Na virada do século 20, os imigrantes chineses eram vistos como mais perigosos do que outros grupos de imigrantes — não apenas na Califórnia, mas também em lugares como o Extremo Oriente russo", aponta Sören.

"Por exemplo, quando um surto (de peste bubônica) eclodiu em São Francisco em 1900, apenas os chineses foram colocados em quarentena. Naquela época, era bastante normal descrever os migrantes chineses como uma ameaça à segurança física da maioria (branca) da população."

"O que as pessoas daquela época ignoravam completamente eram vários fatores estruturais que eram as principais causas da miséria: os residentes chineses eram forçados a viver em certos guetos étnicos que muitas vezes eram negligenciados pelas autoridades."

"Penso que o perigo hoje é que as pessoas também tendem a ignorar problemas estruturais que certamente são diferentes daqueles do passado e, ao negligenciá-los, estigmatizam completamente o povo chinês."

Brasil na rua


O triunfo da barbárie

O Brasil continua a ser, provavelmente, o país que mais lincha no mundo. É que temos fatores diferenciais para que aqui o linchamento tenha se tornado uma modalidade cotidiana de violência coletiva. Em outros países, em que ele ocorre de modo intermitente, existem circunstâncias não cotidianas, que o favorecem, como as de situação de guerra e de conflito político.

Há cinco anos, no Brasil, havia um linchamento ou tentativa de linchamento por dia. Hoje, são cerca de dois, em média. Uma área mais ampla do território nacional foi incluída na geografia do justiçamento. Linchamos, aliás, desde o século XVI.

Que a violência coletiva persista depois de cinco séculos, indica que é desencadeada pelo modo como está organizada a sociedade brasileira e que, nestes cinco séculos, o país não conseguiu dar passos decisivos em direção à civilização.


Criamos uma sociedade sociologicamente superficial, determinada por deficiências crônicas, decorrentes da sobrevivência de referências de conduta de quando apenas ensaiávamos o que seria a sociedade brasileira que nascia. Uma carta do padre Manuel da Nóbrega, do século XVI, nos dá preciosas indicações nesse sentido.

Linchamento não inclui o indevidamente chamado “linchamento moral”. O verdadeiro linchamento incide fisicamente sobre o corpo da vítima. Nos casos brasileiros, implicitamente e subjacente a essas ocorrências, há um “protocolo” de procedimentos, uma gradação da violência praticada, que vai da perseguição, do apedrejamento e do espancamento até a mutilação e a queima da vítima ainda viva.

Os extremos e os momentos desse “protocolo” são a referência para cálculo do índice de crueldade de cada ocorrência. É, portanto, possível medir a intensidade do ódio que move a multidão na execução do destinatário da fúria, seja ele culpado ou inocente.

E, nesse sentido, ao longo do tempo ou no recorte de um período determinado, por esse meio, pode-se avaliar não só o agravamento do problema em si, mas, sobretudo, a intensificação da crise social de que é indício.

Os linchamentos daqui são o termômetro da desorganização social que se expressa no estado de anomia. O da transformação social patológica que não gera as correspondentes regras de conduta social que lhe deem sentido.

Continuamos mergulhados nessa situação crítica e nada indica que os governantes estão dotados da lucidez civilizada necessária àquilo que é próprio da governação. Ao contrário, presidente, ministros e acólitos enviam reiterados sinais à sociedade em favor do conflito e da violência e de explícitas medidas em favor da anomização crescente do país.

É uma técnica de dominação política. Mesmo que estimular os linchamentos não seja intenção confessa de quem governa, a indução de uma suposta legitimação da exclusão social dos diferentes e dos que estão à margem da vida social e política incita à prática do justiçamento como apropriada decorrência de uma concepção fascista de ordem política.

O retorno ao tema decorre das novas evidências de mudanças tanto na geografia dessa violência de contrapartida, a vingança coletiva, quanto nas características das vítimas da violência original que motiva o justiçamento. Há 30 anos, os linchamentos estavam concentrados em São Paulo, na Bahia e no Rio de Janeiro, nas próprias áreas metropolitanas das capitais.

Aos poucos as ocorrências foram se deslocando em direção ao Centro-oeste e ao Norte e aos municípios interioranos. Nos últimos meses, tornaram-se mais evidentes e mais violentos no Amazonas, embora continuem a ocorrer no país inteiro.

