sábado, 17 de agosto de 2024

Xadrez do segundo tempo do golpe da ultradireita

De repente, surge uma base de dados retirada do WhatsApp do celular de algum assessor do Ministro. A base de dados é entregue a um jornalista da Folha que, antes, trabalhava em publicação amplamente reconhecida como de direita. Entra na parceria o jornalista Glenn Greenwald, que se destacou no episódio da Vaza Jato – a base de dados de conversas dos procuradores da Lava Jato, que liquidou com a operação.

E tudo é transformado em um enorme jogo político, pelo sistema Folha-Uol-PagSeguro, tendo como principal protagonista o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas.

Não se interprete como jogo político a divulgação da base de dados. Jornalisticamente, é matéria de interesse jornalístico. Mas o tratamento dado – tentando criminalizar uma conduta de Alexandre reconhecida por quase todos os juristas como constitucional – foi a demonstração clara da conspiração em marcha


As conversas divulgadas mostram o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, compartilhando informações com a equipe do Ministro Alexandre de Moraes, do Tribunal Superior Eleitoral, a respeito de investigações de crimes eleitorais. Em cima de fatos lógicos criou-se uma narrativa bizarra criminalizando o fato de que o Ministro Alexandre de Moraes, do STF, não formalizou pedidos para que o Ministro Alexandre de Moraes, do TSE, investigasse suspeitos de crimes eleitorais.

Uma piada jurídica, no entanto, foi transformada na ponta de lança de uma ofensiva para neutralizar Moraes.

Quando se tem uma cobertura complexa, com muitas variáveis, em cima dos dados iniciais monta-se uma tese. Essa tese ajudará a dar objetividade à investigação, desde que não se transforme em bezerro sagrado – como na Lava Jato.

Vamos recorrer a esse método para analisar a campanha movida contra o Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.


O fator Sabesp

Ao entregar a Sabesp aos piranhas financeiros, o governo de São Paulo Tarcísio de Freitas abriu um mundo infinito de possibilidades para o mercado. Teve coragem de protagonizar, sem hesitar, o maior escândalo da história das privatizações, e sair incólume, incensado pela mídia.

A partir dessa falta de limites, Tarcísio colocou no campo das possibilidades, se eleito presidente, a privatização da Petrobras, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal, talvez do BNDES e a autonomia final do Banco Central.

A partir daí, não haveria limites para o enriquecimento dos grupos financeiros, à custa do desmonte final do Estado. Seria uma argentinização do Brasil, em larga escala. Abriu-se, ali, a possibilidade de retomar o pacto Faria Lima-Bolsonaro, que garantiu quatro anos de negócios obscuros. O tamanho do butim é suficientemente compensador para estimular propósitos golpistas, contra a útima cidadela da democracia, o Supremo.

O pacto Tarcísio-Bolsonaro

Semanas atrás correu o boato de que Tarcísio tentava conduzir um pacto com a família Bolsonaro, já que os filhos de Jair não aceitavam nenhuma candidatura que não fosse a dele. O caminho seria uma negociação com Alexandre de Moraes.

Nos últimos meses, houve várias referências à aproximação Tarcísio com Alexandre. Leia aqui, Aqui também.

Os rumores davam conta de que haveria uma tentativa de negociação. De um lado, Alexandre de Moraes asseguraria que Bolsonaro não seria preso, mas continuaria inelegível. Em troca, os Bolsonaro passariam a apoiar Tarcísio.

Aparentemente, as negociações pararam em algum momento. Ontem mesmo, Tarcísio tirou a máscara de conciliador e abriu baterias contra Alexandre de Moraes, reforçando a hipótese de conspiração armada com a mídia e com o mercado.

Ao mesmo tempo, o ex-Ministro do STF, Nelson Jobim, membro do Conselho de Administração do BTG, foi acionado para aumentar o tiroteio sobre Alexandre de Moraes. Com sua intervenção, aumentou as suspeitas sobre a participação de André Esteves no jogo.

Jobim foi peça central na demissão de Paulo Lacerda da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), no segundo governo Lula, jogada que permitiu a perda de controle sobre a Polícia Federal. Na época, apresentou à CPI um documento falso, de que a ABIN possuía equipamentos de grampear. Mostramos, aqui no GGN, que o documento era uma página copiada de um site que produzia equipamentos. Mas o episódio demonstrava que o político jamais abandonou o jurista.

A base de dados divulgada

Co-autor da denúncia, o jornalista Glenn Greenwald tornou-se um personagem polêmico.

