quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Salvação e salvadores

Outro dia, li uma nota levemente crítica ao ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Ele escrevera um artigo afirmando que Deus estava na diplomacia, na política, em todos os lugares.

Embora não seja propriamente um teólogo, considero bastante previsível a crença na onipresença divina. Algumas religiões estendem o dom da ubiquidade a todos os espíritos. Para dizer a verdade, alguns deuses, como o hindu Shiva, têm poderes muito mais ecléticos: dança, destrói, faz um carnaval.

Não temos o dom divino da onipresença porque somos humanos e não toleraríamos a presença na vastidão. No meu caso, dispensaria Bruxelas sob chuva e as noites de Codó, no Maranhão.


O que me intriga no pensamento do ministro Araújo é sua crença na salvação do Ocidente, liderado por Donald Trump. Essa história de salvação, creio que surgiu, pela primeira vez, com Zoroastro, perpassou o cristianismo, reaparece na religião laica que é o marxismo e sobrevive em alguns setores da ecologia que acreditam poder salvar o planeta.

Se a salvação para mim é um conceito duvidoso, o que diria do salvador? De que podemos ser salvos por alguém como Trump, que diz às crianças que Papai Noel não existe e contrata advogados para silenciar mulheres com quem transou?

Se pelo menos Trump usasse o que se diz sempre — errar é humano, a carne é fraca, atire a primeira pedra —, os valores ocidentais estariam em melhores mãos. O problema central é a relação com os Estados Unidos. Ela precisa de equilíbrio, e há quem trabalhe nesse tema desde o século passado.

Afonso Arinos, em 1952, quando ainda esboçava suas ideias sobre uma política externa independente, defendeu o Acordo Militar Brasil-EUA. O governo Vargas queria isso, mas não teve coragem de dar as caras. Resultado, Arinos apanhou sozinho da esquerda.

Acontece que no acordo havia um só tópico que não interessava ao Brasil. Arinos ofereceu uma fórmula diplomática para contornar a dificuldade. Apanhou da direita.

Mesmo nos primórdios do que mais tarde seria uma política externa independente, a proximidade com os Estados Unidos representava um fato decisivo. Mas também era bastante claro que a proximidade não significava uma adesão acrítica a todas as propostas americanas.

No momento, esta questão vai aparecer com muita delicadeza, entre outras, nas relações com a China. Trump espera apoio na sua guerra comercial. Mas tem negociado intensamente com Xi Jiping.

Não está muito claro o papel que teremos nesse triângulo. Por enquanto, estamos ainda em discussões teológicas, ave-maria em tupi, José de Alencar e arroubos nacionalistas.

Tudo isso, para mim, anima um pouco o morno universo político brasileiro. Mas existem algumas contradições. Um forte tom nacionalista quando se trata de organismo multilateral. Uma duvidosa escolha do salvador, quando se trata das ameaças ao Ocidente.

Não imagino que o olhar severo do ministro Araújo esteja voltado contra os jogadores de I Ching ou leitores do Tao. Ele se preocupa com o marxismo chinês, com os grupos islâmicos, com a desaparição de traços culturais do país num mundo globalizado.

Mas é um exagero supor que nossa política externa seja uma medíocre omissão baseada em interesses comerciais. O desejo de defender a paz e solução negociada para os conflitos é um dado da cultura brasileira.

No século passado, o Peru inaugurou uma avenida com o nome de Afrânio Mello Franco, pai de Afonso Arinos. Os peruanos acham que o velho contribuiu para evitar uma guerra com a Colômbia.

Se isso não basta, lancemos um olhar para o próprio governo Bolsonaro. Dois dos seus ministros são generais destacados na manutenção da paz no mundo: Augusto Heleno, no Haiti; Carlos Alberto dos Santos Cruz, no Congo.

O Brasil não é uma invenção intelectual. A política externa do PT foi um desvio voluntarista. Ao delírio da esquerda, não se pode responder com o delírio da direita.