Em três casos ocorridos nesse Estado, as vítimas estavam presas, foram tiradas da cadeia pela turba enfurecida, em dois casos foram mortas e mutiladas e queimadas, a multidão gritando ao redor da pira sacrificial. A vítima sobrevivente era uma mulher grávida, que incendiara a casa de uma rival, em consequência do que morreu um menino de dois anos.

Nos outros dois casos, de um jovem de 18 anos e de um homem de 28 anos, o motivo foi estupro e assassinato de criança. Num dos casos, o estuprador era filho de pastor evangélico e namorado de sua vítima. No outro, escondeu a morta sob a cama e ali foi o corpo descoberto pela companheira do criminoso. Portanto, pessoas à margem de relações sociais estáveis.

O ódio nos linchamentos é expressão de medo e de covardia. São de preferência praticados à noite, para evitar o reconhecimento dos participantes.
José de Souza Martins


Os participantes sabem que estão violando a lei e a concepção de punição restitutiva, a que permite a reintegração do criminoso na sociedade. O justiçamento sumário objetiva impedir que isso aconteça. É decretação da morte física, mas também da morte social do linchado.


*José de Souza Martins

Multidão à margem

Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.

Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.

Carolina Maria de Jesus


Mercados se tornam parceiros de governo obscurantista

A existência de um mercado forte no Brasil sempre funcionou como uma barreira de contenção a governantes com parafusos a menos. Ou por outra: “Não fale e não faça besteira, ou os indicadores econômicos degringolam, as expectativas se deterioram, o pessimismo aumenta, e tudo se complica”.

É assim, mais marcadamente, desde a redemocratização. A rigor, os estertores do regime militar já traziam os indicadores de mercado a dizer: “Acabou o ciclo; hora de voltar para a casa e deixar que a sociedade se vire”. Em síntese: os mercados atuavam como agentes civilizadores da política.

Ainda que o capital, por si, seja amoral e não olhe a cor dos gatos desde que cacem ratos, o fato é que, há muitos anos, no Brasil, os mercados resolveram apreciar a democracia. Se seus valores são referendados pelas forças políticas influentes, sobe o preço dos ativos; se o contrário, então o contrário. Há muitos anos não é bom negócio especular contra direitos fundamentais e valores civilizatórios.


Um fenômeno, no entanto, se dá com o governo de Jair Bolsonaro — a rigor, manifestou-se já desde a sua candidatura — que consiste num completo descolamento entre a política e a economia. Uma hora, é claro, isso acaba. E muita gente pode ser surpreendida pelo estouro da bolha. Por enquanto, não há sinais de que vá acontecer.

Os indicadores de mercado deixaram de servir de advertência contra destrambelhamentos do chefe. Não importa o número de besteiras que façam o mandatário e seus comandados, o otimismo resiste, como a dizer: “Ah, isso tudo é só política! Danem-se! Não temos nada com isso”.

Conversem com um desses agentes de mercado e peçam que citem, deixem-me ver, três fatores objetivos que justifiquem o otimismo. E vocês vão constatar que as pessoas não têm o que dizer a não ser repetir um elenco de promessas ainda eleitorais, na certeza de que Paulo Guedes vai realizar um milagre — afinal, fingem ser ele o presidente da República, não Jair Bolsonaro.

Deve haver nisso elementos de psicologia social. Esses tais mercados não queriam o PT de jeito nenhum — embora não conseguissem, do seu exclusivo ponto de vista, explicar por que não, já que ganharam dinheiro como nunca na era petista. Os demais candidatos identificados com teses de mercado não emplacaram — Geraldo Alckmin em particular.

E aí sobrou o candidato exótico, com sua impressionante capacidade de dizer asneiras sobre todos os assuntos — e isso incluía os mercados. Ocorre que Paulo Guedes entrava na equação: o candidato, de verdade, para aquele público em particular, seria ele, Guedes, não aquele adulto infantilizado e truculento que fazia arminha com as mãos...

E foi assim que os mercados aprenderam a não dar bola para Bolsonaro e, de modo mais amplo, para a política. Por óbvio, isso só torna mais agudos os nossos problemas e nos conduz ao atraso com mais determinação. Sim, uma hora a bolha estoura. Mas esse é só o contratempo de curto prazo. Há os prejuízos de longo prazo, para os quais Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, chamou a atenção na quarta (29), durante um seminário sobre economia.