Sobre ele falarei outro dia. Ao contrário da mídia brasileira, e suas jogadas óbvias, Glenn é suficientemente complexo para não ser enquadrado em definições simplistas de esquerda ou direita. O que a reportagem fez foi se valer de sua implicância atual com os liberais progressistas, para utilizar a grife em uma jogada com propósitos políticos.

No dia 9 de abril passado, Glenn já havia feito uma defesa de Musk contra Alexandre de Moraes. E, nos últimos tempos, tornou Alexandre de Moraes seu alvo predileto. Com o endosso à jogada, porém, Glenn transpôs o Rubicão. A narrativa colheu elogios de Elon Musk, o ponta de lança da ultradireita mundial e completou o atual movimento de desestabilização do regime.

Mas a base de dados surgiu de outros canais.

Há semanas, a área de inteligência da Polícia Federal já tinha identificado uma movimentação anormal de bolsonaristas nas redes sociais, indicando uma expectativa incomum em relação a algum fato novo.

Na Polícia Federal a hipótese mais provável para o vazamento dos dados foi a prisão de Eduardo Tagliaferro pela polícia paulista, depois de problemas de violência doméstica. Segundo a reportagem da Folha, as mensagens abrangem o período de agosto de 2022, já durante a campanha eleitoral, a maio de 2023. A prisão de Tagliaferro foi justamente em 9 de maio de 2023.

Seu celular foi apreendido. E a deputada Carla Zambelli foi a primeira a divulgar a prisão. Ficou claro para a PF que a fonte de dados foi a Polícia Civil de Tarcísio.

A nova aliança mercado x milícias

Volta-se, agora, a uma nova rodada de tentativa de golpe, similar à conspiração do impeachment.

A democracia, hoje, depende de dois personagens: Lula e Alexandre de Moraes. O eixos paulista dos grupos de mídia se empenham diariamente em uma guerra de desgaste contra Lula. Agora, investem contra Alexandre de Moraes. Seu enfraquecimento significaria deixar a porteira aberta para a invasão das tropas bolsonaristas, agora, comandadas por Tarcísio de Freitas.

E há ainda, o fator externo. Todo esse movimento mostra uma articulação internacional da ultradireita. Ontem mesmo, Musk abriu seus canais para uma ampla entrevista com Donald Trump. Nosso analista, Pedro Costa Jr, no programa TV GGN 20 horas de ontem, chamou a atenção para a nova etapa da ultradireita. A “denúncia” contra Moraes circulou nos grandes perfis mundiais da ultradireita.

Conforme alertou Steve Bannon, o guru da ultradireita, o candidato a vice-presidente de Donald Trump fará o titular parecer um moderado, tal seu nível de radicalismo. No Brasil, começam a surgir novas lideranças, ainda mais atrevidas e violentas que Bolsonaro, visando derrubar o líder que demonstrou fraqueza – movimento previsto por Freud, em seu livro sobre a psicologia de massas, da década de 20..

Como lembrou Pedro Costa Júnior, nosso analista, o Brasil passa a depender diretamente do resultado das eleições dos Estados Unidos. Uma vitória de Trump selará o destino da democracia brasileira. Por isso mesmo, o movimento contra Alexandre de Moraes é apenas o primeiro lance dessa conspirata. E os mesmos grupos de mídia, que atuaram decisivamente para a ascensão de Bolsonaro, repetem o mesmo movimento.

As outras violências

Neste encontro iremos falar da Não-Violência no contexto do progresso social. Eu acho extremamente interessante que se abordem estes temas em Moçambique, sobretudo se o fizermos de maneira inovadora e com abertura para encontrar soluções. Existe nos nossos países — eu falo do nosso continente — uma tendência para substituir o pensamento crítico pela facilidade de apontar culpas e crucificar culpados. O mundo surge como uma coisa simplificada em que os culpados são os outros e as vítimas somos sempre nós. Esta facilidade é muito tentadora, mas é uma mentira.

A atitude de nos fabricarmos a nós mesmos como simples vítimas é uma das principais razões para os problemas de África e dos africanos. Todo o nosso discurso continua centrado na culpabilização do passado colonial e da dominação estrangeira. A culpa é sempre o Outro. Esse outro pode ser uma outra raça, uma outra etnia, uma outra religião. Nós estamos sempre isentos de procurar dentro de nós as causas profundas dos nossos problemas.