Política externa é fruto de um consenso nacional. Não adianta forçar a barra. Sofremos com isso, e o preço político que os vencedores do momento pagarão é bem maior que os equívocos domésticos, num país em que nem todos os meninos se vestem de azul, nem todas as meninas de rosa.

Pensamento do Dia


Ideologia pura

Quanto mais o discurso do governo Bolsonaro combate a “ideologia”, mais fica evidente seu caráter ideológico.

Primeiro, uma ponderação: não existe posicionamento ou ato político que não seja, em alguma medida, ideológico.

Em tudo que fazemos há pressupostos que não são fruto do uso livre e imparcial da razão: há valores, há uma concepção de como o mundo deveria ser, há apego a certas explicações da realidade, há a preferência por certos grupos de pessoas.

Nenhum homem jamais será uma máquina de razão pura; e ainda bem, pois se fosse não sairia do lugar.

Mas há diversos graus de ideologia.


Uma coisa é se guiar por algumas crenças, mas ser capaz de corrigi-las se a evidência contrária se acumular; comunicar suas ideias e propostas com serenidade e objetividade, facilitando a discussão racional; ouvir e aprender com o contraditório; ter consciência de que ninguém está totalmente certo sobre tudo; reconhecer o conhecimento e a capacidade técnica que existem em pessoas com pensamento contrário.

Outra, bem diferente, é apostar no discurso sempre enfático e maniqueísta, estimular as paixões das massas, nomear apenas correligionários independentemente de seu mérito técnico ou profissional e expulsar todos os que não fazem parte da panelinha. Isso é ser ideológico.

O foco na ideologia é um jeito de manter e expandir o próprio poder enquanto se reproduz as mesmas exatas práticas de quem se acusa.

Na leitura ideológica de direita, apenas o PT aparelhava o Estado.

Quando o governo Bolsonaro faz a mesma coisa, está limpando o Estado.

Direitos humanos, relações exteriores e educação formam o núcleo ideológico do governo; uma mistura de reacionarismo de Olavo de Carvalho e da direita evangélica.

Até agora, têm levado a melhor inclusive sobre críticos internos ao próprio governo, como a ala militar, que não se encanta pelos discurso sebastianista e estranhamente submisso ao governo Trump do atual chanceler Ernesto Araújo.

O Ministério da Educação, que deveria estar no centro de prioridades de qualquer líder preocupado com o Brasil, foi entregue a um intelectual de direita (Ricardo Vélez Rodríguez) sem qualquer experiência de gestão e sem a menor ideia dos entraves do ensino público brasileiro e como resolvê-los.

Pelo contrário, traz uma agenda de combate ao marxismo cultural, globalismo e “ideologia de gênero”.

É verdade que não existe conhecimento ou ação totalmente desprovidos de ideologia; mas não dava para escolher pessoas com um pouquinho mais de capacidade técnica e que não vivessem no mundo da lua?

O governo Bolsonaro é pretensamente conservador, mas na verdade está mais para revolucionário, ou o que é o sentimento revolucionário voltado para o passado, reacionário.

A panelinha de correligionários é detentora da verdade e com ela vai redimir a nação.

Quem se colocar contra, está do lado do mal.

Comprando a narrativa falsa de que antes de seu governo vigoraram apenas as trevas (“socialismo”, globalismo, corrupção e outros males), sustenta a fantasia de que vivemos uma nova era, que existe apenas dentro da cabeça de quem ainda está maravilhado com a retórica do presidente e de alguns de seus asseclas.
Se não deixar a ideologia de lado um pouco para de fato resolver problemas do Brasil, será só uma questão de tempo até que a dura realidade desbanque o conto de fadas.
Joel Pinheiro da Fonseca

É outro país lá fora

A Corte Suprema concordou, como medida de racionalidade dos gastos públicos, que a remuneração dos 11 ministros seja reduzida em 25%
Supremo Tribunal de Justiça do México, "sob os princípios de eficiência, eficácia, economia, transparência e honestidade que a própria Constituição estabelece"

Será que...

