sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Capachos em lugar de especialistas


Mandamos embora os especialistas que estavam no ministério. Lá no ministério agora tem um bando de militares que nem de guerra entende. Então isto é fruto dessa ignorância
Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista, fundador da Anvisa e diretor da agência de 1999 a 2003

Brasil perderá os próximos dois anos com Bolsonaro

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.



A situação econômica ainda pode ter uma chance de melhorar, especialmente no ano que vem. Menos pelo que o país tem feito e mais pelas políticas expansionistas que os Estados Unidos e a China deverão adotar. Eis aí uma notícia auspiciosa. Não obstante, o Brasil poderá aproveitar bem menos essa bonança, porque não há grandes perspectivas de melhora, até 2022, da produtividade, da taxa de investimento e do consumo da população.

Não me parece que o governo será capaz de fazer uma mudança fiscal mais ampla do que o atual feijão com arroz que o teto de gastos gera. O ministro Paulo Guedes tem enviado uma série de propostas ao Congresso, mas poucas são aprovadas. Geralmente, a última metade do mandato não é o melhor momento para dar uma arrancada em reformas estruturais, especialmente porque Bolsonaro tem mais apetite por outros tipos de mudança legislativa, como a ampliação do uso de armas pela população e o Estatuto da Família. Esta é a agenda para a qual usará sua influência política, com muitos cargos e verbas ao Centrão.

Para completar esse panorama econômico, o desemprego tende a continuar alto, talvez com algum alento no mercado informal, que gera menos renda. Parte dos ganhos do país virá da exportação de commodities, como tem ocorrido há 20 anos. Mas, diferentemente de outros momentos do passado, como no Plano Real e no governo Lula, definitivamente não somos a bola da vez para os investidores internacionais. Alguma coisa pode vir das concessões em infraestrutura. Só que a imagem internacional do Brasil sob Bolsonaro atrapalha esse movimento. Os erros em políticas ambientais e de direitos humanos, bem como o isolacionismo diplomático, vão custar caro.

A crise social tende a aumentar nos próximos dois anos. O auxílio emergencial foi uma tábua de salvação inventada pelo Congresso que caiu no colo de Bolsonaro. Terminado o Orçamento de Guerra, caberia ao governo federal pensar em uma estratégia mais ampla de combate à desigualdade social. Pelo tipo de pensamento mágico que orienta a cabeça do presidente, não há perspectiva de se ter um plano estruturado para as políticas sociais. O aumento da desigualdade nos principais centros urbanos vai criar um cenário distópico, típico de filmes como “Mad Max”.

Políticas públicas essenciais para o país também estão à deriva. O MEC vive seu pior momento em 30 anos e a abstenção recorde no Enem revela uma política educacional trágica, que vai aumentar a desigualdade entre os alunos. O Ministério do Meio Ambiente é contrário à política ambiental. Com o atual titular, não há chances de melhora, até porque o bolsonarismo prometeu a madeireiros e garimpeiros que eles teriam tudo aquilo que os “ecologistas” tiraram deles nas últimas décadas. Sobre a política indigenista é melhor não comentar. Marechal Rondon deve estar se remexendo no túmulo.

No plano político, duas trajetórias suicidas foram traçadas. No âmbito externo, a política internacional levou o Brasil a um isolacionismo inédito, particularmente depois da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Quem são nossos aliados? De um modo ou de outro, China, União Europeia, os vizinhos latino-americanos e agora os EUA, no mínimo, desconfiam do governo brasileiro e, na pior das hipóteses, mantida a lógica bolsonarista, vão certamente nos retaliar.

Desde o fim da ditadura militar, nunca um presidente ameaçou tanto a democracia como Bolsonaro. Num dia, propõe o voto impresso para tumultuar o jogo político e acusar os outros de fraude, já preparando um possível golpe caso perca a eleição. Noutro, diz que as Forças Armadas são o alicerce do regime democrático, quando qualquer manual de ciência política diria que o povo e as instituições é que dão legitimidade à ação dos militares, e não o contrário. O bolsonarismo não acredita nos valores básicos democráticos, como o pluralismo, a crença nas regras do jogo e os freios e contrapesos entre os poderes. Em seu comportamento mais benigno, Bolsonaro aceita o apoio de políticos medíocres que se deixam comprar por cargos e verbas, contanto que eles não interrompam sua estratégia autoritária mais profunda.