Li há poucos dias que o governo do Zimbábue, cansado de acusar o Ocidente pelo caos que vive, passou a acusar os países vizinhos, incluindo Moçambique. Nós, Moçambique e os restantes vizinhos da África Austral, fomos acusados de aliciar os professores Zimbábuenses a saírem do Zimbábue. Existe, de facto, uma fuga dramática de professores daquele país e, apenas no ano passado, 25 mil professores qualificados fugiram do país. A verdade é que não são apenas professores que procuram o exílio. Há uma debandada geral do Zimbábue. Numa nação de 12 milhões de habitantes, 3 milhões já saíram para escapar do desespero causado por políticos irresponsáveis. A crise interna é tão grave que o Zimbábue passou de nação próspera para um país em ruínas com mais de 80% de desemprego e o recorde mundial da inflação. No entanto, para o governo zimbabuense a razão do exílio dos professores não está dentro do país, está no complô externo.

Este parece um caso caricato, mas todos nós praticamos, mesmo que seja inconscientemente, este procedimento de invenção de culpados e absolvição de responsabilidades.

Falaremos neste encontro de Não-Violência que é um modo de dizer que falaremos da violência. Ora eu considero que é urgente e imperioso discutir a violência em Moçambique, sobretudo por duas razões:

— A primeira razão por que a violência maior actua de modo silencioso, e das poucas vezes que falamos dela falamos apenas da ponta do icebergue. Nós acreditamos que estamos perante fenômenos de violência apenas quando essa tensão assume proporções visíveis, quando ela surge como espetáculo mediático. Mas esquecemos que existem formas de violência oculta que são gravíssimas. 

Esquecemos, por exemplo, que todos os dias, no nosso país, são sexualmente violentadas crianças. E que, na maior parte das vezes, os agressores não são estranhos. Quem viola essas crianças são principalmente parentes. Quem pratica esse crime é gente da própria casa.

Nós temos níveis altíssimos de violência doméstica, e, em particular, de violência contra a mulher. Mas esse assunto parece ser preocupação de poucos. Fala-se disso em algumas ONG s, em alguns seminários. A Lei contra a violência doméstica ainda não foi aprovada na Assembleia da República.

Existem várias outras formas invisíveis de violência. Existe violência quando os camponeses são expulsos sumariamente das suas terras por gente poderosa e não possuem meios para defender os seus direitos. Existe uma violência contida quando, perante o agente corrupto da autoridade, não nos surge outra saída senão o suborno. Existe, enfim, a violência terrível que é o vivermos com medo. E existe essa outra violência maior que é considerarmos a violência como um facto normal. Existe, em suma, essa terrível aprendizagem de negarmos em nós mesmos tudo que nos ensinaram como valor humano: o ser solidário com os outros, os que sofrem.

Recordo-me de que certa noite circulava por uma estrada da costa de Inhambane. Estava sozinho na viatura e não se via vivalma nas redondezas. De súbito, deparo com um corpo atravessado na estrada. Todas as normas de segurança sugeriam que eu não parasse. Podia realmente ser uma emboscada. Mas podia simplesmente ser um homem ferido que carecia de ajuda. Algo me impelia a abrir a porta e a aproximar-me do indivíduo que não parecia dar acordo de si. Uma voz dentro de mim segredava-me: passa ao lado e segue o teu caminho. Esse momento de indecisão dentro de mim foi das mais graves violências praticadas por mim contra mim próprio. “O que o medo fez de nós”, pensei enquanto ajudava o pobre homem que estava simplesmente embriagado.

O que eu quero dizer é que persistem, na nossa casa colectiva, formas silenciosas e ocultas de violência que não podem ser esquecidas num debate como este. Esquecer os deveres básicos de solidariedade é uma violência, uma cobardia escondida em nome do bom-senso.

— A segunda razão por que é importante falar de violência em Moçambique resulta do facto de persistir o mito de que nós, moçambicanos, somos um povo não violento, um povo ordeiro. Esta mistificação é tão enraizada que muitos acreditam profunda e genuinamente nela. Pode ter havido dezesseis anos de guerra civil, de uma guerra cruel, violentíssima, pode ter havido tudo isso muito recentemente, mas mesmo assim ninguém retira do discurso que construímos sobre nós mesmos que os moçambicanos são um povo não violento.