Estamos tentando implementar um programa igualitário? Um projeto que provoca alergia nas nossas mais variadas nomenclaturas e castas de direita e de esquerda? Uma proposta potencialmente conflituosa, sempre republicanamente querida e paradoxalmente adiada porque somos profusamente anti-igualitários?

Um plano que levaria — se eu ouvi bem o Paulo Guedes — ao desmonte de um Estado tutelado por “funcionários públicos” que recriaram uma aristocracia republicana no tal “Estado Novo”? O “novo” óbvia e inconscientemente dando continuidade e consolidando não apenas seus imensos poderes mas, em paralelo, seus maneirismos palacianos, os quais nós, os comuns ou os negadores do real, tínhamos como modelares, polidos e superiores? Será que trocamos os punhos de renda por gravatas italianas e as cadeirinhas, tocadas à escravidão, por carros oficiais com as placas do “sabe com quem está falando?”

Será que estamos começando a romper com um estilo de vida baseado nas reciprocidades do patriarcalismo reunido ao aparelhamento partidário e de um liberalismo à meia bomba, para inglês ver?


Será que conseguimos produzir uma elite antifidalga? Aquela que Nabuco e Raymundo Faoro desmitificam? Elite que não vai se reproduzir como dona do poder, um contraditório patriarcalismo burocratizado? Um enlace entre Estado e sociedade legitimado por garantias igualitárias, mas cujos procedimentos estariam longe da ética republicana e feitos com base na companheirada? Será que vamos ser capazes de sacudir a herança ibérica, modelada numa concepção de Justiça ritualística, domada muito mais pela abundância dos recursos e filigranas legalistas do que pela equidade da soberania individual-cidadã? Será que estamos tentando legislar menos para o quarteirão que deixa escapar o bandido protegido pelos privilégios do cargo de que tomou posse? Estamos diante de uma quimera quando ouvimos os ruídos da revisão de um despotismo legalista porque o que conta não é o crime, mas quem o cometeu? Estou vivendo tempos nos quais povo e elites desejam terminar de fato com o axioma de que seguir as leis é “uma babaquice” — conforme ouvi a vida toda?
Será possível continuar com o axioma do trabalho para muitos, impostos para todos, burocracia para o sistema e cargos especiais e muitos conselhos de Estado para os escolhidos? Esses conselhos que anulam a aferição dos resultados e institucionalizam o “jogo de empurra” estampado nos jornais?
Num mundo em transformação, será possível um sistema legal que tudo prevê graças à sabedoria dos juízes cuja consciência vemos em nossas casas nos seus narcisismos de celebridades e nas suas incoerências? Como continuar misturando desigualdade e o ideal constitucional de igualdade que leva ao debate e ao movimento, próprios da natureza da democracia?

Resposta: penso que vai ser complicado. O desejo inconsciente de dar tiro no pé é muito grande. Será que ele vai continuar vencendo?
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Uma dupla dizia que “a prova do pudim está em comê-lo”. O socialismo, como as mais variadas dietas, mandamentos e votos, tem — como os pudins — consequências. Geralmente não funcionam, são adaptados ou simplesmente pervertidos. A receita de conciliar liberdade com igualdade dentro de um plano equilibrado exige, conforme viu Tocqueville, orgulho. Um valor que seus mais importantes estudiosos, de Harvey Mansfield, Jean-Claude Lambert a Pierre Manent, traduzem como autoestima, competência, honra e, no caso brasileiro, honestidade — essa marca registrada dos babacas!

De nada valem promessas se não há sinceridade e competência. Nenhum regime (ou instituição) sobrevive ao roubo; nenhum governo se salva diante da desonestidade para consigo mesmo e sua sociedade. No caso brasileiro, a diferença não é de superfície. É de fundo. O pudim não pode ser provado porque ele não foi feito.

