sexta-feira, 21 de março de 2025

Pensamento do Dia

 


Asilo para paranoicos

A paranoia é um direito. Se Eduardo Bolsonaro acredita que sofre perseguição política no Brasil, tem o direito de requisitar asilo no país de sua preferência. As autoridades desse país é que correm o risco de cair no ridículo caso concedam a proteção com base em delírios e não em fatos —não que isso seja um problema para os EUA sob Donald Trump.

Tampouco acompanho a argumentação dos que afirmam que Bolsonaro, o Pequeno, com seu teatro, adentra o território do ilícito por difamar o Brasil no exterior. Não penso que exista uma obrigação de zelar pela imagem do país. A liberdade de expressão foi inventada justamente para que as pessoas pudessem criticar qualquer instituição ou autoridade e em termos fortes. Se a crítica para ou não em pé é um outro problema.


A tese bolsonarista de que o Brasil vive uma ditadura judicial é uma das ideias mais estapafúrdias que já vi. Sim, o STF adora meter os pés pelas mãos e frequentemente avança o sinal. Pior, continua recorrendo a heterodoxias mesmo depois que elas deixaram de ser necessárias e se tornaram contraproducentes.
Mas, como já nos ensinou o sábio Lula, a democracia é relativa, isto é, comporta graus. É preciso mais do que medidas discutíveis ou mesmo alguns excessos autoritários da Justiça para caracterizar uma ditadura.

Desconfio até que a tal da "ditadura da toga" da qual bolsonaristas tanto falam seja uma impossibilidade, se não lógica, ao menos prática. Exceto pela diminuta Polícia Judicial, que basicamente faz a segurança de tribunais, o Judiciário é um Poder desarmado. Depende de forças sob controle do Executivo para impor suas decisões a quem recalcitre. Daí que a literatura não registra muitos casos de cortes supremas convertidas em sede de governo.

É interessante ainda notar que Trump, cujas botas o jovem Bolsonaro está se especializando em lamber, explora justamente essa assimetria de forças entre os Poderes para desafiar decisões de magistrados, no que, me parece, será a versão 2.0 de sua tentativa de golpe.

Trump x Justiça: Os EUA a caminho da autocracia?

O governo Donald Trump deportou centenas de venezuelanos no último fim de semana porque, segundo o governo dos EUA, eles eram membros de uma gangue de tráfico de drogas. Os homens deportados foram transferidos para El Salvador e mantidos na prisão de segurança máxima CECOT.

Trump invocou uma lei de 1798 que permite a expulsão de "inimigos estrangeiros" do país, mas o juiz federal de Washington, James E. Boasberg, proibiu a deportação. No entanto, o governo Trump ignorou a decisão do juiz, alegando que os aviões já estavam no ar no momento da decisão do tribunal.

A disputa se intensificou na quarta-feira: "Se um presidente não tem o direito de remover assassinos e outros criminosos, então nosso país tem um grande problema, está condenado!" Trump desabafou em sua rede social Truth sobre a decisão de Boasberg. Trump e vários congressistas republicanos até pediram sua remoção.


Este não é o único caso em que o governo Trump e o judiciário dos EUA estão em desacordo. Por exemplo, um juiz federal ordenou a suspensão do encerramento da agência de ajuda ao desenvolvimento USAID . Outro juiz de Maryland bloqueou a expulsão de pessoas transgênero das Forças Armadas pelo Secretário de Defesa Pete Hegseth , pelo menos por enquanto. E um juiz de Washington ordenou que o governo pagasse subsídios totalizando US$ 14 bilhões a três organizações ambientais.

"Temos juízes descontrolados que estão destruindo nosso país", repreendeu Trump em uma entrevista à Fox News . Quando perguntado se ele se oporia a uma decisão judicial, Trump respondeu: "Não, isso não é possível".

"No momento, Trump está sofrendo derrota após derrota nos tribunais", diz Johannes Thimm, vice-chefe do Grupo de Pesquisa das Américas no Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), sediado em Berlim. "E agora estamos vendo os primeiros sinais de que ele está questionando abertamente certas decisões judiciais e praticamente não as cumprindo." Isso parece estar acontecendo particularmente com deportações.

O que Trump e seus apoiadores pensam sobre esse tipo de sentença ficou claro em várias declarações nos últimos dias. O "czar da fronteira" nomeado por Trump, Tom Homan, disse à Fox News : "Não me importa o que os juízes pensam." Se "os terroristas forem removidos do país", então "isso deve ser motivo de comemoração neste país", disse ele.