Tivessem os tais mercados reagido às coisas estúpidas que já fez o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, por exemplo, e ele já estaria cuidando de seus assuntos privados, e o país certamente estaria recebendo um fluxo maior de investimentos estrangeiros. Guedes sentiu em Davos o peso da repulsa à política ambiental. Bolsonaro teve de tirar da cartola, da noite para o dia, um conselho para tratar da Amazônia e a Força Nacional Ambiental.

A pressão veio de fora. Os nossos caramurus não estavam nem aí. Se o presidente cismar em derrubar metade da Amazônia, o negócio é comprar papeis de alguma madeireira...

É essa alienação da realidade que permite que um Abraham Weintraub continue a produzir atraso histórico a cada hora que permanece à frente do Ministério da Educação, multiplicando ignorância e incompetência. No longo prazo, é um desastre. No curto, rende alguns memes nas redes sociais e ponto.

Os mercados se tornaram parceiros do obscurantismo. Até quando?

A democracia não é mais aquela

Tem muita gente festejando o resultado da pesquisa da Universidade de Cambridge que mostra descontentamento crescente com a democracia em todo o mundo. Segundo a pesquisa, 58% das pessoas entrevistadas em 154 países estão insatisfeitas com este sistema de governo. No Brasil, apenas 20% das pessoas ouvidas aprovam o regime democrático. Os que comemoram este péssimo resultado são aqueles que acreditam que um regime totalitário pode ser mais útil ao país, acreditando que um governo de força acabaria com a corrupção e a violência, entre outros problemas.

A História prova que eles estão enganados, e a pesquisa revela as limitações dos que pensam assim, não importando de que ângulo enxergam o cenário. No Brasil, cidadãos de orientação política de direita estão da mesma forma equivocados sobre a democracia quanto os de esquerda. Aqueles bolsonaristas que aplaudem de modo entusiasmado tanto os acertos do governo quanto seus erros grosseiros e antidemocráticos imaginam que um regime totalitário salvaria o Brasil. Da mesma forma, há lulopetistas que prefeririam um governo centralizador, sem o contraditório, sobretudo sem imprensa, como imaginou um dia José Dirceu.

Supor que um governo não democrático acabaria com a corrupção é o mesmo que acreditar que há democracia na Venezuela e que os generais de Maduro não são os mais corruptos da América Latina. Pensar que um regime fechado terminaria com a violência é tão absurdo quanto ignorar o poder global da máfia russa, a mais cruel e sanguinária do mundo.


A pesquisa mostra que as pessoas não confiam em regimes democráticos em razão dos sucessivos escândalos de corrupção e nepotismo que produziram, sobretudo na América Latina, pela sua incapacidade em lidar com a criminalidade e por se revelarem inúmeras vezes incompetentes na busca de soluções para crises econômicas. O problema não é apenas enxergar a democracia por esta ótica. Mais grave é imaginar que há solução mágica fora dela. No Brasil, por exemplo, a pesquisa demonstra que 37% dos entrevistados acreditam que um golpe militar resolveria os problemas de corrupção e seria capaz de reduzir os índices da violência urbana.

Rematada bobagem. Nostalgia da ditadura brasileira revela não apenas desconhecimento histórico, mas também ignorância antropológica, por ser impossível comparar qualquer dado dos anos 60 e 70 com seus similares de hoje. Para começar, o Brasil de 1970, por exemplo, tinha 93 milhões de habitantes, sendo que 42% viviam na zona rural. Hoje, o Brasil tem 215 milhões, e 85% habitam as cidades. São obviamente dois países distintos. Mesmo os que acreditaram cegamente no regime militar daqueles anos não conseguiriam explicar de que forma ele se cristalizaria em 2020.

No mundo, segundo a pesquisa da Universidade de Cambridge, o desencanto com a democracia cresceu exponencialmente na última década em razão da crise econômica de 2008, por causa da insolúvel crise dos refugiados, em razão da polarização política e pela falta de respostas dos governos em atender questões sociais urgentes. Claro que o regime de governo não é o culpado por estes problemas, mas os entrevistados não pensam assim.