Nem democratismo, stalinismo, populismo, fascismo, nazismo ou espiritismo sobrevivem — a despeito da simpatia e do fanatismo de alguns — ao roubo, à mentira e à sabotagem. No caso do Brasil, o que se espera quando se trata de “governo” é honestidade e honradez. Tudo pode ser parecido ou radicalmente diferente. A ausência de entrosamento, o discurso tosco, até mesmo o ridículo e a má informação são toleráveis. Mas ninguém tolera mais malandragem e mendacidade como projeto de poder.

O ordálio do governo que mal começou, a prova do seu pudim, não está apenas nas suas promessas, mas no modo de cumpri-las. Essa é a sua prova; essa é a bala de prata do seu sagrado desafio.

Brasil novo!?


Enrolar o paraquedas

O presidente Jair Bolsonaro já aterrissou, mas ainda enrola o paraquedas. A segunda reunião ministerial que realizou ontem não concluiu o plano de trabalho para os primeiros 100 dias de governo, nem mesmo um programa minimalista, com começo, meio e fim, que possa servir de base para que a sociedade saiba o que ele realmente pretende fazer. O governo está diante de uma equação já anunciada por alguns analistas, mas que não é fácil: precisa anunciar medidas que mantenham sua tropa aguerrida e unida, porém está diante de uma realidade que não comporta soluções simplistas como as promessas da campanha eleitoral.

Por exemplo, depois da reunião de ontem, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anunciou que o governo prepara um decreto para flexibilizar a posse de arma, segundo o princípio da legítima defesa. É uma bandeira de campanha de Bolsonaro que tem amplo respaldo popular, mas isso não significa a liberação do porte de arma para os cidadãos. A diferença entre uma coisa e outra é abissal. Sem entrar no mérito da questão, a medida contrasta com a realidade. Apresentada como antídoto à violência urbana, qualquer um que acompanhe o noticiário policial sabe que o problema é muito mais grave. Basta olhar para a crise de segurança em curso no Ceará, que pôs de ponta-cabeça a relação governo versus oposição. O presidente da República gostaria de jogar o problema no colo do governador Camilo Santana (PT), mas teve de sair em seu socorro; o petista foi obrigado a pedir ajuda ao governo federal e deixar de lado a oposição incondicional que vinha mantendo.

A propósito, essa crise do Ceará pode se generalizar. Os governadores recém-eleitos anunciam que vão endurecer o jogo com os chefões do tráfico de drogas, porém, sem antes estudar as condições para fazê-lo com eficiência e sem os efeitos colaterais. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), passando em vista as tropas da Polícia Militar, anunciou que os bandidos vão ter de mudar de Goiás, porque a barra lá vai pesar. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) reiterou sua política de abate de criminosos (“Não ande de fuzil, você vai morrer”), no entanto, já começou a contabilizar policiais militares mortos durante a sua gestão. Até o governador João Doria (PSDB) endureceu a fala contra os chefões que controlam os presídios do estado.

Bem mais fácil até agora tem sido a adoção de medidas contra os índios, os sem-terra e os imigrantes. Bolsonaro resolveu rever a demarcação de terras indígenas e suspendeu os processos de reforma agrária; pediu aos diplomatas brasileiros que comuniquem à Organização das Nações Unidas (ONU) que o Brasil saiu do Pacto Global para a Migração, ao qual o país havia aderido em dezembro, no fim do governo Michel Temer. São medidas compatíveis com as promessas de campanha. Como são grupos minoritários e muitos vulneráveis, que precisam de certa proteção do Estado, logo começarão os efeitos colaterais, principalmente a violência no campo, ainda mais com a liberação da posse de armas.

