quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

E isso pode?

Em 9 de junho de 2017, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso afirmou que o Estado brasileiro é “rancoroso e vingativo” e que o frigorífico JBS tenderia a sofrer retaliações após um dos seus sócios, Joesley Batista, haver denunciado o presidente Michel Temer de participação num esquema de corrupção.

De junho de 2017 até hoje os fatos comprovam que Luis Roberto Barroso anteviu e anunciou o que aconteceria e aconteceu mesmo. No início de setembro de 2017, não aguentando a pressão de um “Estado vingativo”, o procurador-geral Rodrigo Janot anulou a imunidade penal que foi negociada por ele aos executivos da JBS. Ao convocar a imprensa para anunciar perda da imunidade penal, Rodrigo Janot disse que obteve gravações que considerou “gravíssimas e que envolveriam o Supremo Tribunal Federal”

Os irmãos Batistas foram presos à jato a pretexto de terem usado informações para se beneficiarem com a compra de dólares e a venda de ações da JBS, aproveitando-se do impacto no mercado provocado por seu acordo de delação premiada com o Ministério Público Federal. Este foi um caso sem precedentes no Brasil. Não se conhece caso parecido, prisão por uso de informações privilegiadas.

0s irmãos Batistas sofreram um ataque de denúncias, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), da Receita Federal, etc..

Só na CVM que a tudo assistiu e deixou o roubo gigantesco ocorresse na Petrobras sem nada ter feito, quando os executivos da JBS denunciaram Michel Temer “acordou” e abriu 13 processos contra o grupo JBS. 13!!!

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Rodrigo Janot agora está as voltas com a PF. Foi chamado para depor em inquérito aberto a pedido da ministra Carmem Lucia. Isso tudo apenas por ter homologado a delação premiada que incriminou o presidente da Republica e fez insinuações contra o STF. Quem duvida que Janot vai de danar? Colocaram a PF no seu pé. Com a policia em seu encalço, tudo indica que Janot não faz parte do club privé os intocáveis que nunca cumprem penas no Brasil

Não vimos até agora nenhuma delação que atinge o judiciário e tem gente querendo denunciar. Regis Fitchner, ex-secretário da Casa Civil de Sergio Cabral, tinha antecipado que pretendia fazer uma delação premiada e “contar casos sobre o Judiciário”. Foi solto num piscar de olhos.

Antonio Palocci, que também negocia uma delação premiada ,que nunca fecha, antecipou que iria delatar o Judiciário e a troca de decisões por promessa de nomeações. Palocci já antecipou que o ex-presidente do STJ Cesar Asfor Rocha recebeu suborno de R$ 5 milhões da construtora Camargo Corrêa para anular a operação Castelo de Areia, uma prévia da Lava Jato. Palocci, como foi publicado, disse que o acerto com Asfor Rocha foi comandado pelo ex-ministro da Justiça de Lula Márcio Thomaz Bastos e incluía também a promessa de apoio para que o então o magistrado fosse indicado para uma vaga no STF. Ao que tudo indica, vai ser difícil fechar essa delação.

Ou seja, Barroso tinha razão: o Estado é vingativo. E isso pode, Arnaldo?

Mantendo a virgindade

O Secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano disse ao Valor do fim-de-semana que são 29,8 milhões os aposentados do INSS mas que se a reforma for aprovada nos termos a que está reduzida apenas 9,5% – entre eles o grosso daquela fatia do funcionalismo federal que segue o padrão salarial de Wall Street – “teriam a sua renda afetada em mais de 1%”. A regra de transição é escandalosamente lenta para o tamanho do incêndio que se propõe amainar. A idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres só começaria a se alterar a partir de 2020 e só estaria valendo plenamente em 2038. Quase nenhum dos privilegiados vivos (posto que só a “nobreza” que tem 100% dos proventos da ativa realmente se aposenta no limite de idade de hoje) seria afetado. E, por consequência, nenhum miseravel também. Permaneceria praticamente intacto do começo ao fim desse caminho, portanto, o vasto favelão nacional cuja raiz é diretamente irrigada por essa sangria desatada.

Mas esse pormenor não diminui um milímetro a intransigência da nossa privilegiatura. “Sacrifício” e “contribuição” para o esforço de salvação nacional são palavras que não constam dos dicionários do Planalto Central mas esses 1% num prazo de 20 anos não se enquadram nessas categorias. A questão, aqui, não é de perda de qualidade de vida nem muito menos de sarcifício. É de perda de virgindade. É a criação do precedente que os aterroriza. Ceder a migalha que for da montanha de “direitos adquiridos” empilhados em cima da qual se refestela a fera pode expor o tigre de papel que devora o Brasil como o que é.

Vai que o país acorda!


De todos os aposentados do Brasil, lembra o secretário, 60% recebem 1 salário mínimo. Os “direitos” dessa ralé e de todo o resto da sub-ralé que, multiplicada por 29,8 milhões de vezes custa o que custam as 980 mil “excelências” para a previdência, podem ser alterados por lei ordinária ou até por Medida Provisória. A presente reforma só tem de passar por Projeto de Emenda Constitucional (PEC), que requer quorum especial, para poder incluir esse milhãozinho de funcionários cujos direitos previdenciários estão inscritos nessa constituição que só por exclusão é a “dos Miseráveis” deste país onde, em pleno Terceiro Milênio nada, das prisões para cima, é igual para nobres e para plebeus.

Mesmo assim, fato é fato, até o providencial evento estrelado pela dupla Janot & Joésley da véspera da votação de 18 de maio de 2017, a reforma da previdência, por todas as contagens, ia passar no Congresso Nacional. E isso depois que uma maioria de deputados e senadores, um por um declinando seu nome e suas razões diante das câmeras da rede de televisão que os ameaçava de fuzilamento sumário, votou a favor da reforma trabalhista no primeiro horário nobre sem novela de que ha memória neste país. E o mesmo estava marcado para acontecer com a previdenciária. É tão negra a alma que se requer para continuar indiferente à chuva de balas perdidas e balas acertadas que implica não abrir mão desse 1% que já nem no Congresso Nacional, onde todos fazem jus aos privilégios visados, é possivel encontrá-las em numero suficiente.

Junto com o outro poder eleito, o Legislativo é sempre quem acaba recebendo toda a carga da cobrança pela desgraça nacional. Mas relevadas as figuras teratológicas que lhe fazem a fama e considerada apenas e tão somente a sequência dos acontecimentos desde a aprovação no voto da cláusula de barreira (1995) depois também derrubada pelo STF (2006), não se sustenta a acusação de que é ele quem barra as reformas sem as quais o Brasil não sai dessa sua anacrônica idade média. Sistematicamente, tem havido quem faça e quem desfaça para impedir todo e qualquer avanço institucional. E eles estão sempre nos mesmos lugares.

