sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Homero

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.

O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o próprio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e às vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na mão direita duas conchas. Eram daquelas conchas brancas e grossas com círculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares, que têm no vértice da parte triangular um buraco.

O Búzio passava um fio através dos buracos, atando assim as duas conchas uma à outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas.

O Búzio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro julgava-se que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio. Na mão esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os cães raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados do pão que lhe davam e os tostões. O saco era de chita remendada e tão desbotada que quase se tornara branca.

O Búzio chegava de dia, rodeado de luz e de vento, e dois passos à sua frente vinha o seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pêlo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto. E pelas ruas fora vinha o Búzio com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos. Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas. Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço de pão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:

- Vai-te embora, Búzio.

E o Búzio demoradamente - tão demoradamente que cada um dos seus gestos de via - desprendia o saco do pau, desatava os cordões, abria o saco, guardava o tostão, e de novo fechava o saco e o atava e o prendia. E seguia com o seu cão.

Havia na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos trapos, eram mães escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações. Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza.

O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam.

E foi assim que o vi aparecer naquela tarde em que eu brincava sozinha no jardim. A nossa casa ficava à beira da praia. A parte da frente, virada para o mar, tinha um jardim de areia. Na parte de trás, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste e mal tratado, com o chão coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os passos, um poço, duas árvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.

O Búzio, que chegou pelo lado de trás, abriu a cancela de madeira, que ficou a baloiçar, e atravessou o jardim, passando sem me ver. Parou em frente da porta de serviço e ao som das suas castanholas de conchas pôs-se a cantar. Assim esperou algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu ângulo escuro apareceu um avental.

Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e brilhante. E a criada estendeu um pão e disse:

- Vai-te embora, Búzio.

Depois fechou a porta. E o Búzio, sem pressa, demoradamente como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cordões, abriu o saco, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu cão. Depois deu a volta à casa, para sair pela frente, pelo lado do mar.

Então eu resolvi ir atrás dele. Ele atravessou o jardim de areia coberto de chorão e lírios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principia a curva da baía, parou. Ali era já um lugar selvagem e deserto, longe de casas e estradas.

Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me escondida nas ondulações da duna e ajoelhei-me atrás de um pequeno monte entre as ervas altas, transparentes e secas. Não queria que o Búzio me visse, porque o queria ver sem mim, sozinho.

Era um pouco antes do pôr do sol e de vez em quando passava uma pequena brisa. Do alto da duna via-se a tarde toda como uma enorme flor transparente, aberta e estendida até aos confins do horizonte. A luz recortava uma por uma todas as covas da areia. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefacção e sem cadáveres, penetrava tudo. E a todo o comprimento da praia, de norte a sul, a perder de vista, a maré vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de búzios e algas verdes que recortavam as águas. E atrás deles quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, três fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, constantemente se reerguiam.

No alto da duna o Búzio estava com a tarde. O sol pousava nas suas mãos, o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Ficou algum tempo calado, depois devagar começou a falar. Eu entendi que falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas mãos abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, com a luz, recortar e desenhar todas as coisas. Não posso repetir as suas palavras: não as decorei e isto passou-se há muitos anos. E também não entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo não as ouvi, porque o vento rápido lhas arrancava da boca. Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas.
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Contos Exemplares"

Supremacia antopóide

Se você imaginar que a riqueza das nações não está mais nos recursos naturais, mas no capital humano, o Brasil nunca será um país decente, digno dos nossos sonhos, enquanto a imensa maioria da população não tiver educação, saúde e empregos decentes. Enfrentar a desigualdade social no Brasil é sinônimo de uma segunda abolição, porque a maioria dos pobres são negros
Laurentino Gomes 

Nova sigla, velhas ideias

Após 20 anos de ditadura militar, a balança se inverteu e o preconceito contra os militares passou a andar lado a lado com uma onda de esquerda e centro-esquerda. Falar em direita? Vade retro! Partidos conservadores mais aguerridos se diziam “liberais”, até de “centro-esquerda”, mesmo depois que as Forças Armadas passaram ao 1.º lugar de aprovação nas pesquisas.

O único político que tentou criar um partido nitidamente de direita foi Luís Eduardo Magalhães, grande promessa política que morreu aos 43 anos, em 1998. Sem ele, até PP, PTB e PL se apresentam como de “centro”. E viraram “Centrão”. Logo, a criação da Aliança pelo Brasil é um movimento importante e um teste sobre o tamanho e a identidade, ou alma, da direita brasileira, hoje mobilizada em torno de um “mito”, Jair Bolsonaro, e de uma novidade, o bolsonarismo. Seus nove partidos anteriores, como o PSL pelo qual se elegeu há um ano, foram apenas utilitários.

