quinta-feira, 23 de maio de 2024

Resumo das chuvas


Desastre climático é ponta de iceberg

Roberto Waack

Rio Grande do Sul: As lições do dia seguinte

A Terra parou em 1983. Seria apenas mais uma noite comum de outono, quando 100 milhões de norte-americanos perplexos assistiram em suas casas a “O Dia Seguinte”. Em um filme barato de televisão, o canal ABC Pictures confirmava com realismo o pior dos medos da Guerra Fria: nem mesmo os moradores de uma cidadezinha de interior sobreviveriam a um conflito nuclear.

Ainda não fizeram um filme que retrate o dia seguinte ao juízo final climático. Enquanto isso, as imagens on line do Rio Grande do Sul já bastam para mostrar o poder devastador das mudanças do clima. Centenas de mortos, milhares de refugiados, bilhões de prejuízo. Um estado inteiro destruído. O aquecimento global também não poupa metrópoles nem vilarejos.

A verdade é que vamos trocar o pneu com o carro correndo ladeira a baixo. Porém, o momento exige responsabilidade política e lucidez científica. Enquanto consertamos os estragos no Sul do Brasil, revela-se inadiável que a humanidade (e isso inclui os brasileiros) repense os fundamentos atuais da economia, da política e da sociedade, redefinindo os conceitos de lucro, desenvolvimento e sucesso.

Nesse cenário caótico é precipitado, por exemplo, engavetar aleatoriamente as licenças ambientais de projetos minerais, petrolíferos e agrícolas. Afinal, a soberania alimentar, econômica e energética, mesmo no novo normal climático, ainda dependerá desses insumos. Tampouco faz sentido qualquer surto de enrijecimento regulatório e legislativo sobre essas e outras atividades.

Ao invés de abrir a temporada de caça às bruxas de sempre, é urgente estruturar uma governança nacional e mundial, com a qualificação e a autoridade necessárias, para coordenar o desafio multilateral de projetar um modelo de vida humano viável, para que tenhamos um dia seguinte ao Rio Grande do Sul.



Ana Toni, Secretária de Mudança Climática do Ministério do Meio ambiente, acerta ao apontar a diferença entre a prevenção e a adaptação às mudanças climáticas. As providências são distintas (e quem paga a conta também).

Há um paradoxo climático a ser considerado aí: as causas globais têm impactos locais, cujo custo está além da capacidade das pessoas e governos do lugar. Que lições a tragédia local no Rio grande do Sul proporciona ao mundo emissor de gases efeito estufa? Por outro lado, que responsabilidades financeiras e políticas esses emissores globais devem assumir junto aos afetados locais?

Será que basta trocar um bilhão de carros a gasolina por um bilhão de elétricos? Nem sabemos os impactos decorrentes da produção de baterias nessa escala, para veículos que ainda serão feitos de minérios, plástico e couro.

Francamente, o tipo de pergunta que ninguém quer fazer, muito menos responder, é: para que (ou para quem) servem um bilhão de carros que trafegam geralmente com um ocupante, em cidades congestionadas e superaquecidas?

A mesma resposta serve para outras bugigangas que nosso consumismo supõe necessárias. Com que recursos naturais atenderemos a mais dois bilhões de consumidores chineses e indianos nos próximos anos? E quando chegarmos a dez bilhões de pessoas no mundo em 2050?

Sequer simulamos a viabilidade de descarbonizar a produção mundial de energia hoje baseada em termelétricas, se mantivermos o padrão de consumo atual e sua tendência futura. Energia solar, eólica, nuclear, hidrogênio, hidrelétrica, geotérmica… Tudo isso consome recursos naturais e espaço físico.

Proibicionismo a esmo, nesse estágio, não resolve. É preciso inteligência, planejamento, cooperação e vontade.

O rancor do populismo

Um menino de 9 anos, de origem nepalesa, foi espancado por cinco colegas, que gritavam “volta para a tua terra!”, enquanto um sexto filmava a cena.

O episódio, ocorrido numa escola de Lisboa, é mais um, entre vários, que testemunham o crescimento do racismo e da xenofobia em Portugal.

O surgimento do Chega — partido de extrema direita que nas eleições do passado mês de março conseguiu 50 lugares no parlamento português — vem legitimando e fortalecendo movimentos radicais, alguns deles assumidamente neonazis, que até há poucos anos não mobilizavam senão meia dúzia de sujeitos espiritualmente deformados.