Os Sertões, de Euclides da Cunha, foi livro de cabeceira dos integrantes do movimento tenentista. Relata o maior vexame pelo qual já passou o Exército brasileiro, bem como o maior massacre de civis que já protagonizou. O livro Abusado, de Caco Barcelos, que relata a vida de um traficante no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, permite um paralelo entre duas situações de absurda iniquidade social, uma rural e outra urbana, com um viés antropológico comum: a condição humana. É aí que está o xis do problema. Os índios sobrevivem porque não abrem mão de sua identidade étnica e cultural; os sem-terra existem porque não querem deixar o campo; os imigrantes chegam para fugir de situação muito pior do que a que enfrentarão por aqui. Não há como resolver esses problemas sem eliminar suas causas, simples assim.

E a Previdência? Não há um só integrante do governo que não diga que essa é a prioridade da gestão Bolsonaro. Onde está a dificuldade? A resistência não vem da grande massa de trabalhadores do setor privado, mesmo que a idade mínima seja elevada para 65 anos. A resistência vem das corporações do Estado, principalmente dos estratos mais elevados, que não querem abrir mão de privilégios e tem o poder de paralisar o governo. Não é à toa que Bolsonaro recuou de graça em relação à idade mínima, perdendo assim um trunfo para a negociação no Congresso. Procuradores, magistrados, militares, policiais, auditores-fiscais, as chamadas carreiras típicas de Estado são contra a idade mínima e a paridade entre os dois sistemas, essa é a verdade. Por isso, a proposta de reforma de Previdência de Paulo Guedes pode morrer na praia. O que deve vingar é a negociada por Michel Temer. Ainda assim, mitigada.

O Deus obsessivo e politicamente incorreto de Bolsonaro

No discurso de posse do novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, a palavra mais usada foi Deus, fazendo honra ao seu lema de campanha, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Dá a impressão de que o Brasil deseja ser governado sob o amparo divino, mais do que sob as leis e a Constituição.

E não só o presidente, mas também seu recém-estreado ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou que Deus estará “na diplomacia, na política, em todas as partes”. E chegou a individualizar essa presença forte de Deus em dois personagens emblemáticos do mundo atual: os presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, e do Brasil, Bolsonaro. São eles dois que, segundo o diplomata, devolverão a Deus a uma civilização que o tinha perdido.

Trata-se, entretanto, de um Deus ambíguo e politicamente incorreto, já que apresentado como representante da civilização cristão-judaica. Não é o Deus que deve libertar os escravos da pobreza e da injustiça, o Deus dos que sofrem por serem diferentes, o dos excluídos dos privilégios, e sim o que adoram os satisfeitos, o vingador mais que o pacificador. O Deus da violência mais que o desarmado das bem-aventuranças.

Um Deus que infunde medo nos que deveria acolher sob sua proteção. É um Deus que se faz ouvir só através das ordens, gritos e armas do poder, não o que fala no silêncio dos corações em busca de paz e de diálogo.

Basta, entretanto, observarmos os países que colocaram Deus “acima de tudo e de todos”, e seus resultados. Costumam ser não só os mais autoritários e atrasados, mas também aqueles onde os pobres e as minorias sofrem com mais força a injustiça e a violência. O Brasil, é verdade, sempre foi um país, como quase toda a América Latina, com uma forte presença religiosa nas massas populares. Tratava-se, entretanto, mais de uma postura pessoal, como refúgio contra a dor e as dificuldades da vida. Agora, no Brasil, estamos numa fase nova e mais perigosa. A bandeira de Deus é hasteada por um presidente que parece querer governar em seu nome.

A ideia de Deus – que deveria ser conjugada, no máximo, com os movimentos de liberação dos oprimidos e marginalizados – começa a se tornar, como nas piores teocracias, um curinga para encobrir políticas de obscurantismo. O Brasil passou da teologia da libertação de raiz católica, baseada na mensagem marxista da luta contra a injustiça, à conservadora “teologia da prosperidade” dos evangélicos, que promete novas utopias que adormecem as injustiças.