A secretária de Justiça, Pam Bondi, também criticou a suspensão das ordens de deportação como um "desrespeito à autoridade do presidente Trump". Ele ressaltou que tais decisões dos juízes colocam em risco a população e a aplicação da lei.

Para Johannes Thimm, esses são sinais de alerta. O especialista do SWP acredita que todo o sistema de separação de poderes nos EUA está em perigo. Por um lado, "o poder legislativo praticamente abdicou de seu papel como poder de supervisão que também pode controlar o presidente". Desde a eleição, os republicanos detêm a maioria em ambas as câmaras e são "praticamente 100% leais a Trump", diz Thimm.

O Judiciário permanece. "E o problema básico aqui é que os tribunais não conseguem efetivamente impor suas decisões, especialmente contra o governo. O sistema inteiro depende dos outros poderes do governo respeitando a autoridade dos tribunais", acrescenta o especialista.

"O fato de Trump estar começando a ignorar ou se recusar a cumprir decisões judiciais tem o potencial de desencadear uma crise constitucional", ele argumenta. Afinal, em um estado constitucional, a polícia e as autoridades de segurança estão lá principalmente para fazer cumprir a lei. No entanto, em última análise, eles respondem ao presidente. Mas se houver instruções conflitantes de ambos os lados, a quem eles devem obedecer?

Talvez essa seja uma das razões pelas quais o presidente da Suprema Corte, John Roberts, rejeitou o pedido de Trump para remover alguns juízes. "Está estabelecido há mais de dois séculos que o impeachment não é uma resposta apropriada a um desacordo sobre uma decisão judicial", explicou Roberts. "É para isso que servem os recursos."

É improvável que o presidente dos EUA arrisque um confronto aberto com a Suprema Corte, em cuja nomeação ele desempenhou um papel fundamental. Mas "não está mais fora de questão que Trump simplesmente ignore o judiciário e ninguém realmente faça ou seja capaz de fazer nada a respeito", teme Thimm. "Então os EUA terão dado um grande passo em direção à abolição do estado democrático de direito."

Sou obrigado a concordar com Bolsonaro: ele é um aborto da natureza

A princípio pareceu só mais uma live para que Bolsonaro se defendesse mais uma vez das acusações que deverão pôr fim à sua carreira política, remetendo-o à prisão por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe, danos às sedes dos três Poderes da República e organização criminosa.

De fato, ele usou a ocasião para se apresentar como um injustiçado e repetiu os velhos e inconsistentes argumentos de que é vítima de uma trama da justiça. Nada de novo acrescentaram em sua defesa um dos seus advogados presente e o âncora da conversa de mais de duas horas, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Zero 1.

O ex-presidente definiu-se como um “aborto da natureza”. Ele afirmou:

“Eu fui um aborto da natureza. Além de sobreviver a uma facada, na graça de Deus, a minha própria eleição. Quem podia esperar que eu, um deputado do baixo clero, tido por muitos como encrenqueiro, e era encrenqueiro mesmo, conseguiria ganhar uma eleição?”

Ao fim da live, porém, diria:

“Me deem [na próxima eleição] 50% da Câmara e 50% do Senado que eu mudo o destino do Brasil.”

De início, também pareceu que o encontro serviria basicamente para celebrar os 70 anos de vida de Bolsonaro. Apareceram os filhos Zero 2 (Eduardo, o fugitivo) e Zero 3 (Carlos, o marqueteiro do pai). E Michelle, a ex-primeira-dama, acompanhada de um pastor, com orações, beijos, abraços e um bolo.

Mas o segredo estava no bolo, em formato de capacete para uso de motociclistas. Flávio aproveitou grande parte do programa para anunciar de viva voz, e por meio de comerciais estrelados por Bolsonaro, que ele e o pai se associaram para fabricar capacetes de grafeno, o “primeiro de vários produtos da família”.


Pois é: business. Aposte na incontida ambição da família Bolsonaro por dinheiro que você não erra. Como demonstrado ao longo da trajetória do clã, enriquecer é seu objetivo número um, dois e três. E se a política lhe abriu as portas para negócios, por que não fazê-los, de preferência em dinheiro vivo ou via Pix?

Um capacete com a marca “Bravo”, autografado por Bolsonaro, foi leiloado. Flávio disse que seu preço na fase de pré-venda será de 740 reais. Quem desse o lance mais alto até o fim da live receberia aquele capacete das mãos do próprio Bolsonaro. O primeiro lance foi de 10 mil reais. O último, de 36 mil. Flávio advertiu:

– Mas manda o Pix.