André Ventura, o líder do Chega, começou por atacar a comunidade cigana, radicada em Portugal há centenas de anos, antes de se voltar contra os imigrantes. Ventura esforça-se por ligar a entrada de estrangeiros no país com o aumento da criminalidade. É um absurdo total, desde logo porque ao mesmo tempo que a imigração vem subindo, a criminalidade tem vindo a decrescer. Portugal continua sendo um dos países mais seguros do mundo, ocupando a sétima posição no Índice Global da Paz.

Antes de se reinventar como extremista de direita, Ventura era um plácido social-democrata, que tentou uma carreira como escritor de romances eróticos, e defendia a eutanásia, o aborto e a descriminalização das drogas leves. Na sua tese de doutoramento, criticou a discriminação das minorias — nomeadamente dos muçulmanos — e o endurecimento das leis criminais.

Em diversos outros incidentes, na cidade do Porto, grupos de homens, armados com bastões, tacos de basebol e armas de fogo, assaltaram apartamentos ocupados por imigrantes magrebinos e latino-americanos, ferindo vários com gravidade. Mais uma vez, Ventura atribuiu as agressões à irritação dos moradores contra os imigrantes, que estariam praticando assaltos. Não se preocupou em demonstrar a ligação entre as vítimas da violência racista e os supostos bandidos.

Os imigrantes, esses sim, sentem-se inseguros, pois o que vem aumentando são os crimes de racismo e de xenofobia. Existe uma ligação clara entre o acréscimo da criminalidade racista e a popularização das falas de ódio por parte de pessoas e de instituições que representam a própria democracia.

Discursos contra imigrantes, no abstrato, acabam sempre ferindo com pedras reais pessoas concretas.

Sempre houve racistas em Portugal. Simplesmente, por medo ou por vergonha, a esmagadora maioria não se atrevia a expressar publicamente os seus preconceitos.

O espancamento do menino nepalês comove e horroriza qualquer pessoa sensata. Os colegas que o agrediram estão, afinal, reproduzindo o exemplo dos pais.

A democracia portuguesa, como tantas outras em todo o mundo, deixou-se contaminar pelo insidioso rancor do populismo (vamos chamar-lhe assim). Contrariar o avanço do pensamento autoritário, com a sua cultura da mentira, da demagogia e do ódio, é um dos maiores desafios do nosso tempo. Aliás, todos os outros grandes combates que enfrentamos, incluindo os relacionados com a crise climática, dependem da preservação da democracia.

Apostar nos saberes ancestrais

A catástrofe climática é um fato. É vivida, desta vez, por milhões de gaúchos e gaúchas, particularmente e com maior impacto por aqueles e aquelas dos locais mais afetados e que estão em situação de maior precariedade e menor proteção. Chegou dramática. Mas a situação somente poderá gerar algum tipo de aprendizagem, para que não seja “só mais uma”, se for capaz de ser transformada efetivamente numa “experiência”, ou seja, num acontecimento do qual se aprende e que, o que dele se aprende, seja duradouro e capaz de transformar a vida!

Há muitos nomes para designar o que está acontecendo. Chamamos “catástrofe” intencionalmente para recuperar a ideia do teatro dramático antigo que significava o momento no qual os acontecimentos da representação se voltavam contra a personagem principal. Etimologicamente significa: Kata “para baixo” e strophein “virar”, virar para baixo. Tudo isso há de ajudar a “virar”, a “dar uma virada”, esperamos. É, portanto, mais do que um desastre, uma tragédia, um acidente, uma calamidade… ainda que todas estas sejam, de alguma forma, e também, sinônimo daquela.