O fato presente em todas as mentes mas que os brasileiros dificilmente trazem à boca ainda é que nós estamos em plena vigência de uma forma mal camuflada do “excesso de democracia” bolivariano onde a vontade expressa do povo pode ser anulada e cassados os seus representantes eleitos ao arrepio da lei ao bel prazer de meia duzia de tiranetes. A terceirização das culpas para as próprias vitimas, o povo que “não sabe votar” basicamente porque não permitem que mudem as regras que o obrigam a votar como vota, só se torna possivel pelo viés sistemático com que trata esses acontecimentos a parcela das mídias de massa mais claramente embarcada nesse jogo de interesses inconfessáveis.

Alimentar qualquer ilusão a esta altura é suicídio. A festejada “recuperação da economia” não passa, por enquanto, de especulação em cima de uma expectativa de mudança cuja probabilidade real foi mais exatamente medida pela desclassificação do Brasil pela Standard & Poors que pela fervura da bolsa de valores, de resto doentia nesse paroxismo cheirando a Baile da Ilha Fiscal em que anda. Cinco estados não conseguiram pagar o 13º salário de 2017 e a maioria dos demais está na ponta da prancha para o mergulho. A pré-estréia do que vem vindo foi dada pelas polícias sem soldo deixando o crime rolar. Está caindo a ultima barreira antes do nada enquanto os “camisas pardas” do PT e profundezas são abertamente atiçados contra a parte sã do poder judiciário que, de Curitiba para cima, se tem mantido, por assim dizer, em claro “desafio atitudinal” à outra.

O Brasil só se começará a curar quando armar os eleitores dos instrumentos necessários para fazer com que finalmente se imponha a regra da maioria. A receita é conhecida: despartidarização das eleições municipais e eleições primárias para a remoção dos velhos caciques políticos, iniciativa para a apropriação da pauta nacional por quem tem o direito legitimo de defini-la, recall e referendo para impor a vontade dos eleitores aos seus representantes eleitos. Mas para que se torne possível sonhar com esse futuro é preciso antes impor a lei a quem a desafia com a força que se mostrar necessária e restabelecer os limites dos tres poderes, sem o que naufragamos já.

Os loucos e o poder

A discussão sobre a saúde mental do homem mais poderoso do mundo é algo novo para mim. Mas o tema associando loucura e política certamente apareceu em muitos momentos da História. Nos tempos mais recentes, sempre foi mais comum uma discussão sobre a saúde física. No caso de Franklin Rooosevelt, o que estava em jogo era sua mobilidade, algo aparentemente superado nos dias de hoje: a cadeira de rodas não é um obstáculo intransponível.

A questão da loucura apresenta dificuldades: como definir que uma outra pessoa é louca contra a vontade dela, sobretudo quando ocupa o cargo político mais importante do planeta?

O debate sobre a saúde mental de Trump se acentuou com o lançamento do livro “Fogo e fúria”, de Michael Wolff. Os argumentos que tenho lido não me convencem de que Trump é louco. Às vezes detêm-se em análises de gestos simples como levantar um copo de água, sem considerar que certas hesitações se devem mais à velhice do que à loucura.

A disputa com Kim Jong-un sobre quem tem o botão maior, embora infantil na boca de um presidente, expressa uma tendência à competição onipresente em inúmeras atividades humanas.

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No tempo em que Stalin dominava a União Soviética, muitos opositores foram mandados para o hospício. Era algo bastante temido, sobretudo entre intelectuais. O regime comunista não só monopolizava o poder como também se sentia em condições de monopolizar a razão. Ser de oposição era sintoma de uma doença mental. Numa sociedade democrática deve haver alguns protocolos, inclusive para uso da Justiça, determinando se a pessoa cruzou ou não a fronteira da sanidade. Quando se trata de algo tão político, é evidente que se formem duas grandes correntes, cada uma desconfiando abertamente da imparcialidade científica da outra.

Não tenho condições de afirmar se Trump é louco ou não. Outro dia, em Porto Alegre, um jovem me fez uma longa e complexa pergunta, concluindo: acha que estou louco? Quem sou eu para dizer que uma pessoa está louca, respondi. Tenho dúvidas a respeito de mim mesmo. No passado, Francisco Nelson, um grande amigo do exílio, sempre me confortava: tudo bem, você está lúcido.

Chico Nelson morreu de enfarte. Desde então, dedico-me a responder sozinho e falta energia para julgar os outros.

Mesmo para quem vive num país surreal como o Brasil, é estranho ver dois líderes mundiais trocando insultos, e Trump dizendo que tem um botão maior que o do outro.

Às vezes acho que discussão sobre a saúde mental de Trump mascara outra mais delicada: até que ponto ele representa a normalidade estatística, até que ponto o que está em jogo não é a sanidade da própria sociedade americana?

Ainda assim, restaria a dúvida sobre o é que normalidade nos dias de hoje. Antigamente, em Minas, um ditado popular tentava fixar a fronteira entre loucura e lucidez: é louco mas não rasga dinheiro. Que sentido tem essa fronteira numa sociedade consumista? Até que ponto a ostentação dos bilionários não é um rasgar dinheiro com base na realidade? Muitos de nós se lembram que loucura e poder estão associados de tal forma que, num dos clichês das comédias do passado, o louco aparecia sempre dizendo que era Napoleão Bonaparte.

Melhor, no exame dos atos de Trump, é analisar um a um, não sob a ótica da saúde mental, mas de sua eficácia política.

Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. É um cético quanto ao aquecimento global. A dúvida dele a respeito de evidências que nos parecem esmagadoras tem consequências políticas. Uma delas é abrir espaço para que China tente ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, e a França recupere um pouco de sua grandeza perdida.

Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental.

Na atual fase do capitalismo, o entretenimento de milhões de pessoas tornou a indústria da diversão tão importante que tendem a surgir dela os nomes mais viáveis para liderá-la.

O próprio Trump usou a indústria da diversão para ampliar sua popularidade e, agora, utiliza o Twitter como seu programa particular.

Não nego que os critérios de sanidade e loucura ainda são importantes e mobilizam milhões de profissionais dedicados a, pelo menos, atenuar o sofrimento humano.

Transplantados para a política, esses critérios talvez não tenham a mesma validade. Minha suspeita é de que na luta cotidiana para espantar o tédio, a excentricidade torne-se uma espécie de capital para os candidatos ao poder.