Podem ocorrer linchamentos e o povo queimar e apedrejar até à morte indiciados de crimes, mas isso não afeta nada. Nós somos e seremos para sempre um “povo pacífico”. Esquecemos que todos os povos do mundo são pacíficos, à partida. Os povos não são um produto genético, imutável. São produto da História. E a História pode facilmente converter os desejos de Paz em violência pessoal e social. Os moçambicanos não são especialmente ordeiros. Também não são especialmente desordeiros. São como todos os povos do Mundo: respondem com violência quando se sentem violentados.

Porque temos ideias preconceituosas sobre nós mesmos, ficamos surpreendidos e não sabemos como reagir perante as repentinas irrupções de violência. E ficamos satisfeitos, uma vez mais, em encontrar culpados. Para alguns, a emergência desses fenômenos violentos resulta apenas da mão escondida de conspiradores.

Aqui está, uma outra vez, a teoria dos culpados. Essa teoria do complô pode, muitas vezes, ser verdadeira. Mas nem sempre os culpados são os outros.
Na realidade, um outro tópico que estamos debatendo neste encontro é chamado “progresso social”. Esse assunto dava para muita discussão. Não temos tempo aqui. Mas gostaria de abordar o progresso social na perspectiva do tema central da violência. O que eu quero dizer é que, muitas vezes, o chamado progresso pode ser uma violência. Pode agir como uma agressão silenciosa contra sociedades inteiras e, sobretudo, contra os mais pobres dessas sociedades.
O escritor Bertolt Brecht dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz violento, mas ninguém diz que são violentas as margens que comprimem esse mesmo rio”. Nós falamos da reação violenta de cidadãos pobres contra um sistema que produz pobreza. É isto que deve ficar claro.

Linchamentos são uma resposta violenta contra uma violência maior que é o crime como sistema de vida e a incapacidade de resposta do Estado perante a crescente criminalidade. O linchamento popular é o rio que transborda. A criminalidade de todos os dias são as margens que comprimem esse rio.

As manifestações contra os aumentos nos “chapas” em Maputo traduzem um desespero: não é apenas um transporte urbano que falta aos jovens. Aos nossos jovens falta um outro tipo de transporte que os leve para o futuro, que os conduza para um sonho, que garanta uma ligação com uma vida de promessas cumpridas.
O verdadeiro desespero é ficar no apeadeiro da sua atual condição. O desespero é saber que esse destino a que chamamos de futuro é comandado por entidades que deixaram de olhar para nós como seres humanos. E que um fosso progressivamente maior separa os que andam nos chapas dos que circulam em luxuosas viaturas.

Achamos inaceitável que alguém destrua os bens sociais como quem rasga as páginas de um livro. Mas talvez isso suceda porque esse livro não pode nunca ser nosso. Estamos rasgando as páginas dessa mesma Vida que nos nega a nós como seres que anseiam ser felizes. A violência de rua que vivemos em Maputo e em Chimoio não é má apenas porque é violenta. Ela é negativa porque não produz respostas de organização e de construção de alternativas sociais. Mas ela é sobretudo um sinal revelador de doença. E nós temos de curar a doença e não apenas os sintomas.

Não se trata de uma responsabilidade do governo. Existirão, certamente, questões de governação que é preciso escalpelizar. Não se pode governar um país como se a política fosse um quintal e a economia fosse um bazar. Ao avaliar um regime de governação precisamos, no entanto, de ir mais fundo e saber se as questões não provêm do regime mas do sistema e a cultura que esse sistema vai gerando.

Pode-se mudar o governo e tudo continuará igual se mantivermos intacto o sistema de fazer economia, o sistema que administra os recursos da nossa sociedade. Nós temos hoje gente com dinheiro. Isso em si mesmo não é mau. Mas esses endinheirados não são ricos. Ser rico é outra coisa. Ser rico é produzir emprego. Ser rico é produzir riqueza. Os nossos novos-ricos são quase sempre predadores, vivem da venda e revenda de recursos nacionais.

Afinal, culpar o governo ou o sistema e ficar apenas por aí é fácil. Alguém dizia que “governar é tão fácil que todos o sabem fazer até ao dia em que são governo”. A verdade é que muitos dos problemas que nós vivemos resultam da falta de resposta nossa como cidadãos ativos. Resulta de apenas reagirmos no limite quando não há outra resposta senão a violência cega. Grande parte dos problemas resulta de ficarmos calados quando podemos pensar e falar.

Martin Luther King dizia: “Mais grave que o ruído causado pelos homens maus é o silêncio cúmplice dos homens bons que aceitam a resignação do silêncio”. A vocês que recusam esse silêncio, quero agradecer por esta iniciativa.

Mia Couto, "E se Obama fosse africano?"