A grande pergunta, porém, é que direita é essa? Aquela direita de Luís Eduardo? Ou uma nova direita de cultos? A resposta pode definir uma linha clara entre os que apoiam o governo Bolsonaro por pragmatismo ou falta de opção e aqueles que realmente comungam as ideias, muitas delas beirando o absurdo, da nova onda de poder.

Filho do ex-governador e ex-senador Antonio Carlos Magalhães, o ACM, Luís Eduardo incorporava o que se pode chamar de uma terceira vertente da direita clássica brasileira. Depois do coronelismo bruto da era getulista e do caudilhismo mais envolvente, à la ACM, o jovem deputado baiano era a promessa de uma direita moderna, urbana, liberal no sentido mais amplo.


Já Bolsonaro é o quê? É conceitualmente de direita e comunga com as premissas clássicas do liberalismo? Ou apenas pensa, fala e age atabalhoadamente, embolando a defesa de Ustra, Pinochet e Stroessner, uma visão tosca sobre globalização, a mistura deletéria de política com religião, a obsessão por armas, a cultura do corporativismo, o desprezo por cadeirinhas e radares, o desdém pela pesquisa e a ciência, a falta de paciência com a ecologia, uma política externa personalista e belicosa, a mal disfarçada tese do “bandido bom é bandido morto”?

É nisso que desembocou a direita brasileira? Cadê a direita que equilibra o liberalismo na economia com o liberalismo social e cultural? Que combate o dirigismo estatal, defende a iniciativa privada e a política externa pragmática, simultaneamente à responsabilidade social, liberdade de expressão, igualdade de direitos, dignidade da pessoa humana, respeito à diversidade e a globalização? Ou a direita não pode ser generosa e inclusiva?

A Aliança pelo Brasil – aliás, um nome bom, de grande apelo – nasce como um partido familiar. Jair é presidente, Flávio é vice, Eduardo é ideólogo, Jair Renan é vogal, enquanto Carlos mantém-se na trincheira das redes sociais.

Pairando sobre a família e o auditório gritando slogans em tom evangélico, ou de seita, estavam lá o tal Olavo de Carvalho, o tal Steve Bannon, a tal obsessão ideológica, a tal visão tortuosa de mundo e uma guerra insana contra uma salada de fantasmas: comunismo, globalismo e nazi-fascismo. Uma barafunda que pode ser bastante útil para eleições, mas bem pouco convincente para articular solidamente a real direita brasileira, inclusive a empresarial.

E, mais do que as regras da Justiça Eleitoral, prazos e questões práticas sobre assinaturas digitais ou não, um grande risco para o novo partido vem da realidade internacional. Com o afastamento de Trump deixando de parecer absurdo nos EUA e processos se avolumando contra Netanyahu em Israel, os dois maiores ídolos do “direitista” Bolsonaro não só parecem ameaçados como ameaçam o discurso do presidente e do novo partido presidencial.

Pensamento do Dia


Instinto de sobrevivência

Em agosto, depois das críticas do ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Ricardo Galvão, aos dados preliminares de que as queimadas na Amazônia haviam aumentado, o presidente da República demitiu o cientista, culpou organizações não- governamentais pelo fogo na mata e acusou governadores de conivência com o incêndio das florestas.

Três meses depois, Jair Bolsonaro, ao ser questionado pelos dados do mesmo Inpe que indicam desmatamento apontou o dedo para a gestão da ex-ministra Marina Silva no Meio Ambiente, quando se registrou um dado um terço superior ao desmatamento atual, disse que se trata de uma questão “cultural” e sugeriu que identificação da titularidade das propriedades nas florestas facilitará a responsabilização de seus autores. Ainda não está claro como, além de beneficiar grileiros, a medida pode vir a proteger o meio ambiente, mas o gesto traz menos danos à imagem do Brasil no exterior do que a demissão do presidente do Inpe.

O dinheiro e a política baixaram a bola e o tom do discurso e da ação governamental. Não é um Bolsonaro paz e amor que parece estar em curso, mas uma segmentação do seu comportamento para plateias e fins específicos e uma calibragem maquiada das políticas de governo - e não apenas ambientais - guiada pelo instinto de sobrevivência.