O novo Governo de Jair Bolsonaro, o presidente apaixonado em igual medida por Deus e pelas armas, vai necessitar de uma oposição para que a obsessão do “Deus acima de todos” não se transforme numa perigosa idolatria. Nada mais explosivo para a democracia que uma presença obsessiva da sombra de Deus por parte dos que governam um país laico por constituição.

Alguém terá de explicar aos evangélicos de boa fé, que são a grande maioria, e também os mais castigados pelas injustiças sociais, que Deus, mais que uma bandeira nas mãos de conservadores e políticos que o anulam como propriedade, deveria ser uma força de resistência contra as desigualdades sociais e as intolerâncias. A excessiva presença de Deus na política acaba sempre se tornando um oculto e cruel inimigo dos que sempre pagam o preço da opressão. Os piores ditadores, de qualquer cor política, acabaram convertidos em grandes apaixonados por Deus.

Nada pior para as massas mais desamparadas, sobre as quais recai sempre o peso da violência econômica e social, que um Deus ambíguo, transformado em arma para castigar, mais que na alvorada de uma ressurreição de seus sonhos. Nada menos cristão que frustrar, em nome de Deus, os sonhos dos que mais sofrem. Nada pior que tentar governar pelas mãos de Deus. Nada mais perigoso que o Deus que teme a discussão das ideias e a pluralidade dos desejos.

Não acredito que o sonho dos brasileiros, até dos mais pobres, seja o Deus militarizado que impõe uma obediência cega. Eu os vejo mais como seguidores do Deus dos limpos de coração, como aqueles que, mais que a justiça divina, temeram sempre a violência arbitrária dos que os escravizam. Sempre em nome desse Deus, curinga para justificar todas as opressões. O Deus dos escravos nunca será o Deus com o qual o poder mercadeja.

Os países em que CEOs já ganharam em 2019 mais do que você receberá no ano todo

Na virada do ano, é possível que você tenha vestido amarelo ou definido metas para incrementar seus rendimentos nos próximos 12 meses.

Pois saiba que, dependendo do país em que você vive, o chefe de sua empresa já pode ter feito, neste ano, mais dinheiro que você fará no ano inteiro.

Em lugares como Estados Unidos e Reino Unido, poucos dias de janeiro já são suficientes para que os CEOs (sigla derivada do inglês que se refere ao cargo de diretor executivo) superem o rendimento anual de um trabalhador médio.


Isso pode ser visto no levantamento da diferença salarial de CEOs e trabalhadores em 22 países feito pela Bloomberg, empresa do ramo financeiro e midiático.

Nos Estados Unidos, por exemplo, estes executivos precisam de menos de dois dias (1,52) para superar a renda média anual dos trabalhadores. Na Índia, é preciso ainda menos: um terço de dia (0,35).

De forma geral, parece que uma semana é mais do que suficiente para um alto executivo chegar ao salário anual do trabalhador em diferentes partes do mundo. Por exemplo, na África do Sul são necessários quase três dias (2,99), enquanto na China são necessários 2,11 dias.

O Brasil não faz parte do levantamento da Bloomberg, mas, segundo dados da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), CEOs levam para casa por ano, em média, US$ 322 mil (cerca de R$ 1,2 milhão). Assim, estes executivos precisam, no Brasil, de cerca de oito dias para superar o ganho médio anual de trabalhadores brasileiros.

"Nos Estados Unidos, a diferença entre o salário de um trabalhador e de um CEO foi oito vezes maior em 2016 do que em 1980", escreve o jornalista americano Sam Pizzigati, autor de O caso por um salário máximo, livro lançado em maio do ano passado em que apresenta argumentos para que seja colocado um teto nos salários de executivos.

"Na maior parte das grandes corporações, os trabalhadores típicos teriam que trabalhar mais de três séculos para chegar ao que seu CEO faz em um ano. No McDonald's, um trabalhador típico teria que trabalhar por 3.101 anos".

Alguns fatores fazem variar os salários de executivos ao redor do mundo.

