A campanha e sobretudo o mandato de Jair Messias foram riquíssimos em revelações sociologicamente desconstrutivas do que é a sociedade brasileira hoje, aquilo que nega o cientificamente previsível. A de um país de persistências e atrasos que contrariam tudo que julgamos ser. Em nosso caso, a anômala combinação de religião e política desdiz o que nos dizem que a política é.
O tema principal e mais revelador deste caso é o da função mediadora de uma religiosidade milenarista e sebastianista, exaltada, que muda de forma e de nome, mas persiste e se renova. As multidões que foram se formando de dentro dos palácios presidenciais são multidões lebonianas, de gente fora de si.
Ouvindo e vendo os muitos vídeos, gravações e o material noticioso dessa conjuntura, o crescimento de emoções místicas, no período pré-eleitoral da eleição de 2022, foi um indício significativo de que o processo político caminhava fora do leito natural da política.
Como o definiu o general Golbery do Couto e Silva durante a ditadura militar, quando estranhou que a repressão política do regime autoritário estivesse deslocando a política para o leito da religião. O general receava que a inquietação política de algumas igrejas, tanto a católica quanto as protestantes, colocassem a religião no lugar da política.
Na atualidade, perde-se um componente básico do processo político, que é a da necessidade democrática da negociação entre os partidos para chegar ao ponto de consenso e definir a opção e a vontade política da maioria da população.
A política não é nem pode ser a mera expressão do afã de poder de minorias. Mas não pode deixar de ser meio de expressão também das concepções dessas minorias. A função da política é viabilizar a negociação e a convergência das concepções dos divergentes.
Já no regime militar, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tinha posição definida contra a criação de um partido católico. Lembro-me bem de uma advertência de Dom Ivo Lorscheiter a um grupo de agentes de pastoral leigos, numa reunião em Itaici: “Nada de partido católico”.
O que Golbery, no entanto, não previu foi o afã de poder dos evangélicos. Desde a Proclamação da República e a separação entre o Estado e a religião, os protestantes tinham consciência da importância dessa medida para assegurar a liberdade religiosa e o direito à diferença nela implícito.
Foi disso evidência o chamado caso do “Cristo no júri”. Em 1891, com base na lei, um pastor, Miguel Vieira Ferreira, foi convocado para servir como jurado num julgamento. Concordou, mas solicitou que da sala fosse retirado um crucifixo. No Brasil inteiro ocorreram procissões e manifestações contra o pedido. O crucifixo permaneceu até mesmo no recinto das sessões do STF.
O tumulto religioso-político dos anos recentes mostraram que evangélicos e protestantes, no Brasil, assumiram abertamente a protestantização do Estado e da política. Mais que isso. Um delírio místico marcou as manifestações políticas contra a eleição de Lula. Muitos choravam de joelhos a pedir a Deus que não permitisse o que consideravam uma vitória de Satanás. Acampados gritavam para dentro dos quartéis que o Exército havia traído o povo brasileiro por não ter dado o golpe de Estado que impedisse o que era o curso normal da política.
Nos interrogatórios dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro, muitos deles mencionaram sua igreja como fonte da mobilização e da organização da ida a Brasília. Fotos e filmes mostraram nos recintos invadidos inúmeras pessoas orando. No recinto do Congresso, mulheres caminhavam de um lado para outro em conversa aos gritos com Deus, como ocorre em cultos pentecostais, cada uma dizendo uma coisa diferente, recriminando, implorando, ordenando que a situação fosse modificada.
Já antes da eleição, dentro dos palácios do Planalto e da Alvorada cultos para exorcizar e expulsar Satanás, que, dizia a primeira-dama, se apossara dos recintos institucionais e do poder, foram promovidos e realizados. Bolsonaro foi proclamado o escolhido para, em nome de Deus, ocupar a cadeira presidencial.
A política foi transformada em misticismo. Nele, reina o oculto. O visível é satânico. Tudo ocorre no avesso da razão e, portanto, da política. O golpe de Estado não se manifestou nas visibilidades da Praça dos Três Poderes e dos recintos do STF, da Câmara e do Senado. A insurreição golpista começada nos recintos dos palácios presidenciais pela pregadora insurgente continua. Rasputin dirige.
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