A rota do bolsonarismo pode ser interrompida, com o presidente mudando seu estilo de governar, diriam alguns. Os mesmos que acreditaram que Paulo Guedes faria privatizações em massa e reformas profundas no Estado; que Sergio Moro seria o guardião do republicanismo de todos, inclusive da família Bolsonaro; que o general Santos Cruz garantiria uma participação parcimoniosa das Forças Armadas no poder, que nunca aceitariam obedecer ordens absurdas como receitar cloroquina em massa para uma população que nem oxigênio tinha; e, como última esperança dos ingênuos, que o Centrão evitaria que o presidente trilhasse por caminhos autoritários. Sinto informar: a era da esperança pela mudança da natureza do bolsonarismo acabou.

O núcleo duro das crenças de Bolsonaro o leva a preferir a guerra cultural, uma política populista e autoritária, como também ser mais fiel ao seu eleitorado mais radical. Na linha contrária, ele não vai optar claramente por políticas públicas baseadas em evidências e na opinião dos especialistas, nem por um estilo político baseado no diálogo e na moderação. Crises políticas maiores podem resultar em concessões e alguns recuos, como aconteceu em junho do ano passado, após a prisão de Fabrício Queiroz. Mas quanto mais as eleições presidenciais se aproximam, mais o presidente acredita que precisa manter a aliança com seus alicerces básicos, em termos de ideias, grupos políticos e modos de atuação.

Em outras palavras, o roteiro básico daqui para frente tende a ser de poucas reformas profundas - se houver alguma -, conflito constante com os possíveis adversários políticos, inclusive fortalecendo o gabinete do ódio, discursos e propostas moralistas para agradar ao eleitorado conservador e, sobretudo, ameaçar a todos que o criticarem. É possível que haja algum populismo fiscal para distribuir alguma renda aos mais pobres e obras para o clientelismo do Centrão, mas o essencial para Bolsonaro é montar um exército de apoiadores entre trabalhadores informais, policiais militares, evangélicos e milicianos puros, sempre dizendo que as Forças Armadas estarão com ele em qualquer situação.

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos. O momento é similar ao do governo Figueiredo, quando o projeto dos militares já tinha fracassado, porém as forças em prol da democracia não tinham força suficiente para mudar a lógica do poder. Foi nesse momento, em 1981, que Ignácio de Loyola Brandão escreveu o livro “Não Verás País Nenhum”, uma ficção distópica que caracterizava o Brasil como um país marcado pelo autoritarismo, pela tragédia ambiental e pauperização da população, tudo isso ambientado numa São Paulo caótica. Nada mais atual do que essa história.

O Brasil sofreu muito, inclusive com atentados terroristas de milicianos incrustados no Estado autoritário, mas superou aquele momento autoritário. Para isso, precisou da aliança de muita gente diferente, como mostram as fotos dos comícios das Diretas-Já, com Montoro, Lula, FHC, Brizola e Ulysses abraçados e unindo-se pela mudança. O país provavelmente terá de fazer isso daqui a dois anos, embora possa fazê-lo agora em nome de um impeachment que tem razões de sobra para ocorrer, em especial a garantia da sobrevivência do país.

Pensamento do Dia

 


A hora H

Junte-se o mal-estar do presidente da República na presença da vacina contra o vírus com a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a inépcia do poder público para atender à necessidade da população, adicione-se um robusto passivo de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de responsabilidade e teremos a receita de um governo em apuros.

Se o dia D ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino. A situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos.

Sendo ele o engenheiro da obra, é também o responsável por decidir se investe na desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste na destruição de suas condições obje­ti­vas e subjetivas para governar. O presidente teve inúmeras oportunidades de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de maneira inútil e, sobretudo, imprudente.

Uma ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma atuação positiva em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o interessa, a boa vontade do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de 600 reais quando o Congresso contrapôs 500 reais à sugestão original de 200 reais.

Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar, puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado teria sido adverso se Bolsonaro tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e decidido confrontar deputados e senadores.



Ali teve o tirocínio que lhe faltou nos atributos necessários para enfrentar a crise sanitária, diante da qual fez todas as escolhas erradas, a começar por falar a um nicho em detrimento da atenção devida à maioria. O desdém à dimensão da pandemia e a guerra contra a vacinação o levaram à derrota política e à demonstração inequívoca de incapacidade governamental. A conta chega na hora de os brasileiros terem as vidas salvas e, no entanto, veem o chefe da nação preso às consequências dos equívocos em série, incapaz de responder à emergência e, por causa disso, com seus seguidores aturdidos e sem discurso.

“Bolsonaro agora decide se desconstrói a arapuca que construiu ou se destrói o restante de seu alicerce”

Se lá atrás, quando foi obrigado a moderar o comportamento devido a reações da Justiça a atos antidemocráticos e por ofensiva contra ilegalidades cometidas por família e amigos, o presidente agora ainda não viu nada a respeito do esforço a ser empreendido para sair das cordas.

Ataques ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal, preocupações com investigações que alcançam Carlos, Eduardo, Flávio ou Queiroz, bem como grosserias verbais, são fichinha em termos do poder de provocar a reação robusta de um país. Enquanto os problemas são vistos como pontuais e até questionáveis, a depender do ponto de vista de cada um, o conjunto da sociedade tende a não se incomodar tanto.

Quando é a saúde de todos que se vê diante de uma ameaça concreta que o governante poderia tornar menos grave, a coisa muda de figura. É possível que ele encontre, mas é difícil enxergar algum espaço para Bolsonaro esticar ainda mais a corda da sua insubordinação às restrições inerentes ao exercício do poder em regimes democráticos e ao preceito constitucional de inviolabilidade à vida.

Em seu diapasão de exorbitâncias, o presidente acabou provocando a volta do tema do impeachment que havia conseguido tirar da agenda. Assim como a pandemia, a segunda onda do debate sobre a interrupção do mandato volta mais forte. Agora até seus aliados no Congresso já aventam a hipótese, sinalizando esgotamento na defesa. Uma hora rompe-se o lacre da fidelidade e da submissão ao poder.

Como demonstrado pelo distanciamento de Trump por parte de republicanos de peso a partir das cenas da invasão do Capitólio, que estiveram para o agora ex-presidente americano como talvez venham estar para Bolsonaro as imagens das pessoas morrendo por asfixia no Amazonas.

Não foi preciso que o povo saísse às ruas para que Donald Trump tivesse dois processos de impeachment aprovados. Se o governante dá margem, tem vez que bastam as provas, um bom grau de intolerância cívica e a firmeza das instituições.

Carta de Bolsonaro a Biden foi lida às gargalhadas

Lisboa, no verão de 1975, devia ser a cidade mais excitante do mundo para um jornalista. Era o auge da Revolução dos Cravos, que, no ano anterior, derrubara uma ditadura de 48 anos. O governo do premiê Vasco Gonçalves, na prática comunista, estava sendo pressionado pela extrema esquerda a radicalizar e, com isso, deu-se um festival de tomada de empresas, ocupação de fábricas e nacionalização dos bancos. Dizia-se que Portugal sairia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderada pelos EUA, e se juntaria ao Pacto de Varsóvia, dominado pela URSS.



Morando e trabalhando lá, fui ao Pabe, botequim dos correspondentes estrangeiros, encontrar um bem informado repórter americano. "Os russos não têm interesse em Portugal", ele disse. "Imagine um país comunista na Europa, de porta para o Atlântico! Isso só lhes traria problemas com os EUA. O que eles querem é Angola". Referia-se à ainda colônia portuguesa, às vésperas da independência depois de longa guerra contra a metrópole recém-encerrada pelo governo Vasco. "Assim que Angola ficar formalmente livre, os russos irão em busca de seu petróleo e deixarão Portugal falando sozinho", completou.

