sábado, 9 de novembro de 2024
Faltam escolhas sábias
A participação pública não é a única coisa a se considerar, a gente também quer que as pessoas façam escolhas sábias quando votam. Acho que elas estão votando por causa de questões de curto prazo, como a inflação, sem atentar para outras, de longo prazo, muito mais importantes, como a sobrevivência do Estado de direito nos EUA.
Francis Fukuyama, autor de "O fim da história e o último homem"
Civilização Ocidental
Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem íntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois as doze horas de trabalho
Escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra
A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.
Agostinho Neto
fixados na terra
fazem a casa
Os farrapos completam
a paisagem íntima
O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante
Depois as doze horas de trabalho
Escravo
Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra
A velhice vem cedo
Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.
Agostinho Neto
O homem certo
Hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redações dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um gênio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redação são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porém, o génio passa a outra condição. Deixa de ser matéria fútil da crítica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tão pouco a sério como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de fatos concretos, com todas as consequências que isso tem.
Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância.
Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem, e é por isso que sobram sempre muitos atributos. Foram criados um dia por algum homem importante para outro homem importante, mas esses homens há muito que morreram, e os conceitos que lhes sobreviveram têm de ser utilizados. Por isso andamos sempre à procura do homem certo para um determinado adjetivo. A "portentosa plenitude" de Shakespeare, a "universalidade" de Goethe, a "profundidade psicológica" de Dostoievski e muitas outras imagens que uma longa tradição literária deixou atrás de si andam às centenas nas cabeças dos que escrevem, e essa sobrelotação de reservas leva-os a dizer hoje que um estrategista do tênis é "insondável" ou um poeta em moda "grandioso". É compreensível que se sintam gratos quando conseguem aplicar sem desperdício a sua reserva de palavras. Mas terá sempre de se tratar de um homem cuja importância já é um fato aceite, de maneira a que se compreenda como as palavras se ajustam bem a ele, ainda que não se diga exatamente a que qualidades.
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"
Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância.
Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem, e é por isso que sobram sempre muitos atributos. Foram criados um dia por algum homem importante para outro homem importante, mas esses homens há muito que morreram, e os conceitos que lhes sobreviveram têm de ser utilizados. Por isso andamos sempre à procura do homem certo para um determinado adjetivo. A "portentosa plenitude" de Shakespeare, a "universalidade" de Goethe, a "profundidade psicológica" de Dostoievski e muitas outras imagens que uma longa tradição literária deixou atrás de si andam às centenas nas cabeças dos que escrevem, e essa sobrelotação de reservas leva-os a dizer hoje que um estrategista do tênis é "insondável" ou um poeta em moda "grandioso". É compreensível que se sintam gratos quando conseguem aplicar sem desperdício a sua reserva de palavras. Mas terá sempre de se tratar de um homem cuja importância já é um fato aceite, de maneira a que se compreenda como as palavras se ajustam bem a ele, ainda que não se diga exatamente a que qualidades.
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"
Bruxas de importação
Já faz alguns anos que, na véspera do Dia de Todos os Santos, a criançada das redondezas de onde moro, no subúrbio de São Paulo, logo depois de escurecer, em grupos, muito sorridente e alegre, bate à porta de casa e quando atendemos somos saudados com o que parece ser mais uma ameaça do que uma brincadeira: “Gostosuras ou diabruras?”.
A alegria infantil das atitudes contrasta com a sisudez da frase estrangeira, originária de uma cultura religiosa repressiva dos tempos puritanos da caça às bruxas nos EUA.
No começo, aqui em casa, resistimos em aderir e participar. Não víamos nenhuma relação com nossa sociedade e nossos costumes. Aquilo era estranho e postiço.
Para minha mulher e eu, não tinha sentido. Amigos nos sugeriram que havia aqui um equivalente das bruxas americanas, o saci-pererê. Na verdade o saci é outra coisa. Não é bruxa. Nem feiticeiro. É um “trickster”, um ser ambíguo. Para muitos é o nosso malandro simbólico. Situa-se no limite dos lados, desrespeita regras, encarapita-se nos mourões das porteiras. Separa e une. De certo modo, é um poder.