Várias das maiores corporações do planeta, que tendem a premiar mais seus executivos, estão sediadas nos EUA - onde o salário anual médio dos principais executivos é de mais de US$ 14 milhões (aproximadamente R$ 52 milhões).

Fatores como custo de vida também desempenham um papel.

Países desenvolvidos tendem a pagar salários mais altos para a população com um todo. Mas mesmo as nações com padrões de vida mais altos podem registrar discrepâncias consideráveis entre o salário de um CEO e o de um trabalhador.

Na Suécia, que tem fama de ter uma sociedade mais igualitária do que no resto mundo, a proporção é de 60 para 1 - ou seja, os rendimentos de um CEO são 60 vezes maiores que os de um trabalhador médio.

Os executivos do país superam os rendimentos anuais do trabalhador médio em apenas 5,5 dias.

Na Noruega, as coisas estão mais equilibradas, mas, ainda assim, os CEOs superam o salário médio em cerca de 15 dias (14,6).

Eles ganham em média 20 vezes mais do que o salário médio nacional, de US$ 51.212 (cerca de R$ 191 mil).

Já a Rússia é desses países em que CEOs superaram o rendimento anual dos trabalhadores no primeiro dia o ano.

De acordo com o ranking da Forbes de 2016 dos 25 CEOs russos mais bem pagos, a remuneração anual foi em média de US$ 6,1 milhões (em torno de R$ 22,8 milhões).

Se comparado com o salário médio anual do país, de US$ 8.040 (próximo de R$ 30 mil), o rendimento dos executivos chega a esse valor na metade de um dia (0,46).

No México, onde os principais executivos recebem, em média, US$ 1,29 milhão (algo como R$ 4,8 milhões) por ano, segundo o site SalaryExpert, este período é de pouco mais de quatro dias.

Primeira semana: equívocos

Com alguma razão, a base bolsonariana, os esperançosos de sempre e os mais tolerantes de início pedem tempo. Afinal, na primeira semana, é como acordar de madrugada no quarto escuro de uma casa que não se conhece; a pequena distância percorrida até o banheiro compreende tropicões que derrubam enfeites da mobília que fazem barulho e às vezes quebram. Uma natural inadequação do corpo ao espaço; o inevitável desconforto com o calçado novo, até que o sapato se molde ao pé ou o pé se conforme ao sapato.

Há também, é claro, o deslumbre com o sonho de princesa que há nas posses e transmissões de cargo. As pompas e circunstâncias são incorretamente entendidas como coroamentos da vitória — como se, vencida a guerra, o corpo do guerreiro pudesse relaxar. E ao final as câmeras se afastam para dar a perspectiva do cavalheiro e sua dama cavalgando em direção ao infinito, quando descem os letreiros desfechando a estória: "… e foram felizes para sempre".


Acontece que inícios de governo não são nada disso. São, mais que tudo, provações e o despertar de novas batalhas. Muito do todo depende do começo, a (primeira) impressão que se deixa é o que fica. Trata-se do momento de dizer, com todo ímpeto, ao que se veio e o que será. A demarcação clara e firme do espaço e dos objetivos. É um "chegar chegando", com medidas, planos, estratégias delineadas, sem espaço para improvisação.

Os rituais do Poder não podem ser desconhecidos ou desprezados e mesmo que algumas gafes sejam inevitáveis, a imagem da liderança precisa ser afirmada e reafirmada. No presidencialismo, o presidente sabe tudo, controla tudo; arbitra interesses e apazigua conflitos. De modo algum pode ser ele a fonte de confusões pois, no limite, cabe a ele trazer a luz, o esclarecimento, a ordem. Por isso, evita se expor, nomeia porta-vozes e assim ouve muito e fala pouco.