No dia 11 de novembro, Portugal e os grupos de guerrilha assinaram a independência de Angola, e o MPLA (Movimento pela Libertação de Angola, pró-URSS) tomou o poder. Duas semanas depois, no dia 25, um golpe liquidou a Revolução dos Cravos. O repórter sabia o que dizia. Claro, seu informante era a CIA.

Se os americanos sabem até o que vai acontecer, imagine como não são seus arquivos. De Jair Bolsonaro, por exemplo, eles têm cada trumpismo, por mais ínfimo. De Ernesto Araújo, ministro do Exterior, e Ricardo Salles, do Meio Ambiente, cada ato público ou secreto, legal ou ilegal —e tudo em assuntos de seu interesse.

Em Washington, a carta de Bolsonaro ao presidente Joe Biden foi lida às gargalhadas.

Pesquisa revela que Bolsonaro executou uma 'estratégia institucional de propagação do coronavírus'

A linha de tempo mais macabra da história da saúde pública do Brasil emerge da pesquisa das normas produzidas pelo Governo de Jair Messias Bolsonaro relacionadas à pandemia de covid-19. Num esforço conjunto, desde março de 2020, o Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos, uma das mais respeitadas organizações de justiça da América Latina, se dedicam a coletar e esmiuçar as normas federais e estaduais relativas ao novo coronavírus, produzindo um boletim chamado Direitos na Pandemia – Mapeamento e Análise das Normas Jurídicas de Resposta à Covid-19 no Brasil. Nesta quinta-feira, lançam uma edição especial na qual fazem uma afirmação contundente: “Nossa pesquisa revelou a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”.

Obtida com exclusividade pelo EL PAÍS, a análise da produção de portarias, medidas provisórias, resoluções, instruções normativas, leis, decisões e decretos do Governo federal, assim como o levantamento das falas públicas do presidente, desenham o mapa que fez do Brasil um dos países mais afetados pela covid-19 e, ao contrário de outras nações do mundo, ainda sem uma campanha de vacinação com cronograma confiável. Não é possível mensurar quantas das mais de 212.000 mortes de brasileiros poderiam ter sido evitadas se, sob a liderança de Bolsonaro, o Governo não tivesse executado um projeto de propagação do vírus. Mas é razoável afirmar que muitas pessoas teriam hoje suas mães, pais, irmãos e filhos vivos caso não houvesse um projeto institucional do Governo brasileiro para a disseminação da covid-19.

Há intenção, há plano e há ação sistemática nas normas do Governo e nas manifestações de Bolsonaro, segundo se depreende do estudo. “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”, afirma o editorial da publicação. “Esperamos que essa linha do tempo ofereça uma visão de conjunto de um processo que vivemos de forma fragmentada e muitas vezes confusa”.

A pesquisa é coordenada por Deisy Ventura, uma das juristas mais respeitadas do Brasil, pesquisadora da relação entre pandemias e direito internacional e coordenadora do doutorado em saúde global e sustentabilidade da USP; Fernando Aith, professor-titular do Departamento e Política, Gestão e Saúde da FSP e diretor do CEPEDISA/USP, centro pioneiro de pesquisa sobre o direito da saúde no Brasil; Camila Lissa Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos; e Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da USP.

A linha do tempo é composta por três eixos apresentados em ordem cronológica, de março de 2020 aos primeiros 16 dias de janeiro de 2021: 1) atos normativos da União, incluindo a edição de normas por autoridades e órgãos federais e vetos presidenciais; 2) atos de obstrução às respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia; e 3) propaganda contra a saúde pública, definida como “o discurso político que mobiliza argumentos econômicos, ideológicos e morais, além de notícias falsas e informações técnicas sem comprovação científica, com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular a recomendações de saúde baseadas em evidências científicas, e promover o ativismo político contra as medidas de saúde pública necessárias para conter o avanço da covid-19”.

Os autores assinalam que a publicação não apresenta todas as normas e falas coletadas e armazenadas no banco de dados da pesquisa, mas sim uma seleção que busca evitar a repetição e apresentar o mais relevante para a análise. Os dados foram selecionados junto à base de dados do projeto Direitos na Pandemia, à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União, além de documentos e discursos oficiais. No eixo que definem como propaganda, foi também realizada uma busca na plataforma Google para a coleta de vídeos, postagens e notícias.