Entre uma e outra reação do presidente, o Brasil foi passado para trás na fila de ingresso no clube dos ricos (OCDE), o leilão do pré-sal frustrou a atração de investidores, o dólar chegou a R$ 4,20 e a fuga cambial bateu o recorde registrado 20 anos atrás. Nem todas essas más notícias têm relação direta com o discurso miliciano do presidente (não apenas) na área ambiental. Tem empresa preferindo pagar dívida em dólar para tomar dinheiro num Brasil de juro mais baixo e investidor revertendo posições em Real tomadas na expectativa de que o leilão o apreciaria. Nenhuma dessas más notícias, porém, poderá ser revertida se a corda do extremismo for ainda mais esticada.

A ordem de moderação chegou até o ministro do Meio Ambiente. Depois de demitir Galvão do Inpe, Ricardo Salles fez uma rodada de viagens pela Europa, onde, em encontros com ministros alemães e ingleses, o comitê empresarial da OCDE, e jornalistas, custou a emplacar suas preleções. Ao longo desse tempo também cresceram seus conflitos com a ministra da Agricultura, Teresa Cristina. Pela primeira vez, o embate entre as duas pastas teve sinais trocados, entre a vista grossa do Meio Ambiente para a motosserra e a preocupação da Agricultura com os contratos de seus exportadores em mercados vigilantes na questão ambiental.

Foi nesta conjuntura que Salles tomou a decisão de se deslocar até São José dos Campos para o anúncio das más notícias sobre o desmatamento. Se as medidas a serem tomadas pelo governo não refletirem mudanças reais na política ambiental, terá gasto gasolina à toa, mas, na simbologia do poder, Salles deu a cara a bater e prestigiou o instituto que havia colocado em xeque.

Os sinais de inflexão não vêm apenas da retórica ambiental. O mesmo presidente que chegou a declarar alinhamento automático com os Estados Unidos, enumerou, para o aval de seus pares, as prioridades elencadas pelo Brasil como resumo de sua gestão à frente dos Brics e das metas futuras: fortalecimento da arquitetura econômico-financeira internacional, reforma do sistema multilateral, resolução de crises por meios diplomáticos e fortalecimento da cooperação entre os integrantes do bloco.

O surto de moderação presidencial se estendeu ao sumiço do vereador Carlos Bolsonaro das redes sociais e à decisão de remeter ao laranjal da Pasta do Turismo, e não ao pomar de aberrações ideológicas do ministro da Educação, Abraham Weintraub, as atribuições do ex-ministério da Cultura abrigadas, até então, sob o guarda chuva de Osmar Terra (Cidadania).

Bolsonaro também tem se revelado cauteloso em relação ao fôlego curto dos primeiros sinais de reativação da economia. Sinal disso foi o freio em relação à reforma administrativa, proposta que confronta um segmento cujo poder de fogo ainda está por ser testado. Fora os professores, categoria que foi para a rua de braços dados com aqueles da iniciativa privada, os funcionários públicos ainda não demonstraram, neste governo, disposição de ir para o confronto.

Além disso, o risco do continente em chamas reduz o ímpeto reformista. A classe média chilena empurrada para a rua foi empobrecida por custos crescentes de educação e saúde e benefícios previdenciários arrochados, num ambiente em que, a despeito do crescimento da economia, é de desigualdade cristalizada. Os efeitos, ainda incertos, de um dólar valorizado no Brasil acrescem, à doença chilena, uma pitada de moderação.

É claro que a presidência-bipolar não autoriza que se tracem tendências, mas a moderação, além de imperativos imediatos relacionados às expectativas da economia, e afetada por aqueles de mais longo prazo vinculados ao maior rival de Bolsonaro na política. Reconfigurado para registrar o retorno do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o GPS presidencial tenta distanciar Bolsonaro da extremidade direita para evitar que o rival ocupe espaços.

Tanto Lula quanto Bolsonaro buscarão ocupar este grande deserto de homens e ideias que hoje está no centro da política. Tentarão fazê-lo sem deixar a descoberto os pólos dos quais hoje são titulares. A rota de Lula começará a ser conhecida no congresso petista que se inicia amanhã em São Paulo. A do presidente da República, por errática, segmentada e, em grande parte, submersa, escapa a uma tradução ligeira.

Por mais moderado que o discurso presidencial possa parecer, o extremismo pode ser terceirizado para a estratégia digital de seu governo e, principalmente, do seu novo partido. Resta ainda o ímpeto bolsonarista suscitado pelos instintos mais primitivos. Só o da sobrevivência na política será capaz de moderá-lo.

Black & White

Filme de Tristan Aronovich conquistou o Grande Prêmio no California Film Awards.

"O nazismo nasceu na Europa, mas floresceu na América do Sul. Após a II Guerra Mundial, milhares de criminosos nazistas encontraram abrigo seguro no Brasil e na Argentina. Seu legado de horror, no entanto, permaneceu escondido… até agora."