A questão é saber, no sentido de Bruno Latour, se o fenômeno é “acontecimento”. Para que seja, precisa levar a uma escuta profunda que transforme o fenômeno, de simples objeto externo a ser descrito funcionalmente, a ser justificado existencialmente, e leve a entender seu sentido, suas razões, motivadoras de reflexões e ações capazes de modificar a própria maneira de pensar e agir, o mais amplo e profundamente possível. Trata-se de superar a simples ocorrência, para problematizar e gerar outras formas de ser, de desejar, de julgar, de agir… e produzir uma ruptura com o modo normalizado e normalizador, gerar impossíveis, mundos totalmente diferentes, outros mundos…


Transformar ocorrências em acontecimento exige que haja reflexão, não somente reação. Sim, o momento é de socorro, de salvamento, de solidariedade, exercida de forma tão intensa e forte, mas é também de fazê-lo com o desejo de que não se precise voltar a fazer, logo, de novo, uns dias depois. Há que trabalhar a reconstrução, que não pode ser um simples retorno ao mesmo, um refazer no mesmo lugar, posto que, para um bom número de situações, seria insistir em esperar novos eventos traumáticos. Há um processo de responsabilização daqueles que agiram ou que deixaram de agir para prevenir, para proteger, e não são poucas as ausências e as faltas. Há que construir condições para a reparação das vítimas da catástrofe climática e são milhares, aqui e em tantas outras emergências climáticas pelo mundo.

Enfrentar a complexidade das exigências postas pelo acontecimento requer tomar a circunstâncias a fundo, mas não ficarmos presos elas, hão de ser transpassadas, transfluidas, trans… A travessia que se exige neste momento é mais do que simplesmente encontrar alguma margem, ainda que numa enchente, uma margem física é “salvação”. Há que se fazer a travessia para buscar novas margens, margens portadoras potenciais de novas formas de relação que denunciem o intolerável, que travem e freiem a destruição do progresso infinito e abram à criação que fecunda transformações profundas, novas relações, novas existências.

Há uma compreensão a ser construída… um acontecimento não é uma simples casualidade, por mais que o componham. Há antecedentes, há consequências, há causalidades, diretas, indiretas, há agentes, há relações… uma complexidade a ser, não somente esquadrinhada, explicada, mas particularmente, compreendida, interpretada, sentida, refletida. E para tal não se pode dispensar qualquer tipo de saber, de sabedoria, de conhecimento. Todos eles estão convidados à roda dialógica. Mas não dá para acolher a desinformação massiva, a produção de informações falsas, a disseminação de ódio. Uma emergência climática é piorada com o uso das tecnologias da informação para desinformar e para desmobilizar.

É uma catástrofe que tem uma qualidade substantiva: é “climática”. Mas, dizê-la assim, pode sugerir carregar a separação entre ser “climática” e ser “humana”, reproduzindo a cisão entre natureza e cultura, tão cara ao “antropoceno”. Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2020), alerta que “[…] passamos a pensar que ele [o planeta] é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade”. Davi Kopenawa, em A queda do céu (2015), diz que “[os brancos] pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então di­zem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear as casas, os ca­minhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem!”.

A insistência em submeter, no sentido mais duro que esta palavra pode significar, a natureza à cultura, fazendo dela um “recurso” a serviço dos humanos, faz com que as águas sejam tratadas como inimigas da humanidade: deveriam ser recolhidas e enviadas para longe… sobretudo nas cidades… esta é a lógica das “drenagens”. Ao mesmo tempo, operações imensas para trazer água, de longe, do fundo, para abastecer a sede de milhões. E as águas voltam… desta vez voltaram com força! Voltaram para dizer que precisamos conviver com elas. Nos ensinam que não há humanidade sem natureza. Uma catástrofe climática é uma catástrofe humana, inclusive porque mais produto da ação humana na natureza do que o contrário… longe de que seja uma simples “vingança” da natureza. O desafio de retomar a interdependência entre o humano e o natural é a mensagem mais dura que a “enchente” deixa, além de muita lama, destruição e morte.

O quilombola Antônio Bispo dos Santos, em A terra dá, a terra quer (2023), que há pouco encantou, chama a atenção para a necessidade de entender o movimento das águas: vão e voltam. Ele lembra que “a água não reflui, ela transflui e, por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”. Simbólico e exigente entender o que ele diz quando o desejo imediato é que as águas simplesmente “refluam”, se afastem, rápido, para longe…

Bispo dos Santos propõe que, assim como as águas, o movimento humano seja de “transfluência”, porque, “transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. […] Na transfluência não há volta, porque ela é circular. Ao mesmo tempo que algo vai, fica; ao mesmo tempo que fica, vai – sem se desconectar”.

As lições que podem nos ajudar a aprender do acontecimento são aquelas que transformam e, sobretudo, que mobilizam a transformações profundas e duradouras, sustentáveis, produzindo uma virada!