Projeto que facilita acesso a armas é estelionato parlamentar

Não é novidade que o governo de Jair Bolsonaro foi de imenso retrocesso — também e sobretudo — na fiscalização e no acesso da população civil às armas de fogo. Em 2022, dois dias antes do segundo turno das eleições, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em carta aos brasileiros, prometeu “revogar decretos e portarias que permitiram o acesso irrestrito às armas, especialmente aqueles que estão armando o crime organizado”. O revogaço começou tão logo o presidente foi empossado. Na estreia do terceiro mandato, Lula assinou decreto alterando regras de aquisição e registro de armas; em meados de 2023, outro conjunto de medidas foi apresentado pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino, hoje no Supremo Tribunal Federal. Como resultado, a Polícia Federal (PF) reportou queda de 82% em novos cadastros de armas para defesa pessoal. Saíram de 114.044 em 2022 para 20.822 no ano passado, menor número desde 2004.

São essas iniciativas que estão sob ameaça no Congresso Nacional, por pressão — e interesse — da bancada da bala. Anteontem, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou Projeto de Decreto Legislativo que anula partes das medidas assinadas por Lula no Decreto 11.615/2023, fruto de debate com PF, Exército, Ministério Público, organizações de segurança pública, parlamentares e CACs (abreviação para caçadores, atiradores desportivos e colecionadores). O texto que vai ao plenário impõe retrocessos que nem o ex-presidente armamentista aplicou. O atual governo, minoritário no Parlamento, peca em não alertar com estardalhaço a sociedade sobre o rolo compressor que atropela uma promessa de campanha consagrada nas urnas. É um estelionato parlamentar.


Para começar, o Legislativo age para revogar a exigência de distância mínima de 1 quilômetro entre clubes de tiro e escolas. O relator do PDL 206/2024, senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), candidato a prefeito de Goiânia, alegou que a proibição determinada pelo governo federal invadia competência municipal. Às prefeituras, disse, cabe regulamentar a localização dos estabelecimentos. Haveria, além disso, insegurança jurídica para unidades em operação, já que o decreto presidencial previa mudança de endereço num prazo de 18 meses.

A CCJ não cogitou sequer autorizar permanência de unidades existentes e restrição a novas. E desprezou o risco que representa a circulação de gente armada e acúmulo de pólvora em ambiente próximo de estudantes. Sem falar na perturbação das atividades escolares pelo som dos disparos. A preocupação é concreta. Dois anos atrás, a Prefeitura de Santo Augusto (RS) proibiu a instalação de clubes num raio de 3 quilômetros de escolas. Alunos se queixavam do barulho persistente de um clube que operava a céu aberto a apenas 230 metros de distância de uma instituição de ensino.

No tratoraço da CCJ, senadores votaram por derrubar a diferenciação de níveis entre atiradores, medida que existia antes do libera geral de Bolsonaro. A classificação estabelecia a quantidade de armas e munições que atiradores poderiam ter, com base no número de treinamentos (oito, 12 ou 20 a cada 12 meses) e competições (quatro, seis ou oito) de que participassem. Por água abaixo também foram os critérios de definição de armas colecionáveis, também existentes pré-Bolsonaro. O decreto de Lula listava características históricas e fixava em, pelo menos, 40 anos o tempo de fabricação. Mas a votação da CCJ suprimiu até os trechos que proibiam aquisição por colecionadores de armas de uso restrito das Forças Armadas e de disparo automático. Armas automáticas, para deixar claro, são aquelas que dão tiros em rajada.

Despencou do decreto presidencial a necessidade de registro na compra de armas de gás comprimido. Até Bolsonaro, armamento de pressão com calibre superior a 6mm era considerado de uso restrito, porque também pode disparar projéteis de metal, de maior potencial destrutivo. Por fim, os senadores não somente concordaram em manter com os proprietários as armas de uso restrito adquiridas na vigência da flexibilização do governo anterior, que Lula não revogou, mas também propõem retirar do decreto a proibição de uso diferente do declarado na origem. A medida abre espaço para desvios de finalidade.

O PDL iria a plenário ontem. Foi retirado da pauta a pedido do líder do governo, senador Jaques Wagner (PT-BA). O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), concordou com o adiamento, mas a votação está prevista para a próxima semana. Sem alteração, o regramento imporá, de novo, imenso retrocesso num tema que não trouxe bem algum à sociedade brasileira. Bolsonaro promoveu um derrame de armas em mãos civis. O descontrole é letal.