Trump é um sintoma de algo bem mais sério e bem mais louco do que podemos imaginar. Aceitar essa premissa é incômodo mas nos aproxima da realidade. Não foi por acaso que, depois da Segunda Guerra Mundial, os intelectuais se voltaram não para dissecar a psicologia de Hitler, mas para se investigar o que havia na sociedade alemã para tornar possível sua liderança.

São outros tempos, mas, creio, a tarefa ainda é a mesma.

A era da insensatez

Possivelmente demore anos. Provavelmente décadas. Mas um dia acontece. A poeira sempre baixa. E quando a poeira destes dias baixar, talvez haja poucos motivos para orgulho. É que quase certo que nossos tempos não serão conhecidos como época de equilíbrio e razão.

Convenhamos que equilíbrio e razão não tem sido as características mais marcantes dos últimos anos. E, pior, provavelmente continuarão ausentes no horizonte previsível. Acostumamos com a irracionalidade e falta de civilidade. E não parece existir ou pelo menos a gente não enxerga, outra maneira.

E parece ter piorado muito com o crescimento das mídias sociais. Todo mundo fala de tolerância, inclusão, respeito, e de muitas outras aspirações. Mas na hora da pratica, abraçamos com entusiasmo os apedrejamentos públicos, coletivos e sumario. Se é que já houve algum dia, não existe espaço para equilíbrio na mídia social.

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Espanta a rapidez com que multidões se formam para apedrejar supostos vilões por coisas que talvez tenham feito. Ninguém mais tem tempo para considerar (ou tentar) contexto, fatos, circunstancias.

O julgamento é sempre sumario. Dispensa evidencia, racionalidade ou equilíbrio. Parecer politicamente incorreto é a única exigência para a condenação, as vezes definitiva, mas sempre pública. Uma frase infeliz é o que basta para um bom apedrejamento. Nas mídias sociais, punição e humilhação pública são entretenimento para as massas.

Depois de lutar séculos por liberdade de expressão, crença e opinião, o mundo parece agora estar condenado a medir precisamente tudo o que fala, escreve ou diz. Teclados e línguas devem nestes tempos funcionar como fitas métricas. Sem direto a margem de erro.

Proibir expressão não impede o pensamento. Não se combate intolerância com mais intolerância. Qualquer possibilidade de diálogo ou mudança de opinião desaparece. A razão morre. E o ressentimento floresce, escondido da vista de todos.

E aí mora o perigo. De uma forma ou outra, ressentimento abafado acumulado tende a se manifestar através de decisões sobre as opções disponíveis. E nestes tempos onde as opções disponíveis são questionáveis, o risco da escolha errada é imenso. E talvez inaceitável. Ou mesmo inacreditável. É tudo o que dá para esperar da era da insensatez.

Gente fora do mapa

Idílico, Varanasi, Índia
Varanasi (ìndia)

As ilusões sobre o destino de Lula

À medida que se aproxima a data do julgamento de Lula perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, vejo os mais variados questionamentos sobre se o ex-presidente deve ou não ser punido. Independentemente do meio social, do grau de escolaridade, da ligação orgânica ou não com o PT, muita gente se pergunta se é séria a possibilidade de condenação de Lula. Daí advêm condições para que o próprio réu divulgue a versão de estar sendo vítima de perseguição de juízes e do Ministério Público Federal, que não aceitam que um pobre, vindo lá dos grotões, tenha conseguido ser presidente e, mais que isso, “o cara” que tanto realizou em favor dos pobres e miseráveis do país...

Há de tudo: versões histéricas convivem com o cinismo dos que pregam que aos poderosos tudo é devido. Há narrativas singelas que comparam a montanha de dinheiro de Geddel Vieira Lima, ou as extravagâncias exibicionistas de Sérgio Cabral, ou o apartamento da avenida Foch, supostamente de FHC, em Paris, com a modéstia de um apartamento triplex, do qual a família nem tomou posse, ou de um sítio de pequeno porte, em nome de terceiros, passando pelo apartamento vizinho ao de moradia do ex-presidente e que lhe seria devido para nele serem abrigados os seguranças a que tem direito.


Alguém me criticou, alegando o caráter classista do direito, que procurei demonstrar num pequeno opúsculo, publicado em 1986.

Pois é, em nome desse mesmo caráter classista da sociedade em que vivemos é que avalio as agruras pelas quais Lula passa. Conseguiu atingir a Presidência do país e a maior popularidade alcançada por alguém nesse posto – mas ele teve o governo, não o poder, e por isso não lhe era dado o direito de achar que seria agraciado com a condescendência. Lula deixou-se encantar pelos agrados dos ricos – aliás, já o fizera como sindicalista, nas reuniões mantidas com os patrões em São Bernardo do Campo, como revelou Elio Gaspari. Ou suas relações promíscuas com Roberto Jefferson, a quem ele daria “um cheque em branco”, ou com José Múcio Monteiro (ex-PFL, depois bandeado para o PTB do mesmo Jefferson), a quem fez ministro de Relações Institucionais e que nomeou para o TCU. Até Sarney ele elogiou e prestigiou por não ser uma “pessoa comum”... Deu sopa, vale o “dura lex sed lex!”.

A lei não distingue o montante de quem, como administrador público, goza de vantagem indevida ou mesmo apenas aceita promessa de obtenção de tal vantagem (art. 317 do Código Penal em vigor). Exatamente pelo caráter de classe do direito, as prisões vivem superlotadas de pretos, pobres e prostitutas que sequer tiveram o direito de espernear diante de uma condução coercitiva e que são sempre encarcerados preventivamente e daquelas masmorras não escapam jamais.

Porque não acredito em tratamento igual aos desiguais é que não compartilho de ilusões sobre o destino de Lula.

A não ser que nele vejam alguém mais confiável que qualquer um para continuarem a dominação que desgraça o país. Isso, sim, é perfeitamente possível.

Quem sabe, sabe

A dias de ter seu destino selado pela Justiça, o ex-presidente Lula vai jogar sua última cartada para a galera, recrudescendo o grau de ira de seu discurso. É verdade que não falta mais ninguém para ofender — o próprio juiz Sergio Moro já foi chamado por ele de parcial, ilegítimo, mentiroso, czar e até de surdo. E sua ladainha contra a “burguesia loura e de olhos azuis” teve de ser posta de lado quando se percebeu que seu advogado é louro e de olhos azuis — tal como, aliás, a falecida dona Marisa.

