segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Governo e Congresso preparam arrocho de gastos mais radical em 2020

A conversa sobre a revisão do teto de gastos federais deve sair pela culatra: governo e lideranças do Congresso pretendem radicalizar o arrocho da despesa. Se as medidas vão passar pelo chão do Parlamento e pelo Supremo é outra história, mas convém prestar atenção ao risco de radicalizações variadas até 2020.

Radicalizações? Sim, talhos quase imediatos na despesa com servidores, para citar um conflito fiscal dos vários que virão.

Há a radicalização de Jair Bolsonaro. Objeto de críticas de partidários a sua direita, além da borda da Terra plana, o presidente começou a jogar a carta de “depois de mim, o dilúvio” (a “volta do PT”) _isso aos oito meses de mandato. Além do mais, Bolsonaro se volta para sua base mais extremada, ameaça criar uma questão religiosa e diz que, se baixar a borduna, terá apoios.

Mesmo integrantes da elite econômica, para quem em geral Bolsonaro é preço bom a se pagar por “reformas”, começam a se queixar em público dos desvarios. Se por mais não fosse, e é, a maluquice boquirrota ameaça negócios.


Quanto ao problema fiscal, a ideia no comitê central reformista é criar uma lei simples que facilite medidas imediatas de redução de despesas ora dificilmente arrocháveis. Não cabe aqui, nestas poucas linhas, explicar a barafunda legal e constitucional que trata das providências para lidar com os diversos tipos de estouro dos limites de gastos do governo. Importa reter que, na prática, quer se dar um jeito de fazer com que tais medidas emergenciais possam ser aplicadas no ano que vem, no mais tardar em 2021.

Assim que o déficit do governo atingir um certo nível, desconsideradas as despesas de investimento em obras e similares, a guilhotina vai descer. Já existem tais previsões legais (regra de ouro, do teto), que na prática não funcionam. A nova norma seria simples, com gatilhos rápidos.

O primeiro talho viria nos salários de servidores (por meio da aumentos de contribuição previdenciária, redução de jornada acompanhada de corte em vencimentos, bloqueio de reajustes e contratações). Não se trata da “reforma administrativa”, de carreiras e salários, que ainda virá, mas de corte emergencial, mas duradouro.

Além do talho nas despesas com servidores, outros estão em estudo. Gastos sociais e desonerações de impostos estão na mira. A possibilidade de mexer em algumas destas despesas depende de mudança constitucional. Outras podem ser levadas ao Supremo, se tidas como “confisco” de salários. Muitos procuradores, agastados que estão com Bolsonaro e objetos diretos do talho, podem levantar a lebre judicial.

O risco de conflito é hipótese. Curiosa ou espantosamente, em um país massacrado por seis anos de depressão econômica e politicamente extremado, as reformas passam sem tumulto. Um cidadão prudente e preocupado, porém, não subestimaria o risco, ainda mais porque as previsões de crescimento para 2020 murcham, da casa de 2% para 1,5%.

Além disso, no mundo dos remediados, a reforma dos impostos pode mexer nos bolsos, o corte em universidades e ciência causam revolta e o funcionalismo costuma se revoltar. Em breve, os mínimos legais de despesa em saúde e educação também estarão na roda.

Talvez a maioria do país tolere calada o sacrifício, por não ver alternativa. Até agora, foi o caso, com as díspares exceções de caminhoneiros, em 2018, e universitários, em 2019. É tudo tão imprevisível quanto 2013. Talvez ainda mais estranho.

As bodurnas que nos esperam

Se durmo mal à noite, acordo meio distraído, preciso me iludir com manias contemporâneas e caio de boca na internet para ver o que é que há. Então, leio os posts matutinos e me assusto: onde é que estamos? E minha cabeça roda em busca de uma direção, tentando entender: onde é que viemos parar?

Não sei se a deputada Maria do Rosário é mais feia do que madame Macron. Se o pai da ex-presidente do Chile era mais cubanófilo que o pai do presidente da OAB. Se um ministro é mais chucro ou mais ingênuo que o outro, que seria rechaçado no Senado caso fosse indicado para o Supremo. Quem nos surpreende com tais escolhas é o cara em que devemos acreditar sempre, por ser o chefe da nação. Que país é esse?


Quando o Brasil completou 500 anos de invasão europeia, no ano 2000, o professor de Ciência Política Renato Lessa publicou pequeno ensaio antecipativo, quase um conto sci-fi, com o premonitor título de “Maicon da Silva, 45 anos, mulato e evangélico: presidente da República”. No final do século passado (ou no princípio deste) ele nos prevenia de que, em 20 ou 30 anos, o presidente do Brasil poderia ser assim descrito, como estava no título de seu ensaio. Dezenove anos depois, sabemos que Lessa só não acertou a idade e a cor da pele do rapaz.