A 'nova' política

Ladrão de celular tem que ir pro pau
Jair Bolsonaro

Balanço de um ano: governo não sabe governar

Talvez o mais grave nem seja a radicalização ideológica, o retrocesso civilizatório nos direitos e nos costumes, as bravatas de quem se acha dono da democracia, e nem mesmo a falta de educação e o palavreado chulo e desrespeitoso – embora tudo isso seja gravíssimo. Prestes a completar um ano, o governo Bolsonaro não deixa dúvidas em relação à sua característica mais marcante: a incapacidade para governar um país do tamanho e da complexidade do Brasil, a inépcia na tomada de decisões que, como as de qualquer governo, afetam a vida de cada um.


Ao longo desses meses, vêm se avolumando, em praticamente todas as áreas, improvisos e decisões erradas por parte do poder público, e os prejuízos começam a ser sentidos de forma mais forte pelo cidadão.

Às vezes, dá em morte. Não é surpresa para quem acompanha os atos e palavras presidenciais, embora não deixe de ser chocante: o número de acidentes nas estradas no feriadão de 15 de novembro cresceu 18% em relação ao mesmo período de 2018, que foi até maior porque o feriado teve mais um dia. O número de infrações autuadas – excesso de velocidade, embriaguês ao volante, não uso do cinto de segurança, entre outras – aumentou em espantosos 66%.

Não é preciso ser um gênio para relacionar o comportamento dos motoristas irresponsáveis ao discurso de Bolsonaro contrário aos “pardais”, controles de velocidade e demais exigências de segurança no trânsito. Pior ainda, o discurso se materializou na retirada, por medida provisória, dos radares móveis das estradas. Paga-se o preço dessa insensatez.

Para ficar só nos últimos dias de desgoverno, temos uma série de vexames. Bolsonaro acabou, também por MP, com o DPVAT, o seguro para acidentes de trânsito – ao que se comenta, num gesto para prejudicar seu desafeto Luciano Bivar. A família do dublê de empresário e presidente do PSL é sócia de uma das seguradoras do consórcio que explora o DPVAT. Só que, além de deixar acidentados sem seguro, o governo se esqueceu que os mesmos recursos arrecadados com o imposto são usados para impressão dos documentos de licenciamento de toda a frota de veículos do país.

E agora? Talvez a sorte de Bolsonaro seja a disposição de deputados e senadores de rejeitar a medida provisória 904/19 – obviamente editada sem maiores estudos prévios. Mas a MP seguinte da série, a 905, pode acabar tendo o mesmo destino — ou acabar até sendo devolvida pelo Congresso ao Planalto. Ela cria o programa de incentivo ao emprego dos jovens entre 18 e 20 anos, o pessoal da carteira verde-e-amarela, mas se esqueceu de combinar com os russos que os R$ 10 bilhões das desonerações para os empresários virão de uma cobrança de contribuição previdenciária sobre o salário-desemprego. Nos penduricalhos, a MP ainda promove uma reforma trabalhista disfarçada quê dificilmente será aprovada por deputados e senadores.

A estratégia de Bolsonaro tem sido jogar a responsabilidade por todos os problemas que aparecem nos governos do PT. Tentou fazer isso esta semana, por exemplo, diante da ampla repercussão do aumento dos números do desmatamento da Amazônia. Não colou. É só olhar o período desse crescimento, entre meados de 2018 e de 2019, em plena vigência do discurso anti-ambientalista da atual administração.

Com quase um ano de governo, vai ficando cada vez mais difícil, para o presidente e seus auxiliares, manter a narrativa do não-tenho-nada-com-isso. Aos poucos, vai ser engolido pela do não-sei-governar.

Irrompem os monstros do Brasil

Não há mais espaço para rir. Nem tempo a perder repassando absurdos de um governo de demagogos como se Brasília tivesse sido tomada por incultos. Quem está hoje no poder no Brasil tem método e objetivo. E um projeto claro: destruir o que existe para, em seu lugar, reconstruir um modelo desejado por essas pessoas no comando para a sociedade. Nesta semana, o novo secretário da Cultura, Roberto Alvim, derrubou um dos ativos mais poderosos do Brasil no exterior: sua diversidade artística. Ao discursar na sede da Unesco, em Paris, ele deixou governos estrangeiros pasmos ao anunciar que teria como função, entre outras coisas, o resgate dos clássicos. E, assim como outros líderes já fizeram no passado, atacou a cultura e a arte que não sejam de sua ideologia.