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Será o confronto final entre seu discurso triunfalista de que, por falta de documentos, nunca poderão provar que ele era dono de sítios e triplexes, e a constatação óbvia de que ninguém passa recibo por malfeitos. O outro argumento, dirigido aos desinformados do exterior, de que não lhe dão direito de defesa, não pode ser usado aqui diante das dezenas de recursos dirigidos por sua defesa à Justiça e da repetida convocação de testemunhas para ilibá-lo — segundo José Simão, nem Jeová teve tantas testemunhas quanto Lula.

Será interessante também assistir, nos próximos dias, à campanha da ex-presidente Dilma Rousseff pregando que os inquéritos visam apenas impedir que Lula volte à Presidência. Supondo que seja verdade, nada disso estaria acontecendo se, ao fim de seu mandato em 2014, ela tivesse aberto mão de sua candidatura à reeleição e devolvido a vaga a Lula — como ficara combinado que aconteceria quando ele a inventou como candidata em 2010.

Donald Trump, presidente dos EUA, chamou há pouco o Haiti e os países africanos de “países de merda”. Lula não precisou ir tão longe — chamou o próprio Brasil de país de merda. “Este país não nasceu para ser a merda que é”, ele disse em Feira de Santana, na Bahia, no dia 20 de agosto do ano passado.

Quem sabe, sabe.

Zorra total na Praça dos Três Poderes

É muito dura a vida de um presidente fraco. Michel Temer apanha pelo que faz, pelo que não faz, e pelo que possa ou não fazer. Apanhar da oposição é ficha jogada. Todos os presidentes apanham. Afinal, ela existe para bater. Se não bate não vira governo.

Temer, porém, apanha dos próprios aliados. De uns porque acatou a recomendação do Banco Central de afastar quatro vice-presidentes da Caixa Econômica. De outros porque demorou a afastá-los. De outros ainda porque não afastou de uma vez os 12 vice-presidentes.


Sim, a Caixa tem um presidente e 12 vice-presidentes. Teve menos quando havia menos partidos. Todos, presidente e vices, foram indicados por partidos ou políticos em voo solo que não sabem viver longe dos cofres públicos. Ou melhor: de cofres em geral.

Foi o Ministério Público Federal que pediu o afastamento de quatro vice-presidentes da Caixa investigados por falcatruas. Temer não ligou. Só ligou quando o Banco Central o advertiu: ou afasta ou poderá ser responsabilizado pelo o que eles fizeram ou ainda façam.

Fogo e fúria desabaram sobre Temer às voltas com a aprovação de uma reforma improvável (a da Previdência). Os partidos que bancavam os quatro vices afastados já avisaram que não abrem mão das vagas e que em breve indicarão outros nomes.

Os partidos donos dos oito vice-presidentes restantes amaldiçoaram Temer por não ter resolvido o problema antes. Deixou que ele se arrastasse até dar ensejo a uma crise. O deputado Fábio Ramalho (PMDB-MG), amigo de Temer, cobra a demissão sumária dos oito.

A face pública da zorra instalada na Praça dos três Poderes, em Brasília, até poderá ser sepultada se amanhã, como previsto, o Conselho de Administração da Caixa subtrair a Temer a atribuição de nomear e de exonerar os dirigentes da instituição.

Mas a face oculta permanecerá oculta e viva. Temer não terá paz até que compense as perdas contabilizadas pelos partidos queixosos.

Doce Marilyn

O medo ambiente

Um dos fatores de mal-estar na sociedade é o chamado “medo ambiente”. É um fenômeno do mundo contemporâneo, decorrente das mudanças geopolíticas, tecnológicas e econômicas, mas no Brasil ele tem a ver também com o atraso e as desigualdades. Isso faz com que as incertezas do tempo presente sejam agravadas pelas certezas do tempo passado. No mundo mais desenvolvido, houve uma troca consciente e individualista da segurança pela liberdade a partir da relação dos cidadãos com o Estado e o conjunto da sociedade. As utopias coletivas e as ideologias se esfarinharam.

Na periferia do mundo, a situação é diferente. O mundo socialista que protagonizou a guerra fria não existe mais. A China, o Vietnã, a Coreia e Cuba continuem sendo ditaduras comunistas, mas os dois primeiros estão plenamente integrados à economia mundial; enquanto os últimos mantêm-se em cena como heranças da guerra fria, para alegria dos falcões dos Estados Unidos, de Donald Trump. E o que seria o terceiro mundo agora é o segundo; sua periferia exporta uma crise humanitária para o primeiro mundo, que é o grande responsável pela desordem na nova ordem mundial. O choque de civilizações, no plano religioso, completa o cenário, levando o terrorismo paras capitais mais protegidas do mundo. O “medo ambiente” está em toda parte.

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No Brasil, ele tem identidade nacional. Por exemplo, a urbanização acelerada teve como consequência a favelização nas grandes cidades; ao mesmo tempo, essas “comunidades” estão conectadas virtualmente com o moderno, enquanto fisicamente continuam presas ao atraso. O que vai resultar disso aí é uma incógnita, mas o saldo atual dessa mistura de modernização com iniquidade social é a violência cotidiana. Às incertezas subjetivas se soma o temor físico de perder a própria vida. O Rio de Janeiro que o diga.

O medo é uma variável importante do processo eleitoral de 2018. Ele está sendo retroalimentado pela radicalização política. As declarações da presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), sobre o julgamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 24 de janeiro, em Porto Alegre, são um belo exemplo dessa tendência. “Para prender o Lula, vai ter que prender muita gente, mas, mais do que isso, vai ter que matar gente. Aí, vai ter que matar”, afirmou. Trata-se obviamente de um arroubo de oratória, como se dizia antigamente, mas é o tipo de discurso que revela um desejo. Ainda bem que não corresponde à correlação de forças políticas existente.

Gleisi está no cargo por indicação de Lula, para quem a retórica agressiva da senadora petista é uma mão na roda para politizar o julgamento e desqualificar a Operação Lava-Jato. Segundo ela, se a sentença do juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal em Curitiba, for confirmada pelo TRF-4, significará que “eles (os juízes) desceram para o ‘play’ da política”. A arrogância da presidente do PT não tem limites: “No ‘play’ da política nós vamos jogar (…) E vamos jogar pesado”. Como ela própria é uma das enroladas na Lava-Jato, pode ser que sua agressividade seja também resultado do medo de ser condenada.

Aliás, há motivos de sobre para isso. Ontem, o Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal pediu a condenação dos ex-deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) à Justiça Federal na ação penal que investiga desvios no Fundo de Investimentos do FGTS (FI-FGTS), administrado pela Caixa Econômica Federal. Para Cunha, pediu pena de 386 anos de prisão por crimes de corrupção passiva e ativa, prevaricação (crime contra a administração pública) e lavagem de dinheiro; para Alves, 78 anos por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Os dois políticos estão presos e são investigados em várias frentes. Ambos negam as acusações.