A política no Brasil foi transformada em misticismo

Para o pesquisador de minha área científica, a sociologia, interessam as revelações teóricas das anomalias sociais, aquilo que contraria o sabido e o esperado. O que escapa das previsões científicas.

A campanha e sobretudo o mandato de Jair Messias foram riquíssimos em revelações sociologicamente desconstrutivas do que é a sociedade brasileira hoje, aquilo que nega o cientificamente previsível. A de um país de persistências e atrasos que contrariam tudo que julgamos ser. Em nosso caso, a anômala combinação de religião e política desdiz o que nos dizem que a política é.

O tema principal e mais revelador deste caso é o da função mediadora de uma religiosidade milenarista e sebastianista, exaltada, que muda de forma e de nome, mas persiste e se renova. As multidões que foram se formando de dentro dos palácios presidenciais são multidões lebonianas, de gente fora de si.

Ouvindo e vendo os muitos vídeos, gravações e o material noticioso dessa conjuntura, o crescimento de emoções místicas, no período pré-eleitoral da eleição de 2022, foi um indício significativo de que o processo político caminhava fora do leito natural da política.

Como o definiu o general Golbery do Couto e Silva durante a ditadura militar, quando estranhou que a repressão política do regime autoritário estivesse deslocando a política para o leito da religião. O general receava que a inquietação política de algumas igrejas, tanto a católica quanto as protestantes, colocassem a religião no lugar da política.


Na atualidade, perde-se um componente básico do processo político, que é a da necessidade democrática da negociação entre os partidos para chegar ao ponto de consenso e definir a opção e a vontade política da maioria da população.

A política não é nem pode ser a mera expressão do afã de poder de minorias. Mas não pode deixar de ser meio de expressão também das concepções dessas minorias. A função da política é viabilizar a negociação e a convergência das concepções dos divergentes.

Já no regime militar, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tinha posição definida contra a criação de um partido católico. Lembro-me bem de uma advertência de Dom Ivo Lorscheiter a um grupo de agentes de pastoral leigos, numa reunião em Itaici: “Nada de partido católico”.

O que Golbery, no entanto, não previu foi o afã de poder dos evangélicos. Desde a Proclamação da República e a separação entre o Estado e a religião, os protestantes tinham consciência da importância dessa medida para assegurar a liberdade religiosa e o direito à diferença nela implícito.

Foi disso evidência o chamado caso do “Cristo no júri”. Em 1891, com base na lei, um pastor, Miguel Vieira Ferreira, foi convocado para servir como jurado num julgamento. Concordou, mas solicitou que da sala fosse retirado um crucifixo. No Brasil inteiro ocorreram procissões e manifestações contra o pedido. O crucifixo permaneceu até mesmo no recinto das sessões do STF.

O tumulto religioso-político dos anos recentes mostraram que evangélicos e protestantes, no Brasil, assumiram abertamente a protestantização do Estado e da política. Mais que isso. Um delírio místico marcou as manifestações políticas contra a eleição de Lula. Muitos choravam de joelhos a pedir a Deus que não permitisse o que consideravam uma vitória de Satanás. Acampados gritavam para dentro dos quartéis que o Exército havia traído o povo brasileiro por não ter dado o golpe de Estado que impedisse o que era o curso normal da política.

Nos interrogatórios dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro, muitos deles mencionaram sua igreja como fonte da mobilização e da organização da ida a Brasília. Fotos e filmes mostraram nos recintos invadidos inúmeras pessoas orando. No recinto do Congresso, mulheres caminhavam de um lado para outro em conversa aos gritos com Deus, como ocorre em cultos pentecostais, cada uma dizendo uma coisa diferente, recriminando, implorando, ordenando que a situação fosse modificada.

Já antes da eleição, dentro dos palácios do Planalto e da Alvorada cultos para exorcizar e expulsar Satanás, que, dizia a primeira-dama, se apossara dos recintos institucionais e do poder, foram promovidos e realizados. Bolsonaro foi proclamado o escolhido para, em nome de Deus, ocupar a cadeira presidencial.

A política foi transformada em misticismo. Nele, reina o oculto. O visível é satânico. Tudo ocorre no avesso da razão e, portanto, da política. O golpe de Estado não se manifestou nas visibilidades da Praça dos Três Poderes e dos recintos do STF, da Câmara e do Senado. A insurreição golpista começada nos recintos dos palácios presidenciais pela pregadora insurgente continua. Rasputin dirige.