Um jovem indígena de uma aldeia do sul da cidade de São Paulo explicou-me que, ao contrário da impressão geral, o saci não é negro, é de origem indígena. Suas características físicas, menino de uma perna só, o sugerem. Como o curupira, que tem os pés invertidos em relação à direção do caminhar. No século XVIII, com o incremento do tráfico negreiro, tornou-se negro, com as características que tem hoje na cultura popular. Assumiu a identidade do outro.
Procuramos entender o que significava aquela novidade, de bruxas americanas a falar português e expressar concepções de um imaginário estrangeiro. No mundo inteiro, países coloniais e países atrasados como o nosso sofreram invasão cultural como técnica de sujeição cultural dos nativos.
Foi interessante e foi uma descoberta. Vinham em bandos sucessivos, e as visitas se prolongavam até antes da meia-noite. Os primeiros grupos eram de crianças pequenas, sempre acompanhadas por alguns adolescentes, claramente para protegê-las. Eram crianças, não eram malandros. Os mais velhos vinham mais tarde. E os malandros vinham na véspera.
Aprendemos a comprar balas e doces com antecipação e a preparar pacotinhos de “doçuras”. Chegamos a distribuir, todos os anos, quase cem pacotes de balas de vários tipos. Nunca falta o “muito obrigado” de todos e de cada um, sempre seguido de um “Deus os abençoe”. São crianças que vêm dos bairros pobres e da favela das proximidades. É um jeito de adoçar a vida para elas amarga.
De bruxa, nem notícia. Reinventam a prática esdrúxula, resistem ao que não tem sentido. O Halloween tornou-se aqui um artifício para saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e insatisfações, que precisa imitar o que não é para chupar uma bala.
A difusão dessas práticas não é coisa apenas de pobres. A classe média, no mundo inteiro destituída de autenticidade, aqui é fascinada pela ideia de imitar e copiar, pela ideia de ser coadjuvante de quem aparece no cinema.
Os ricos são, no Brasil, grandes importadores de costumes estrangeiros, que por meio deles se disseminam. Foi o caso do Papai Noel, nas décadas finais do século XIX, trazido pelos fazendeiros de café, do Sudeste, que após a colheita iam para a Europa desfrutar os créditos obtidos com a comercialização da safra.
Nosso Natal era apenas, e assim fora durante todo o período colonial, o marco da passagem de ano. A partir do Dia de Natal, o calendário civil mudava. O dia 24 de dezembro de 1553 foi o último do ano, e o dia 25 de dezembro do mesmo 1553 já vinha numerado nos documentos oficiais como 1554.
O dia festivo para as crianças era o dos Santos Reis, 6 de janeiro, que comemora as dádivas dos Santos Reis para o menino da manjedoura. É o dia do desmontar o presépio doméstico.
Apesar da poderosa concorrência da mentalidade mercantil difundida pelo comércio natalino, a celebração dos Santos Reis ainda resiste. Mesmo nas cidades, não só as do interior.
As Folias de Reis ressurgiram nas cidades, nos bairros de migrantes oriundos da roça. Ainda fazem a visita ritual em alguns bairros. Os migrantes são os grandes preservadores da religiosidade popular na região metropolitana de São Paulo, justamente a região que foi por longo tempo uma região industrial.
Foi aí pelos anos 1990 que numa noite de janeiro ouvimos um cântico vindo do portão de casa. Acompanhado por acordes de viola caipira, um grupo precatório de foliões dos Santos Reis entoava o “Deus Te Salve Casa Santa”. Procedia de um bairro pobre vizinho para surpresa dos moradores de minha rua. Nasceu daí meu livro “O coração da Pauliceia ainda bate”.
A alegria infantil das atitudes contrasta com a sisudez da frase estrangeira, originária de uma cultura religiosa repressiva dos tempos puritanos da caça às bruxas nos EUA.
No começo, aqui em casa, resistimos em aderir e participar. Não víamos nenhuma relação com nossa sociedade e nossos costumes. Aquilo era estranho e postiço.