As decisões, os planos, as estratégias são definidas antes da posse; reuniões que trazem muita visibilidade são apenas formais e servem mais que tudo para sacramentar o que foi definido nas articulações de bastidores. O velho Tancredo Neves dizia, por sinal, que "reunião com mais que três [pessoas] é comício". O presidente, impessoal, pesa, pondera, decide e determina. Os auxiliares cumprem o que, nos despachos fechados, propuseram e ajudaram a construir.

A primeira semana de Jair Bolsonaro não foi assim, no entanto. Infelizmente, seus primeiros passos parecem se dar mais no escuro do que deveria ser. Confessadamente, foi marcada por "equívocos".

Seus dois discursos inaugurais olharam mais para o passado da campanha eleitoral do que para o futuro. Embora para muita gente pudessem sugerir o contrário, eles não demarcaram posturas de governo e pareceram confeccionados ainda para os tempos do palanque.

Houve quem, nos pronunciamentos e gestos de Sua Excelência e seus ministros, buscasse toques de gênio: "os discursos do presidente tiveram por finalidade se comunicar diretamente com a população, demonstrando autonomia em relação ao Congresso Nacional e os partidos, de modo a coagi-los". Pode ser. Com boa vontade, procurei e, no entanto, não encontrei sequer brumas disto ou de um maquiavelismo enrustido.

Um repórter me questionou sobre a "ofensiva no campo simbólico, cujo objetivo", dizia ele, "seria estabelecer uma cortina de fumaça para as medidas impopulares adotadas". Ele se referia a aspectos do campo dos costumes ou dos discursos, os quais Bolsonaro já havia dito e redito. Todavia, francamente, as cores com que a ministra prefere ornamentar bebês ou o "javanês" que o novo chanceler insiste exibir são poucos relevantes diante do todo e tendem a se perder na dinâmica de uma sociedade complexa. Devolvi a questão: "à quais medidas você se refere?" Ele não soube dizer.

No campo da Justiça e Segurança, as providências de Sérgio Moro e equipe não teriam o porquê ficar ocultas sob a pretensa "cortina de fumaça" da tal "ofensiva simbólica", de que falava o repórter. Além de necessárias, elas não parecem exatamente impopulares.

Já o pronunciamento bem alinhavado do ministro da economia, que causou espécie ao mercado e aos agentes econômicos, foi feito de improviso e ainda não permitiu verificar nenhuma estratégia, tempo ou movimento para implementá-lo. O ministro disse o que tem dito há anos. E, no mais, apenas se permitiu esboçar para o Congresso Nacional Planos B antes mesmo de definir e apresentar categoricamente qual, afinal, será o Plano A. Um deslocamento da lógica.

Mas, não parou por aí: fontes as mais insuspeitas da mídia revelaram que, na primeira reunião de ministros, Bolsonaro e Paulo Guedes divergiram publicamente em relação à reforma da previdência. Ora, presidente e ministros não discutem no meio do salão; há entre eles alguém cuja autoridade é incontestável. Depois, mesmo sem definição, mais tarde, na TV, o presidente preferiu adiantar medidas sem combinar com seu próprio time. Novamente, a lógica se ressentiu.

Pode ser mesmo muito cedo, mas não aproveitar a largada para ganhar dianteira, forjar impactos e causar a boa impressão que leva aos tais choques de expectativas não é nada bom, mesmo para uma primeira semana. Até os tolerantes admitirão que foram momentos de vazio; o suco que se lhes pode retirar é ralo e um tanto insípido. Não causou boa impressão. E estranho — talvez inovador — foi mesmo ouvir um ministro corrigir seu presidente em rede nacional: "ele se equivocou".

Disse-me um amigo que "amadorismo é uma palavra que não começa a descrever o tamanho do problema". Com efeito, não foi uma boa semana, o quarto está muito escuro e as vistas não se acostumaram a ele; Bolsonaro deu as primeiras topadas com os móveis. Sé é impossível refazer o começo, ainda dá para recomeçar e fazer um novo fim. Há centenas de semanas pela frente, mas cada uma é menos uma.
Carlos Melo