Somam 2,4 bilhões as populações dos países ouvidos na pesquisa. China e Cuba obviamente não foram consultados. Da mesma forma que há quem apoie uma ditadura militar, há também quem defenda o modelo de meritocracia do Partido Comunista chinês, onde os melhores ascendem na burocracia chinesa depois de serem testados em várias instâncias administrativas. Outros acham perfeito o regime cubano, onde escolas e hospitais funcionam melhor que no Brasil e o acesso é universal. Tudo bem, mas tente discordar de uma decisão de um chefe de quarteirão em Havana. E vai ver como funciona o mercado popular de Wuhan.

É hora de solidariedade com a China, não de racismo

Um passageiro chinês começou a tossir a bordo de um voo da Lufthansa de Frankfurt para a China, criando a maior confusão ao seu redor, nesta quarta-feira (29/01). A situação não melhorou nada depois de ele declarar que, duas semanas antes, estivera em Wuhan, a metrópole que é o epicentro do surto de coronavírus e que foi isolada pelas autoridades locais.

A confusão chegou até a cabine. O capitão, porém, permaneceu calmo e seguiu viagem, pousando sem problemas no seu destino. A tripulação e os passageiros das poltronas perto do chinês foram logo examinados. Horas depois veio o alívio: ninguém estava infectado pelo coronavírus.

A rápida propagação desse vírus potencialmente letal deixa gente de todo o mundo insegura. E a ampla cobertura da mídia sensibilizou para o problema. Só que muitas vezes a distância entre sensibilização e reação exagerada pode ser curta: asiáticos tossindo logo viram alvo de olhares ameaçadores, como se todos fossem portadores do perigoso coronavírus 2019-nCov. Em Hamburgo, um deles foi alvo de insultos racistas.

"Ih, você está com o vírus da China?" é uma pergunta comum nestes dias. Basta um nariz escorrendo. A expressão "vírus da China" joga a culpa sobre quem é vítima: a China é o país que mais sofre com o surto e está fazendo um enorme esforço, com uma transparência única, para quebrar a onda de infecções.


Na China, evita-se usar a expressão "vírus de Wuhan" pois estigmatiza toda uma cidade. Não são os moradores de Wuhan que transmitem a doença ou espalham o pânico, mas o vírus, que poderia ter surgido em qualquer lugar do planeta.

Em Wuhan, onde as autoridades aconselham os residentes a não saírem de casa, milhões dão prova de disciplina e sacrificam sua liberdade de ir e vir para que a doença não se espalhe ainda mais. Vídeos mostram moradores de um bairro que se comunicam por megafones em vez de se encontrarem.

A melhor proteção contra uma infecção é lavar as mãos com frequência, é sobretudo assim que se minimiza o risco. Segurança total não existe, muito menos num mundo tão globalizado, em que não só pessoas e produtos, mas também agentes patogênicos, viajam ao redor do planeta em poucas horas.

Afastar-se de indivíduos de aparência asiática não oferece nenhuma proteção adicional. O coronavírus não precisa de visto para entrar num país e não escolhe suas vítimas pelo tamanho do nariz ou formato dos olhos.

Neste momento, a palavra de ordem é solidariedade. Enquanto não se souber exatamente onde o vírus surgiu, de nada servem acusações de culpa, pânico e muito menos comentários racistas sobre supostos hábitos de alimentação e higiene dos chineses.

Pelo que se sabe até agora, o coronavírus não é mais perigoso do que, por exemplo, as ondas de gripe que atingem a Alemanha todos os anos. Vamos, portanto, superar as barreiras emocionais e analisar a situação de forma serena e racional, para chegar a recomendações de ação sensatas.

Em chinês, afinal, a Alemanha se chama De Guo: Terra da Moral.

Dang Yuan

Pensamento do Dia


Bolsonaro troca reforma ministerial por gambiarras

Não é que Jair Bolsonaro acredite na lorota segundo a qual seu ministério, por "eficiente", dispensa reforma. A questão é que o presidente optou por acochambrar. Ultimamente, quando uma peça do primeiro escalão dá defeito, ele instala uma gambiarra. Faz isso especialmente nos casos em que o conserto, para ser definitivo, exigiria o manuseio de um instrumento indisponível na sua caixa de ferramentas: a autocrítica.