Nos primeiros seis meses de 2023, Bolsonaro recebeu 17,2 milhões via Pix ao alegar que lhe faltava dinheiro para pagar as multas que devia por não usar capacete pilotando motocicletas. Ao todo, foram 769 mil transações entre 1º de janeiro a 4 de julho. Nesse período, a conta de Bolsonaro movimentou R$ 18,5 milhões.

Nos próximos dias, mais três capacetes autografados por Bolsonaro serão leiloados no canal do Instagram da nova empresa.

Conselho dos velhos sábios astecas

Agora que já olhas com teus olhos,

percebe.
Aqui, é assim: não há alegria,
não há felicidade.
Aqui na terra é o lugar de muito pranto,
o lugar onde se rende o fôlego
e onde bem se concebe
o abatimento e a amargura.

Um vento de pedra sopra e se abate
sobre nós.
A terra é lugar de alegria penosa,
de alegria que fere.

Mas ainda que assim fosse,
ainda que fosse verdade que só se sofre,
ainda que fossem assim as coisas na terra,
haverá que estar sempre com medo?
haverá que estar sempre tremendo?
haverá que viver sempre chorando?

Para que não andemos sempre gemendo,
para que nunca nos sature a tristeza,
o Senhor Nosso nos deu
o riso, o sonho, os alimentos,
nossa força,
e finalmente
o ato de amor
que semeia gentes.
Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

Em busca da confiança

Yuval Noah Harari disse em entrevista recente que a questão chave do nosso tempo é que a “democracia é baseada em confiança enquanto a ditadura baseia-se em medo”. Diz o historiador israelense que “quando a confiança nas instituições democráticas, na academia, na mídia profissional, nos tribunais é destruída, só a ditadura funciona”. Harari adverte ainda que “a desconfiança e a consequente desmoralização das instituições que ordenam a vida em sociedade não liberta os indivíduos, ao contrário, consagra o medo e abre caminho para a tirania”.

Confiança é o lastro em que se fundamenta o valor e o poder das instituições, dos ativos financeiros, das empresas, dos produtos, das marcas, das moedas, das pessoas e principalmente das narrativas. Ficções e mitologias, modernas e primitivas, ilustram as crenças e fazem balançar o pêndulo das verdades aceitas como tal. O bombardeio errático das informações no novo mundo conectado e instantâneo condiciona a formação de opiniões e os posicionamentos. Harari diz que quase tudo é lixo.

O voto popular é a instituição mais importante da democracia. Com todas as imperfeições é o calendário eleitoral que ordena a disputa política e indica estarmos vivendo, ao menos formalmente, num sistema democrático. Existe uma ala do Partido Republicano nos Estados Unidos que quer acabar com as eleições parlamentares (mid term elections) no ano que vem, para permitir que as medidas “revolucionárias” do governo Trump possam funcionar e melhorar a vida dos americanos. Acho muito difícil que isso ocorra, mas significa que os ventos da ditadura estão soprando por lá, perigosamente.


No Brasil a principal estratégia para desmoralizar o voto foi a campanha contra a urna eletrônica que contou ainda com o auxilio luxuoso dos interesses comerciais interessados em vender 500 mil impressoras e softwares de segurança para a Justiça Eleitoral. A legislação feita para implantar o financiamento público de campanha, impedir a compra de voto, o abuso do poder econômico e o uso eleitoral da máquina pública não mudaram o ambiente de descrédito no sistema político brasileiro. É preciso reconhecer as imperfeições e ineficiências das instituições da democracia brasileira e enfrentar o debate sobre reformas estruturais com vistas a resgatar a confiança na politica e no voto popular. Não enfrentar a agenda de reformas é acomodar-se na defesa de um status quo desgastado e inaceitável para grande parte da população e colocar lenha na fogueira da campanha anti-sistema. O veteraníssimo José Sarney defende o voto distrital misto e o semi presidencialismo.

Apareceram muitas novidades. Novos partidos, celebridades televisivas e influenciadores digitais, que surfam no sonho de uma “nova politica”, se elegem, tornam-se centro das atenções e objeto de desejo dos partidos e de projetos de poder. Com raras e honrosas exceções, a “renovação” dos últimos anos frustrou o país, piorou a qualidade do sistema político e aprofundou a crise de confiança. Em 2026, nas próximas eleições, teremos mais uma oportunidade de tentar reverter esse jogo.