Depois de tentar empurrar a situação com a barriga, o presidente Michel Temer determinou o afastamento de quatro dos 12 vice-presidentes da Caixa Econômica por 15 dias: Antônio Carlos Ferreira (Corporativo); Deusdina dos Reis Pereira (Fundos de Governo e Loterias); Roberto Derziê de Sant’Anna (Governo); e José Henrique Marques da Cruz (Clientes, Negócios e Transformação Digital).

Acatou recomendação do diretor de Fiscalização do Banco Central, Paulo Sérgio Neves de Souza, à secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, em razão da suspeita do envolvimento deles em irregularidades. Ela é a presidente do Conselho de Administração do banco. Em dezembro, o Ministério Público havia recomendado a saída dos 12 vice-presidentes da Caixa, mas a Casa Civil e a Caixa decidiram não acatar a sugestão.

Os dois episódios são uma demonstração de que a Operação Lava-Jato estava no freezer por causa do recesso, mas não foi congelada. A reação dos políticos é buscar a blindagem no Congresso e a redenção nas urnas. É a estratégia de Lula, que tenta desmoralizar a operação e explorar o medo da população em relação às reformas do governo Temer, principalmente a da Previdência, para voltar ao poder. O problema é que a maioria da sociedade também tem medo da radicalização e discorda da retórica de confronto do PT. O medo é multifacetado.

A primitiva infâmia

Desde que se cumpram certas cerimônias ou se respeitem certas fórmulas, consegue-se ser ladrão e escrupulosamente honesto - tudo ao mesmo tempo.
 
A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia. O interesse e a religião, a ganância e o escrúpulo, a honra e o interesse, podem viver na mesma casa, separados por tabiques. Agora é a vez da honra - agora é a vez do dinheiro - agora é a vez da religião. Tudo se acomoda, outras coisas heterogêneas se acomodam ainda. Com um bocado de jeito arranja-se-lhes sempre lugar nas almas bem formadas 
Raul Brandão, "Húmus"

Perdidas ilusões

Estes últimos dias antes do julgamento decisivo do Tribunal Regional Federal de Porto Alegre sobre a sentença que condenou o ex-presidente Lula a nove anos e meio de prisão por corrupção têm sido uma coisa triste. Não que se esperasse nada de melhor por parte do réu e da multidão de advogados nervosos, militantes frustrados, palpiteiros, puxa-sacos e o resto dos habitantes do seu sistema ecológico atual. Esperar como, se o comandante supremo teve a ideia (que muita gente achou genial) de tentar transformar o juiz do processo em réu, e o réu em juiz? Jamais poderia resultar algo de bom de um negócio desses ─ e obviamente não resultou. Lula e o seu exército nunca levaram a sério a ação penal movida contra ele, achando que jamais “este país” se atreveria a encará-los. Desprezaram, desde o início, o processo legal. Acharam-se capazes de intimidar o juiz Sérgio Moro e o MP, como intimidam um tucano qualquer desses que voam por aí. Ameaçaram, sabe-se lá quantas vezes, entrar em guerra contra “eles”, parar “este país”, levar para a rua suas tropas de sem-terra, sem-teto e sem ocupação. Quando perceberam que não iam ganhar no grito, tempos atrás, já não havia mais o que fazer. Esses são os fatos. Agora, com o desfecho à vista, não lhes ocorre outra ideia que não seja gritar mais, ameaçar mais e insultar mais do que têm feito. Conseguem apenas parecer ainda mais desequilibrados.

A presidente do PT, por exemplo, fala em “derramamento de sangue”. Um senador do partido diz que Lula é o nosso “Nelson Mandela” ─ não diz uma sílaba, é claro, sobre o detalhe de que Lula teve as máximas garantias da lei para se defender, e que foi condenado por recebimento de propina. Promete-se, todos os dias, multidões em Porto Alegre e no resto do Brasil para “impedir” a execução da sentença.

A mídia, em peso, reproduz a sua oração oficial, segundo a qual Lula é vítima de um “processo político”. Mas não vai acontecer no país real o cataclismo anunciado diariamente, nem “as ruas” vão impedir que a decisão judicial seja executada. Por acaso Lula e o PT vão conseguir colocar 500.000 pessoas na Avenida Paulista para protestar contra o veredito do TRF-4? Por acaso no dia seguinte as fábricas, lojas e demais pontos de trabalho estarão vazios por força de uma greve geral em todo o país? Por acaso Lula vai fazer um comício monstro no dia 25 ─ ou, como se diz, estará viajando para o estrangeiro? São, como na velha canção, apenas as “perdidas ilusões” de sempre.

Tudo isso serve apenas para que nossos mais reverenciados liberais, as reservas morais da sociedade brasileira “civilizada”, tenham a oportunidade de fingir que acham chato que Lula, caso acabe realmente condenado, não dispute as eleições de 2018. Que pena, não é mesmo? Seria tão bom ele concorrer e perder. As eleições seriam tão mais “legítimas”. Tudo ficaria tão bonito. O New York Times acharia tão bacana. Trata-se de uma combinação de hipocrisia com mania de desrespeitar a lei. Não cabe a ninguém achar “melhor” ou “pior” que Lula seja ou não seja candidato. Não é uma questão de opinião. É unicamente uma questão de justiça.

Imagem do Dia

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Machado de Assis e a 'contaminação da loucura'

Transmitir um quadro de loucura de uma pessoa para outra era algo impensável para a medicina da época (fins do século XIX)
Marcel Verrumo

Em 2017, a editora Planeta lançou um curioso livro História Bizarra da Literatura Brasileira, de Marcel Verrumo, jornalista e mestre pela UNESP em Comunicação. O autor dedica-se também a escritos e livros sobre Literatura.

No capítulo 23 há um pequeno ensaio chamado Machado de Assis, o escritor que descobriu que a loucura é contagiosa.

Interessante questão, pois o “Bruxo do Cosmo Velho”, como Drummond chamava Machado, sempre se dedicou em seus contos, crônicas e romances, à apreensão da realidade psíquica, tendo inclusive um belo conto, O espelho – uma nova teoria da alma. Machado, um dos maiores ícones da nossa literatura, citado inclusive por Harold Bloom em seu livro Cânone Ocidental, foi um guerreiro, suplantando preconceitos raciais e suas condições de epiléptico.