Mas seu discurso também tinha outra lógica: a da destruição dos padrões estéticos do Brasil. Para ele, até Bolsonaro chegar, tais ramos da atividade humana no país eram uma “propagação de uma agenda progressista avessa às bases de nossa civilização e às aspirações da maioria do nosso povo”. A arte, segundo o secretário, fazia parte durante 20 anos de um “projeto absolutista” e “instrumentos centrais de doutrinação” por governos de centro e de esquerda no Brasil.

Alvim insiste que tudo isso acabou. Com a eleição de Bolsonaro, “os valores ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade encontraram uma nova atmosfera”. Em seu texto, porém, uma frase revela que a preocupação não é estética. “Estamos comprometidos com a redefinição da identidade e da sensibilidade nacionais, em consonância com os valores e os mitos fundantes de nossa nação”, disse.


A redefinição da identidade, portanto, passa por apagar traços de uma certa cultura indesejada, ignorar uma periferia historicamente abandonada, silenciar a rebeldia. Em seu lugar, Alvim foi explícito: “vamos promover uma cultura alinhada às grandes realizações de nossa civilização judaico-cristã”. Essa sim, a base da “edificação de nossa civilização brasileira”.

Loucura para alguns, delírio para outros. Mas, entre membros do Governo, não há nada de irracional em sua fala. O que existe claramente é uma estratégia de destruição e da substituição de uma realidade por uma ideologia com fortes traços de intolerância. O termo “Judaico-cristão” para um país miscigenado não surge por um deslize num discurso da sede da Unesco. No Itamaraty, o chefe da diplomacia também passou a usá-lo. E, não por acaso, entrou no novo dicionário alucinógeno de Brasília inspirado pelo projeto de poder de Steve Bannon. O termo faz parte de um dos pilares da estratégia do ex-conselheiro de Donald Trump. Mas ele não vem sozinho e nem acontece no vácuo. Para que essa cultura seja “resgatada”, é preciso que um governo limite o fluxo de pessoas que entram no país.

E é nesse contexto que se introduz a obstinação pelo nacionalismo, pela soberania e pelas fronteiras. “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” é simplesmente uma tradução dessa estratégia que, para existir, precisa atacar diariamente o pluralismo, igualitarismo e secularismo. Não é por acaso que, ao longo de meses, o Itamaraty também vem promovendo uma destruição dos parâmetros de direitos humanos e do pluralismo na família ou no ser humano. Existe, para a diplomacia nacional, apenas homens e mulheres. Família é no singular e não há espaço para a criação de novos direitos. Para isso, o governo não mede esforços para rever o posicionamento do Brasil no mundo e até questionar o direito internacional.

Uma vez mais, o projeto é claro: destruir o que existia antes, romper consensos históricos em textos internacionais, abrir brechas, criar divisões para que conflitos de percepções se instalem e, assim, reconstruir uma “nova sociedade”. Em Brasília, sinais dessa destruição também podem ser vistos quando o Palácio do Planalto opta por ignorar de forma consciente o Dia da Consciência Negra. Ou quando silencia diante de um ato de vandalismo deliberado por parte de um deputado.

Também vimos a erupção de comentários monarquistas por membros do Governo, no dia da República. Uma vez mais, nada ao acaso. A história, ao ser revista, questionada, profanada e confundida, é a receita para a transformação de um futuro manipulado.

Desmontar o sistema também passa por romper até mesmo com os veículos que permitiram a chegada ao poder de Bolsonaro, como o partido de aluguel conhecido como PSL. Em seu lugar, surge uma formação que sequer se dá ao trabalho de incluir as palavras “democracia” e “república” em seu manifesto.

Sua milícia digital age exatamente da mesma forma, recriando de maneira virtual a “Polícia do Pensamento” (thinkpol) de George Orwell. Não existem para propor políticas. Mas para, de forma consciente, criar confusão, desinformação e polêmicas. A meta? Romper o tecido social, enfraquecer uma democracia já fragilizada, romper laços familiares, amizades e alianças.

E, em seu lugar, construir um novo modelo distante das bases fundamentais do respeito ao diverso. Um sistema em que ganha vida o “crime de pensamento” do mesmo Orwell. Em março, em sua primeira visita aos EUA, Bolsonaro avisou: seu Governo seria o da destruição. Um ano depois, o plano está sendo meticulosamente implementado.

Também durante este ano, a resistência se mostrou viva e o projeto de civilização da extrema direita sabe que conta com desafios. Mas, parafraseando Antonio Gramsci, enquanto o velho mundo agoniza e um novo mundo tarda a ver a luz do dia, “irrompem os monstros”. Conscientes, determinados, financiados e altamente organizados.
Jamil Chade