Para minha mulher e eu, não tinha sentido. Amigos nos sugeriram que havia aqui um equivalente das bruxas americanas, o saci-pererê. Na verdade o saci é outra coisa. Não é bruxa. Nem feiticeiro. É um “trickster”, um ser ambíguo. Para muitos é o nosso malandro simbólico. Situa-se no limite dos lados, desrespeita regras, encarapita-se nos mourões das porteiras. Separa e une. De certo modo, é um poder.
Um jovem indígena de uma aldeia do sul da cidade de São Paulo explicou-me que, ao contrário da impressão geral, o saci não é negro, é de origem indígena. Suas características físicas, menino de uma perna só, o sugerem. Como o curupira, que tem os pés invertidos em relação à direção do caminhar. No século XVIII, com o incremento do tráfico negreiro, tornou-se negro, com as características que tem hoje na cultura popular. Assumiu a identidade do outro.
Procuramos entender o que significava aquela novidade, de bruxas americanas a falar português e expressar concepções de um imaginário estrangeiro. No mundo inteiro, países coloniais e países atrasados como o nosso sofreram invasão cultural como técnica de sujeição cultural dos nativos.
Foi interessante e foi uma descoberta. Vinham em bandos sucessivos, e as visitas se prolongavam até antes da meia-noite. Os primeiros grupos eram de crianças pequenas, sempre acompanhadas por alguns adolescentes, claramente para protegê-las. Eram crianças, não eram malandros. Os mais velhos vinham mais tarde. E os malandros vinham na véspera.
Aprendemos a comprar balas e doces com antecipação e a preparar pacotinhos de “doçuras”. Chegamos a distribuir, todos os anos, quase cem pacotes de balas de vários tipos. Nunca falta o “muito obrigado” de todos e de cada um, sempre seguido de um “Deus os abençoe”. São crianças que vêm dos bairros pobres e da favela das proximidades. É um jeito de adoçar a vida para elas amarga.
De bruxa, nem notícia. Reinventam a prática esdrúxula, resistem ao que não tem sentido. O Halloween tornou-se aqui um artifício para saciar da carência de doçura esta sociedade de insuficiências e insatisfações, que precisa imitar o que não é para chupar uma bala.
A difusão dessas práticas não é coisa apenas de pobres. A classe média, no mundo inteiro destituída de autenticidade, aqui é fascinada pela ideia de imitar e copiar, pela ideia de ser coadjuvante de quem aparece no cinema.
Os ricos são, no Brasil, grandes importadores de costumes estrangeiros, que por meio deles se disseminam. Foi o caso do Papai Noel, nas décadas finais do século XIX, trazido pelos fazendeiros de café, do Sudeste, que após a colheita iam para a Europa desfrutar os créditos obtidos com a comercialização da safra.
Nosso Natal era apenas, e assim fora durante todo o período colonial, o marco da passagem de ano. A partir do Dia de Natal, o calendário civil mudava. O dia 24 de dezembro de 1553 foi o último do ano, e o dia 25 de dezembro do mesmo 1553 já vinha numerado nos documentos oficiais como 1554.
O dia festivo para as crianças era o dos Santos Reis, 6 de janeiro, que comemora as dádivas dos Santos Reis para o menino da manjedoura. É o dia do desmontar o presépio doméstico.
Apesar da poderosa concorrência da mentalidade mercantil difundida pelo comércio natalino, a celebração dos Santos Reis ainda resiste. Mesmo nas cidades, não só as do interior.
As Folias de Reis ressurgiram nas cidades, nos bairros de migrantes oriundos da roça. Ainda fazem a visita ritual em alguns bairros. Os migrantes são os grandes preservadores da religiosidade popular na região metropolitana de São Paulo, justamente a região que foi por longo tempo uma região industrial.
Foi aí pelos anos 1990 que numa noite de janeiro ouvimos um cântico vindo do portão de casa. Acompanhado por acordes de viola caipira, um grupo precatório de foliões dos Santos Reis entoava o “Deus Te Salve Casa Santa”. Procedia de um bairro pobre vizinho para surpresa dos moradores de minha rua. Nasceu daí meu livro “O coração da Pauliceia ainda bate”.
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