Mas, o sofrimento é a veia por onde caminham as grandes inspirações e insights sobre a existência humana, seus prazeres e principalmente suas dores. Thomas Mann e Nietzsche sempre enfatizaram que “a doença” é libertadora, pois descomprime os recalques e, caso a pessoa seja um “gênio”, elabora seus conflitos em forma de criação literária e artística. Machado, segundo Marcel Verrumo, não só se antecipou ao famoso diagnóstico psiquiátrico de “Folie à deux” como também a propostas de seu tratamento.

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Ilustração de Portinari para "O Alienista"

Vale a pena ler o conto sobre essa questão O anjo Rafael (1869), e se deliciar com a sensibilidade e capacidade do “Bruxo” para entrar em contato com a “loucura de todos nós”. Nesse conto fica clara a ideia machadiana de que “a loucura é contagiosa”. A famosa psicanalista Melanie Klein, em seus trabalhos, tem um conceito que ela chamou de “Identificação Introjetiva”, ou seja, a capacidade que uma pessoa tem de tomar para si aspectos psíquicos do outro, e assim, se identificar. Esse é o barato do conto machadiano, digno de ser estudado e com isso fazer um link, pelo qual me interesso tanto, entre a Literatura e a Psicanálise.

Quanto ao “contágio da loucura”, é bom que se diga, depende das condições psíquicas do contagiado, ou seja, algumas pessoas têm por inconsistência de estrutura egóica, uma necessidade de se espelhar no outro para com isso desenvolver sua personalidade. Diga-se de passagem, que esse é um mecanismo normal, fisiológico na feitura do Ser, mas quando se repete demasiadamente esse mecanismo (identificação introjetiva), o Eu se empobrece e adquire uma dependência extrema da outra pessoa.

Esse fato, a “loucura a dois”, ou a loucura desenvolvida por um grupo humano através das identificações com líderes messiânicos e psicopatas, é um fenômeno visível nos dias de hoje. Atualmente observamos um retorno ao fascismo, à identificação de massas com governos totalitários e “nacionalistas”, inclusive pondo em risco a paz da humanidade.

Estamos regredindo como sociedade dita civilizada, ou estamos revivendo o século XVI e XX com questões ligadas ao “luteranismo” e hitlerismo? A prática do Fundamentalismo é um fato atualizado no presente. Com a desintegração da família, do Estado, dos Institutos da Lei e dos Governos, parece que uma fatia grande da sociedade atual ainda necessita “adorar um líder” face aos perigos advindo da sua insegurança e sentimento de abandono. A angústia existencialista toma a cena nos dias de hoje, e o homem, responsável por si mesmo, abdica dessa função psíquica e também política, de discernir entre uma democracia moderna e uma oferta de totalitarismo fanático e enganoso. Machado de Assis, em seu conto, inclusive, mostra que a cura dessa loucura era o afastamento da “influência” do agente enlouquecedor.

Sou levado a pensar que, uma alternativa atual é o investimento em Educação e Politização dos jovens, coisa que a bendita burguesia e a classe média cruzam os braços. Melhor é o lucro financeiro, o consumo e os meios de produção a serviço da escravidão e perda da liberdade.

Em seu brilhante livro, Thomas Mann, o Artista Mestiço, Richard Miskolci, doutor em Sociologia pela USP, faz uma citação do Doutor Fausto, de Thomas Mann, sintomática aos dias de hoje: “O rompimento dos laços sociais, o qual ocorre como uma desintegração através da doença infecciosa, ao mesmo tempo política. O fascismo intelectual-espiritual abandonando o princípio humano… o recurso à violência, sede de sangue, irracionalismo, crueldade, a negação dionisíaca da verdade e da justiça, o auto-abandono aos instintos e à vida sem limites, o que na verdade é morte e, ainda enquanto vida, apenas trabalho demoníaco, produto da infecção”.

 Carlos de Almeida Vieira

Entramos no Big Brother

Vivemos tempos definitivamente estranhos, muito estranhos. Tempos em que estamos sendo vigiados e julgados o tempo todo. Não demorará muito para nos censuramos até mesmo sozinhos no quarto escuro, com medo de que alguém adivinhe nossos pensamentos e sejamos expostos em praça pública à mercê de todo tipo de opinião.

É assim que assisto hoje a polêmica entre americanas e francesas, entre mulheres que querem continuar sendo paqueradas e outras que não aceitam ser assediadas em seu ambiente de trabalho, no transporte público, na rua ou mesmo dentro de casa. Todas, no fundo, querem a mesma coisa e só estão se expressando conforme encaram a vida. Nem por isso estão sempre certas ou totalmente erradas. Uma polêmica que não nos levará a lugar nenhum, já que antes de lutar pelo mal comum, essas mulheres estão brigando entre si.

Em tempos de tanta exposição, redes sociais, conexão total com o mundo, tudo acaba virando polêmica. E logo os grupos se formam. De um lado o bem, o certo, o nosso. Do outro, o mal, o errado, o dos outros. É assim mesmo que queremos levar a vida daqui em diante? Tudo que você disser poderá ser usado contra você, como diria um policial a um réu que vai prestar seu depoimento.

Fico me perguntando se não estamos perdendo a noção da nossa condição humana. Imagem e semelhança de Deus, só que humana. Ou seja, passível de erro, falha, tropeço. Pode ser leve, médio, grave ou gravíssimo. O fato é que ninguém, nessa condição, poderá dizer em alto e bom som: isso jamais aconteceu comigo.

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Diante de uma Madalena arrependida, Jesus conclamou aqueles que nunca pecaram a jogar a primeira pedra contra a mulher pecadora. Ela sobreviveu. E nós devemos fazer o mesmo. Devemos sobreviver às nossas diferenças e tentar viver com mais tolerância. Não precisamos ser tolerantes com o erro, a corrupção ou nada que nos faça mal. Tampouco podemos agir como juízes o tempo todo ou querer fazer justiça com as próprias mãos.

Respeito talvez seja a palavra chave para encerrar essa polêmica. Se colocar na posição do outro antes de agir, pode ser um começo. Lembrar que o outro tem tanto direito quanto você de pensar o que quiser, de divergir das suas ideias e nem por isso ele é necessariamente uma pessoa ruim ou do mal.

É fácil ter opinião sobre tudo, difícil mesmo é quando você é alvo da opinião alheia. E como costumam ser cruéis as opiniões. Quanta gente se sente no direito de te julgar por uma palavra mal colocada ou errada mesmo. Haja visto o que aconteceu há pouco tempo com o jornalista William Waack, que em apenas três horas depois de ter tido um vídeo vazado na internet foi acusado, julgado e condenado sumariamente pela opinião pública. Um vídeo, um erro e toda uma vida fica enxovalhada para sempre?