A análise mostra que “a maioria das mortes seriam evitáveis por meio de uma estratégia de contenção da doença, o que constitui uma violação sem precedentes do direito à vida e do direito à saúde dos brasileiros”. E isso “sem que os gestores envolvidos sejam responsabilizados, ainda que instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal de Contas da União tenham, inúmeras vezes, apontado a inconformidade à ordem jurídica brasileira de condutas e de omissões conscientes e voluntárias de gestores federais”. Também destacam “a urgência de discutir com profundidade a configuração de crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19 no Brasil”.

Os atos e falas de Bolsonaro são conhecidos, mas acabam se diluindo no cotidiano alimentado pela produção de factoides e de notícias falsas, no qual a guerra de ódios é também uma estratégia para encobrir a consistência e persistência do projeto que avança enquanto a temperatura é mantida alta nas redes sociais. A publicação provoca choque e mal estar ao sistematizar a produção explícita de maldades colocadas em prática por Bolsonaro e seu governo durante quase um ano de pandemia. Um dos principais méritos da investigação é justamente articular as diversas medidas oficiais e falas públicas do presidente na linha do tempo. Dessa análise meticulosa emerge o plano, com todas as suas fases devidamente documentadas.

Também torna-se explícito contra quais populações se concentram os ataques. Além dos povos indígenas, a quem Bolsonaro nega até mesmo água potável, há uma série de medidas tomadas para impedir que os trabalhadores possam se proteger da covid-19 e fazer isolamento. O governo amplia o conceito de atividades essenciais até mesmo para salões de beleza e busca anular o direito ao auxílio emergencial de 600 reais determinado pelo Congresso a várias categorias. Ao mesmo tempo, busca implantar um duplo tratamento aos profissionais de saúde: Bolsonaro veta integralmente o projeto que prevê compensação financeira para aqueles trabalhadores que ficarem incapacitados em consequência de sua atuação para conter a pandemia e tenta isentar os funcionários públicos de qualquer responsabilidade por atos e omissões no enfrentamento à covid-19. Em resumo: o trabalho duro e arriscado de prevenção e combate numa pandemia é desestimulado, a omissão é estimulada.

Através de retenção de recursos destinados à covid-19, o Governo prejudica a assistência aos doentes na rede pública de Estados e municípios. A guerra contra governadores e prefeitos que tentam implementar medidas de prevenção e combate ao vírus é constante. A lista é longa. Por meio de vetos, Bolsonaro anula mesmo as medidas mais básicas, como obrigatoriedade de máscaras dentro de estabelecimentos com autorização para funcionar. Muitas de suas medidas e vetos são depois derrubadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo próprio Legislativo.

Esse é outro ponto importante: a análise dos dados mostra também o quanto a situação do Brasil poderia ser ainda mais trágica caso o STF e outras instâncias não tivessem barrado várias das medidas de propagação do vírus produzidas pelo Governo. Apesar da fragilidade demonstrada pelas instituições e pela sociedade, é visível o esforço de parte dos protagonistas para tentar anular ou neutralizar os atos de Bolsonaro. É possível fazer o exercício de projetar o quanto todos esses esforços, somados e associados a um governo disposto a prevenir a doença e combater o vírus, poderiam ter feito para evitar mortes em um país que conta com o Sistema Único de Saúde (SUS). Em vez disso, Bolsonaro produziu uma guerra em que a maior parte da energia de parte das instituições e da sociedade organizada foi dissipada para reduzir os danos produzidos por suas ações, em vez de se concentrar em combater a maior crise sanitária em um século.