Nos estados federados a liderança vai caber aos governos estaduais bem avaliados que tendem a formar alianças regionais amplas, sem alinhamento ideológico e compromisso prioritário com candidaturas presidenciais. Como nas peladas, os dois mitos, Lula e Bolsonaro, depois do par-ou-ímpar, escolhem o time distribuindo apoios com base em seus estoques de popularidade e recursos de poder, segurando lealdades e alimentando a polarização. É nítido o crescimento da torcida contra ambos os populistas embora ainda não seja claro qual será o espaço do centro democrático reformista.

Quem sabe estejamos cansados de mitos e já tenha chegado a hora da racionalidade e do bom senso ganharem eleições, reforçando a confiança e a democracia no Brasil?

A censura totalitária do 'ditador' Trump

Não bastam eleições democráticas para um governo ser classificado de democrata. Os EUA de Donald Trump demonstram, no século XXI, como um presidente eleito por larga margem consegue se comportar como um ditador. Autocrático e totalitário. A guerra cultural de Trump e seus bilionários de cabeceira começa a deformar a sociedade norte-americana.

Confio em que a queda de popularidade de Trump, somada a manifestações em Washington e a ações da Suprema Corte, consiga frear o enlouquecimento que tira o sono de acadêmicos, jornalistas, atores, artistas. E também da Europa. Talvez eu seja otimista demais. Um eleitorado que recoloca no Poder um racista misógino xenófobo que incitou a invasão ao Capitólio não se rebela com a censura. Mas, quem sabe...


Professores brasileiros em universidades americanas compartilham o terror obscurantista. Ouvi alguns deles. “Milhões e milhões de dólares para pesquisa estão evaporando de um dia pro outro. Centros de pesquisa obrigados a demitir gente. É uma monstruosidade”.

“Estamos todos assustados, intimidados. E sabemos que esse é o efeito desejado, o tal chilling effect” (“efeito intimidador”).

A distopia de Trump e Musk é caricatural. Começa pela guerra às palavras, censuradas em documentos oficiais e científicos. Guerra inofensiva? Qualquer protocolo de pesquisa biomédica e médica com as palavras seguintes (e derivadas) está no momento com verbas bloqueadas. A lista reflete obsessões trumpistas. Abaixo, uma seleção proibida:

Acessível, ativismo, defesa de uma causa, inclusivo, aliança, solidariedade, antirracismo, em risco, barreira, pertencer, viés, preconceito, tendencioso, negros, indígenas e pessoas de cor, energia limpa, crise climática, ciência climática, qualidade ambiental, diversidade comunitária e racial, herança cultural, equidade, deficiências, discriminação, igualdade de oportunidades, excluído, feminismo, violência de gênero, golfo do México, discurso de ódio, disparidade na saúde, minoria hispânica, historicamente, identidade, imigrantes, grupos-chave, LGBT, marginalizar, homens que fazem sexo com homens, saúde mental, multicultural, opressão, orientação, polarização, político, poluição, pessoas grávidas, privilégio, prostituta, profissional do sexo, etnia e raça, segregação, sexualidade, justiça social, status, estereótipo, sistêmico, transexual, trauma, tribal, subestimado, desfavorecido, vítima, populações vulneráveis.

Quando lemos essa lista, nós, jornalistas, que lidamos com a palavra como matéria-prima, estremecemos. Sabemos o que é lidar com a censura prévia e com a tortura e morte de jornalistas como Vladimir Herzog. Só agora, 50 anos após ser encontrado enforcado numa cela, assassinado pelo DOI/CODI, o governo brasileiro oficializou seu nome como anistiado político.

A guerra cultural de Trump não mira apenas universidades americanas. Um pesquisador aeroespacial francês foi barrado ao chegar ao país. Milhares de imagens e artigos foram removidos de sites do Pentágono por conterem “diversidade”. Sobre o Holocausto, o 11 de setembro, conscientização do câncer, assédio sexual, prevenção de suicídio. Foi vetada a citação do avião Enola Gay, que lançou bomba em Hiroshima. Apagado por ter “gay” no nome. A insanidade sobrou para a aeronave.

Não é engraçado. É aterrorizante. Autocracia, totalitarismo, ditadura, essas palavras não são sinônimas. Mas uma linha invisível as costura. A História está cheia de exemplos, enxerga quem quer.