Parece que todos nós entramos para uma espécie de Big Brother permanente, o que dá o direito para qualquer um opinar sobre seu comportamento. Dá vontade de gritar, pare o mundo que eu quero descer. Não sou e nem quero ser a dona da verdade e tenho muita preguiça de quem acha que é. Bom senso minha gente, bom senso. É disso que estamos precisando.

Adriana Vasconcelos

E a reforma dos privilégios?

O Estado brasileiro é uma verdadeira “mãe” no que diz respeito à concessão de privilégios. O Brasil, porém, não é uma jabuticaba. Um dos mais influentes líderes da França moderna, Charles de Gaulle, afirmou: “O apetite do privilégio e o gosto da igualdade, eis as paixões dominantes e contraditórias dos franceses, em todas as épocas”.

Uma classe que adora privilégios é a dos políticos. Às nossas custas, isto é, dos cidadãos que pagam impostos, as excelências usufruem de verba para aluguel de carros e escritórios, combustível, passagens aéreas, telefone, cópias, imóvel funcional, divulgação da atividade parlamentar, reembolso por serviço médico prestado em qualquer hospital do país etc. Fazem jus a recesso no meio do ano, enforcam a semana quando os feriados caem na terça, quarta ou quinta e tiram férias em janeiro. Além disso, podem ter um exército de burocratas (ou seriam cabos eleitorais?) à disposição. Os deputados podem ter até 25 assessores e no Senado, o recordista em quantidade de funcionários — o senador do Maranhão João Alberto — tem 84 servidores distribuídos no gabinete em Brasília e no escritório no estado, a maioria comissionados, claro. Não por acaso, o Congresso Nacional custará em 2018 cerca de R$ 29 milhões por dia aos brasileiros.

No Judiciário, a concessão generalizada de “penduricalhos”, na forma de “auxílios” para moradia, alimentação e saúde, fez com que 26 tribunais estaduais de Justiça tenham gasto cerca de R$ 890 milhões em 2017. Com base na publicação detalhada das remunerações, determinada pelo Conselho Nacional de Justiça, o Estadão Dados constatou que 13.185 juízes dos TJs (mais de 80%) tiveram contracheques turbinados por esses benefícios. Por ter caráter de “verba indenizatória”, esses recursos adicionais não são levados em conta no cálculo do teto de R$ 33.763. Em resumo, para o Judiciário, o teto previsto na Constituição virou piso. Vale destacar que o auxílio moradia é pago a magistrados, mesmo quando possuem imóveis próprios nas cidades onde trabalham. Além do que recebem, os juízes têm férias de 60 dias e recesso prolongado na Páscoa. Na esteira dos magistrados vieram promotores, procuradores, conselheiros dos Tribunais de Contas e até do Ministério Público de Contas.

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No Executivo, falam muito em enxugamento, mas existem 33.659 funções comissionadas (incluindo o governo do DF) e 66.725 funções e gratificações técnicas (novembro/2017). Há, pelo menos, duas propostas para restringir a quantidade de cargos em comissão na administração pública(PEC 110/ 2015 e PLS 257/2014), que caminham a passos de cágado no Congresso. Os servidores não querem perder as “boquinhas” e os políticos, os votos. A propaganda sobre a reforma da Previdência vende a ideia do fim dos privilégios, mas deixa fora do debate a aposentadoria dos militares, a mais desequilibrada. As mulheres continuarão a se aposentar com idade menor do que a dos homens e os movimentos feministas não tocam no assunto.

No setor privado, uma boa parte dos privilégios está nos subsídios e nas isenções fiscais, que somam juntos, anualmente, quase R$ 400 bilhões. Os subsídios dispararam de 2007 para 2016, passando de R$ 31 bilhões para R$ 115 bilhões. As isenções fiscais (os chamados gastos tributários) estão estimadas para 2018 em R$ 284 bilhões, beneficiando setores, regiões, categorias empresariais ou mesmo pessoas físicas. Segundo estudo recente do TCU, oito em cada dez desses programas não têm data para acabar e mais da metade (53%) não têm gestor responsável. Os beneficiários, obviamente, não reclamam.

Os contribuintes em atraso criticam a carga tributária, mas também não reclamam dos sucessivos programas de refinanciamento de dívidas (Refis), por meio dos quais a União deixou de arrecadar R$ 176 bilhões em juros e multas nos últimos dez anos.

No momento em que o país tem um déficit primário de R$ 159 bilhões, fazse necessário comprometermos os candidatos a deputados, senadores, governadores e presidente da República com a “reforma dos privilégios”. É claro que não seremos uma Suécia da noite para o dia — país onde congressistas moram em quitinetes, não têm assessores e, como os magistrados, usam o transporte público para ir ao trabalho.

Como em nosso país a sensação de injustiça é generalizada na concepção de um bom número de brasileiros, privilégio é um benefício do qual os “outros” usufruem. No caso pessoal, é sempre um direito adquirido. O pior é que no Brasil, frequentemente, o privilégio é irmão da injustiça e vizinho da corrupção...

Gil Castelo Branco

Paisagem brasileira

Cambona, Roberto Melo

Por que a esquerda brasileira está muda diante da fome que mata crianças na Venezuela?

Acredito que não exista nada mais doloroso do que ver uma criança morrer de fome, principalmente se isso acontece em um país que, como a Venezuela, tem as maiores reservas de petróleo do mundo e se proclama socialista. Não deixa, portanto, de causar estranheza o silêncio da esquerda brasileira diante dessas mortes infantis por falta de comida no país amigo. O Partido dos Trabalhadores quer voltar ao poder com Lula. Tem todo o direito de tentar fazer isso democraticamente, mas antes terá de nos dizer o que pensa sobre o que a imprensa mundial está denunciando a respeito da Venezuela. Semanas atrás, a Folha de S. Paulo escreveu: “A fome persegue a Venezuela há anos. Agora está matando as crianças do país em um ritmo alarmante”. O jornal relata como uma equipe do The New York Times publicou no Natal uma longa investigação realizada durante cinco meses em 21 hospitais de 17 estados venezuelanos em que médicos e enfermeiros confirmaram que as crianças estão morrendo de fome e desnutrição por falta de comida.