Na área do meio ambiente, por exemplo, Bolsonaro só agiu quando o ambiente inteiro já estava conspurcado pelo escárnio governamental. Os maiores fundos de investimento do planeta avisaram: mantido o descaso com a proteção da floresta amazônica, não haveria como investir no Brasil. O ministro Paulo Guedes sentiu o hálito da contrariedade no Fórum Econômico Mundial de Davos, há uma semana.



Em resposta, Bolsonaro anunciou a criação do Conselho da Amazônia e da Força Nacional Ambiental. As novidades serão coordenadas pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Ainda não há clareza quanto à forma, o conteúdo e os custos. Numa evidência de que a iniciativa foi esboçada em cima do joelho, o plano de voo virá depois da decolagem.

Com essa gambiarra ambiental, em vez de substituir o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) Bolsonaro desligou-o momentaneamente da tomada. Uma das primeiras iniciativas de Mourão será a de tentar desobstruir o duto por onde escorriam as verbas milionárias que Noruega e Alemanha aportavam no Fundo Amazônia antes do transe anti-ambiental que se instalou em Brasília.

Na Casa Civil, supostamente comandada por Onyx Lorenzoni, a tática da gambiarra foi levada às fronteiras do paroxismo. Ali, Bolsonaro comportou-se como uma espécie de arquiteto desmazelado —do tipo que, ao ser alertado para os problemas do projeto de uma casa, diz algo assim: "Relaxa, depois a gente bota umas plantas."

Insatisfeito com o desempenho de Onyx, Bolsonaro retirou da Casa Civil o pilar da coordenação política, transferido para a Secretaria de Governo, e a viga do controle jurídico dos atos presidenciais, repassado à Secretaria-Geral da Presidência. A confiança do presidente no seu aliado de primeira hora trincou.

Para esconder a fenda, Bolsonaro mandara pendurar no organograma da pasta de Onyx o PPI, Programa de Parceria de Investimentos. Agora, atendendo a uma reivindicação de Paulo Guedes, determinou que a samambaia do PPI seja transferida para a estufa da Economia. Restabelecida a lógica, a Casa Civil tornou-se uma superestrutura pendurada no ar.

Onyx desfrutava de férias nos Estados Unidos. Estava no Magic Kingdom, o mundo encantado de Disney World. Teve de voltar às pressas. Mal aterrissou no inferno brasiliense, foi logo avisando que não cogita deixar o governo. Ou seja: não podendo elevar a própria estatura, Onyx decidiu rebaixar o pé-direito do seu gabinete.

Neste sábado, Onyx terá uma conversa a sós com Bolsonaro. Nada mudou, disse o ministro a correligionários ao longo da sexta-feira, sem se dar conta de que, no seu caso, nada é uma palavra que ultrapassa tudo. No momento, a Casa Civil é uma espécie de elefante que Bolsonaro eletrocutou sem calcular a dificuldade que teria para remover o cadáver.

Propagou-se no Planalto a informação de que, em nova gambiarra canhestra, Bolsonaro acomodaria a inépcia de Onyx na pasta da Educação, hoje preenchida pela incompetência de Abraham Weintraub.

Na noite passada, horas depois de interromper uma entrevista para não ter que falar sobre o futuro de Onyx, o presidente postou em suas redes sociais uma foto na qual aparece ao lado de Weintraub, seu auxiliar mais "imprecionante". Na legenda, apenas um enigmático "boa noite a todos".
Josias de Souza

As crianças

Se quiserem ser práticos, ao mesmo tempo que derem doces e balas às crianças, abram créditos nas farmácias e nos consultórios para os pais que forem pobres..
Não fui à Festa da Criança. Leio, porém, nos jornais que essa festa excedeu a todas as expectativas. Bendigamos, pois, os corações dos que, durante algumas horas, conseguiram fazer feliz a criança. Mas, deuses do Olimpo, por que martirizar a petizada com dois discursos, como fizeram nessa tremenda festa? Dois discursos e não sei quantos hinos! Às crianças, no dia de sua festa, não se fala. Se se organiza uma festa de crianças, façam-nas brincar à vontade, deem-lhes música, cinema, carrossel e doces em quantidade. Se quiserem ser práticos, ao mesmo tempo que derem doces e balas às crianças, abram créditos nas farmácias e nos consultórios para os pais que forem pobres.... Mas, pelo amor de Deus, nada de discursos. Também já fui criança e detestava os discursos que me falavam da Pátria e de outras coisas desagradáveis. A Primavera é uma figura de retórica muito interessante; mas num discurso, quando somos crianças, a Primavera é pior do que o Verão. E fazer as crianças cantar hinos patrióticos! Há muita gente que dá uma importância supersticiosa aos hinos como inspiradores de patriotismo. É um engano. O francês não tem patriotismo por vir cantando a Marselhesa desde a infância, não; pelo contrário, ele canta a Marselhesa porque é patriota. Quando eu era menino, cantei na escola muitas vezes um hino ignominioso que começa:

Seja um pálio de luz desdobrado
Sob a vasta amplidão destes céus..