Quase um ano depois do primeiro caso de covid-19, resta saber se as instituições e a sociedade que não estão acumpliciadas com Bolsonaro serão fortes o suficiente para, diante do mapa de ações institucionais de propagação do vírus, finalmente barrar os agentes de disseminação da doença. O uso da máquina do Estado para promover destruição tem sido determinante para produzir a realidade atual de mais de 1.000 covas abertas por dia para abrigar pessoas que poderiam estar vivas. Na gaveta de Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara, há mais de 60 pedidos de impeachment. No Tribunal Penal Internacional, pelo menos três comunicações relacionam genocídio e outros crimes contra a humanidade à atuação de Bolsonaro e membros do governo relacionadas à pandemia. As próximas semanas serão decisivas para que os brasileiros digam quem são e o que responderão às gerações futuras quando lhes perguntarem onde estavam quando tantos morreram de covid-19.

Tratamento de morte

Vários pacientes que chegam em hospital já graves, maioria deles, em algum momento, fez a utilização de terapia precoce, seja ivermectina ou cloroquina, é muito mais comum que a gente acredita. A maioria dos pacientes que vão para UTI fizeram uso de medicamento
Estevão Urbano, presidente da Sociedade Mineira de Infectologia

A realidade depois da festa

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?



O Brasil acha que comprou da Índia 2 milhões de doses da Oxford-AstraZeneca. Mas o nível de informação sobre o País é baixo, assim como precária é a atual habilidade diplomática brasileira. Adesivar um avião para buscar as vacinas é algo tão fora do ar que possivelmente ele seria apreendido no aeroporto de Mumbai.

Há pressão para que a demanda interna indiana seja atendida prioritariamente. Além disso, as exportações obedecem também a critérios geopolíticos. O discurso de China e Índia é o de contribuir para a humanidade. Mas disputam espaço na Ásia e certamente farão da vacina um instrumento desse jogo diplomático.

No caso da China, onde se produzem insumos para a Coronavac e AstraZeneca, além de suas prioridades geopolíticas, há ainda a hostilidade do governo Bolsonaro, manifestada às vezes de forma preconceituosa. Assim como o ministro Ernesto Araújo é a última pessoa que deveríamos escolher para negociar com Biden, também o é para negociar com a China.

De modo geral, não estaríamos tão despreparados para uma conversa com a China se a questão ideológica não tivesse prevalecido também no campo da telefonia 5G. Ao optar pela chamada rede limpa, influenciado por Trump, o governo brasileiro não só ameaça excluir os chineses, como adotar uma saída tecnológica mais cara para o consumidor brasileiro.

Nada disso era para ser tão grave se desde o meio do ano passado o governo tivesse compreendido o papel estratégico das vacinas. Preconceitos anticientíficos pesaram nas relações com a Pfizer, que, ao lado da Moderna, trabalha com uma técnica geneticamente avançada. Foi pensando nesse tipo de vacina que Bolsonaro lançou a célebre dúvida sobre seus efeitos, virar ou não jacaré.

Segundo as notas da própria Pfizer, poderíamos ter comprado, no mínimo, 30 milhões de doses, que já resolveriam 10% de nossas necessidades. E havia, evidentemente, a possibilidade de comprar mais. A questão tão problemática de conservar a vacina a menos 70 graus Celsius foi parcialmente resolvida pela própria Pfizer com a embalagem de gelo seco.

Não negociamos com a Moderna talvez pelo preço de suas doses. Mas nestas circunstâncias o preço tem de ser visto com realismo, considerando nível de eficácia, necessidade de mover a economia, alívio no sistema de saúde.

Essas duas vacinas têm uma desvantagem em relação às que foram contratadas pelo Brasil: não transferem tecnologia para serem produzidas aqui. Isso não derruba o fato de que eram necessários mais contratos, um leque maior de alternativas para enfrentar a situação, algo impossível para o universo mental de Bolsonaro. Seus preconceitos são muito mais variados que as alternativas: a vacina com RNA mensageiro transfigura a pessoa em jacaré, a vacina mais tradicional é chinesa e foi comprada por Doria.

A segunda onda da pandemia bate forte no Brasil. Com ela, variantes do coronavírus com mais capacidade de propagação. Infelizmente, o vírus se adapta mais rápido à realidade que o cérebro dos dirigentes.

A chegada simbólica da vacina é sempre uma esperança. Com ressalvas, ela chega a um país sufocado pela pandemia e pelo negacionismo. Falta oxigênio, morre-se afogado no seco.