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A ONG Provea, defensora dos direitos humanos, denunciou por sua vez, segundo O Estado de S. Paulo, que os venezuelanos mais pobres, diante da crise alimentar em uma economia que, como escreveu o EL PAÍS, “está em coma”, com uma inflação de cinco dígitos, são obrigados a comer uma espécie de salsicha para cães, feita com restos de carne e gordura sem controle sanitário, ou ração para galinhas que serve como substituto do arroz. Lula, que apoiou as campanhas de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, chegou a afirmar que na Venezuela havia “democracia em excesso”. A esquerda brasileira ainda continua pensando assim? O que existe é a fome que mata, enquanto aqui no Brasil o que começa a preocupar é o excesso de peso e a obesidade, que já atingem 53% da população, incluindo as crianças.

É verdade que muitas vezes o grande público, especialmente o menos culto, não se sensibiliza com a falta de democracia em um país e, às vezes, até sente saudade das ditaduras, mas o que não deixa de doer em ninguém é a fome de uma criança. O mundo está vivendo uma guinada para a extrema direita com contornos de novos e perigosos autoritarismos. Mais do que nunca é necessário que a esquerda social, uma vez que a ideológica já perdeu seu sentido, se sensibilize com aqueles que vivem –como na Venezuela– momentos dramáticos, não por não terem papel higiênico, mas porque lá se morre de fome lá. Fechar os olhos a essas tragédias é trair os valores da esquerda sensível ao pranto dos desamparados.

Só quem sentiu na carne o ferrão da fome pode entender o que significa para os pais ter de enterrar seu pequeno morto por falta de comida, como no caso da Venezuela que a Folha conta. Sabem muito bem disso aqueles que conseguiram escapar de um campo de concentração nazista. Um desses sobreviventes, brasileiro, que veio almoçar em nossa casa quis comer apenas o pão que minha mulher havia feito. Ele nos contou que a fome que mastigou no inferno do campo era tanta que, até hoje, sua iguaria preferida é um pedaço de pão. Eu mesmo, que sou um sobrevivente da fome que açoitou os espanhóis durante a Guerra Civil de 1936 e o período do pós-guerra, posso garantir que poucas coisas são tão duras para uma criança como foi para mim e meus dois irmãos ir dormir com fome. Durante muito tempo, e até na idade adulta, sonhava, como um pesadelo, com pão quente saindo do forno.

São lembranças que hoje se aglomeram na minha memória quando leio que na irmã e rica Venezuela existem crianças que morrem de fome ou são forçadas a disputar comida com cães e galinhas. E assim como me machuca a fome delas, me machuca o silêncio da esquerda rica brasileira que, enredada em suas pequenas disputas políticas, não consegue levantar a voz para denunciar essa tragédia. Ou a esquerda ainda pensa que o que sobra na Venezuela é a democracia? O que sobra hoje é o pranto daqueles que não conseguem comida para seus filhos.

Se eu soubesse...

Bebíamos o terceiro ou quarto uísque quando surgiu no infinito horizonte dos nossos copos vazios uma questão burguesa: afinal de contas, o que nos havia tornado humanos? Teria sido a alma dada por Deus essa inventora da consciência e da linguagem articulada - ou o tabu do incesto? Teria sido a proibição de comermos a nós mesmos como tende a fazer a democracia igualitária e o globalismo desenfreado?

Todos falaram, mas eu fiquei com aquele que soltou o seguinte: somos humanos porque temos o condicionante virtual: o “se” da frustração e do arrependimento. Ah! Se eu soubesse, ou pudesse...

Eis algumas coisas que ouvi.


*

Kiosque, Brassaï
Se eu soubesse o que hoje sei, eu não sei se estaria escrevendo essas linhas... Se eu soubesse que o “se eu soubesse” é algo recorrente - pois sempre pensamos saber mais do que sabemos -, não teria ficado tão magoado com meu pai... Se eu soubesse que a democracia americana ia dar em Trump, disse um tal de Alexis-Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville, teria refeito o meu livro Democracia na América... Se eu soubesse que insistir em pegar na mão dela ia me custar o emprego, teria ficado fiel ao meu inútil voto de castidade... Se eu soubesse que tudo o que fiz e ainda vou fazer vai ser fatalmente esquecido, teria pensado mais em escrever menos... Se soubesse o resultado da Mega-Sena, eu (diz um lado meu) estaria longe daqui... Se eu soubesse que o tempo realmente passa, teria terminado o livro que jamais vou escrever... Se eu soubesse que roubar era sinônimo de “cuidar do povo”, teria me suicidado politicamente... Se eu soubesse que a descoberta do planeta como um todo - o planeta visto de fora para dentro - ia me dar a certeza de que estamos matando o mundo, não seria otimista... Se eu soubesse que ser professor seria viver numa luta decepcionante contra a indiferença do saber em toda a parte, mas sobretudo no Brasil, teria - mesmo assim - sido professor... Se eu soubesse que o meu medo do escuro ia estar sempre ao meu lado, teria acendido a luz... Se eu soubesse que ia construir uma tribo, jamais saberia como a leveza do papel de avô compensa amplamente o papel pesado de pai... Se eu soubesse que iria ser vítima das intrigas humanas que, por sua vez, são o resultado não previsto das intrigas que os intrigantes realizam nas suas próprias cabeças, teria vivido com serenidade as calúnias assacadas contra mim... Se eu soubesse que, mesmo sendo o filho mais velho, poderia ter mais latitude para errar, burlar, brincar e pecar, talvez tivesse sido um artista - medíocre, sem dúvida - um ser mais alinhado com os encontros decisivos entre a força da vida e o silêncio dos túmulos... Se eu soubesse latim, francês e matemática como meus professores gostariam que aprendesse, seria engenheiro ou militar... Se eu soubesse que a ambição humana é tão ou mais poderosa que os protocolos, estaria menos preocupado com um mundo que exige muito menos de mim do que eu dele... Se eu soubesse de memória tudo o que ouvi dos meus professores, estaria num hospício... Se eu soubesse que não saber é uma condição da vida, não teria consultado aquela cartomante famosa, que tinha como clientes diplomatas, altos funcionários, frades e materialistas... Se eu soubesse que despertava tanta inveja, meu sentimento de culpa caberia num dedal... Se eu soubesse que o mapa social do Brasil estava traçado antes do meu nascimento, não teria me esforçado tanto - teria me esforçado muito mais... Se soubesse tudo, eu não teria que aprender nada... E se eu não soubesse nada, como foi o caso, não ficaria tão decepcionado em saber tão pouco... Se eu soubesse puxar o saco dos poderosos, teria ido muito mais longe... Se eu soubesse que ele ia morrer subitamente, lhe diria o quanto eu o amava todos os dias... Se meus pais estivessem vivos, eu iria perguntar tudo sobre a vida deles... Se eu soubesse que o passado jamais volta, exceto pelos bons momentos do presente, não estaria firme neste pedaço de jornal...
Roberto DaMatta