Pois até hoje não consegui estimar semelhante cantoria. Em resumo: reunir crianças num teatro para fazê-las ouvir oradores e cantar hinos patrióticos é martirizá-las. Festas de crianças devem realizar-se em parques e jardins, com toda a liberdade de ação e grande quantidade de confeitos. A criança estima acima de tudo estas duas coisas deliciosas: liberdade e açúcar...

Antônio Torres, "Antônio Torres, uma antologia"

Milícia se oficializa

De um lado, as milícias têm recursos e votos para colocar à disposição do sistema político, dos políticos. E os políticos, que é o caso específico no Rio de Janeiro – mas também em outros estados – dão cobertura, blindam essas milícias para que elas continuem atuando.
No limite, as milícias representam um risco à democracia ao entrar na política. E, também, pelo fato de elegerem bancadas do crime. Para representar a população? Não. Mas, sim, para exercer a sua vontade, a sua preocupação que é exatamente de expandir seus lucros criminosos e defender as suas bases criminosas.

Vamos ao coração das trevas: a milícias controla o território. Controlando o território ela controla o voto. Isso quer dizer que ela pode eleger aliados dela, ou então, vai eleger os seus representantes.
Forma-se, então, uma bancada do crime dentro de um Legislativo, seja municipal, seja estadual ou mesmo com representantes no Congresso Nacional
Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa

O preço das epidemias

No ano de 541, uma epidemia mortal começou a espalhar-se rapidamente pelo Mediterrâneo, com consequências terríveis. A “praga de Justiniano”, como ficou conhecida por ter eclodido no reinado desse imperador, matou mais de metade da população europeia e acabou por contribuir para a queda do Império Romano do Oriente. Mais tarde, entre 1347 e 1351, uma outra epidemia, a da peste negra, voltou a assolar a Europa, matando mais de 100 milhões de pessoas, e fez mergulhar o continente numa crise de que demorou um século e meio a recuperar.

Estes dois exemplos históricos e ocorridos no nosso espaço geográfico são a perfeita ilustração de que as pandemias não matam apenas pessoas: elas destroem economias, alteram o modo de vida e condenam gerações. No passado, o contágio era mais lento, embora imparável. Agora, com mais de metade da população a viver em cidades e com meios de transporte acessíveis e rápidos, o perigo de contágio é muito superior e pode tornar-se igualmente tão destrutivo como no passado – com custos insuportáveis tanto em perda de vidas como na economia e no bem-estar das populações.

A mera possibilidade de dezenas de milhões de pessoas na segunda maior economia do mundo poderem ficar de quarentena por causa do surto do coronavírus já fez estalar, por exemplo, os alarmes entre investidores e economistas. O que acontecerá ao comércio mundial se as fábricas do maior exportador do planeta ficarem impedidas de enviar os seus produtos para o exterior? E quais serão as ondas de choque nos países cujas economias estão centradas na exportação de matérias-primas para a China? Por outro lado, se milhões e milhões de chineses ficarem impedidos de viajar, durante um período prolongado, podemos assistir a algo inédito nos últimos anos: a diminuição do número de turistas no mundo.

A boa notícia, tendo em conta a cooperação científica internacional a que se está a assistir, é que esta crise pode funcionar como um alerta para prevenir futuras pandemias e obrigar os governos de todo o mundo a desenvolverem aquilo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) pede há anos: um plano de prevenção e contingência, à escala planetária. Ou seja, um plano em que todos os países saibam o que devem fazer, sem perder tempo, de forma a coordenarem uma resposta à escala global. Segundo a OMS, um programa desse género custaria à volta de um euro por habitante por ano. É muito? A resposta sem plano, como se está a ver, será sempre muito mais cara.