Quando, no ensaio, o professor diz que não havia nada que eliminasse sua hipótese, acrescenta logo: “ainda que as barreiras à ascensão exijam fôlego heroico”. Mas esse fôlego pode muito bem ser substituído por um certo acaso, produto de um “mercado eleitoral brasileiro gigantesco e aberto a inúmeras trajetórias possíveis”. A do nosso atual presidente é um exemplo.

Bolsonaro, o indiscutível vencedor de 2018, está hoje bem atrás de alguns de seus ministros em matéria de popularidade. Dois deles, o da Justiça e o da Economia, dão-lhe surra épica em pesquisa idônea, produzida pelo mesmo instituto que previu sua vitória no ano passado, o Datafolha.

Acho que um presidente da República devia pensar bastante antes de falar. Sobretudo se vai comentar notícia pública, dessas que todos conhecem ou podem vir a conhecer. Não dá pra sair por aí temerariamente, a julgar a beleza ou a conduta dos outros, às vezes gente de quem nem teve notícia antes de lhe ocorrer comentá-la. Enquanto isso, ocorrências no mínimo lamentáveis nos enchem de vergonha, sem que ele sequer as critique.

Os responsáveis pelo tráfico de drogas e o pessoal das milícias, com o apoio de evangélicos terroristas, têm se unido com violência contra as religiões de matriz africana, destruindo terreiros e imagens sagradas. Em Parada de Lucas, proibiram os moradores de usarem roupas brancas que na visão deles remetem à umbanda e ao candomblé. De janeiro a agosto deste ano, houve 150 ataques a terreiros no Estado do Rio, um aumento de 120% em relação ao mesmo período do ano passado.

A discriminação, seja qual for, está sempre disfarçada por trás de princípios aparentes. Alunos da Escola de Música da UFRJ têm se recusado a cantar obras de Villa-Lobos, Mignone, Guerra-Peixe ou Waldemar Henrique, porque seriam obrigados a usar palavras de religiões afro-brasileiras, como orixá, Xangô, Obaluaê etc. No fundo, se comportam como denunciado por Joaquim Nabuco, para quem a Lei Áurea acabava com a escravidão no Brasil, mas não com as consequências dela em nossa sociedade. Essas ainda durariam por muitos anos.

Os sectários estão sendo incentivados à intolerância pelo prefeito do Rio. Esse homem, que deixa nossas ruas abandonadas, que não conserta o que é público e está danificado, que não faz nada contra roubos e crimes, que detesta samba e carnaval, nossa música e nossa festa, determinou a interdição de revista em quadrinhos em que personagens do mesmo sexo se amam. Uma revista exposta na Bienal do Livro, evento exemplar de tolerância e convivência democráticas. Curioso que uma das estrelas da Bienal é “Bom crioulo”, romance escrito em 1895 por Adolfo Caminha, que narra a história de amor entre um grumete branco e um marujo negro.

Sérgio Buarque de Holanda dizia que, no Brasil, se confunde conservadorismo com atraso. E o atraso está sempre armado, como declarou Bolsonaro: “Se eu levantar a borduna, todo mundo vai atrás de mim”. Olhem só o que pode estar nos esperando.
Cacá Diegues

Pensamento do Dia


Como Brasil pode ganhar dinheiro com turismo ecológico sem derrubar a Amazônia

Para o professor Virgilio Viana, PhD pela universidade de Harvard e superintendente da Fundação Amazônia Sustentável (FAS), "não há dúvida de que o Brasil está perdendo uma enorme oportunidade."

Em evidência por causa do aumento das queimadas, o interesse internacional na Floresta Amazônica poderia ser usado "a nosso favor", segundo o especialista, por meio do estímulo ao ecoturismo na região. Ainda incipiente, essa atividade econômica tem forte potencial graças justamente ao fascínio que a beleza da floresta tropical exerce sobe visitantes.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil disseram que o turismo autossustentável deu certo em países com florestas tropicais e se mostrou uma forma eficiente de proteger e conservar a floresta e trazer benefícios a populações locais.

Hotel de luxo flutuante na Amazônia peruana 
Na região amazônica, "o turismo ainda não possui escala econômica ou poder político para substituir o desmatamento em massa, que é a razão dos incêndios", lamenta o professor Ralf Buckley, da Universidade Griffith, na Austrália, autor de diversos livros sobre o ecoturismo no mundo.

"Mas, uma vez estabelecido, o turismo é muito maior do que a indústria madeireira, agrícola ou de mineração em termos de escala econômica e geração de empregos."

Buckley calcula que a indústria do turismo e de atividades ao ar livre movimente anualmente 1 trilhão de dólares (ou mais de R$ 4 trilhões) no mundo todo. Faltam, porém, estatísticas globais consolidadas sobe turismo sustentável.

Apesar de a organização de turismo UNWTO, ligada à Organização das Nações Unidas, compilar dados em diversos países, o órgão não dispõe de informações específicas sobre o nicho do ecoturismo. "Não há um único modelo universalmente aplicável", pondera Buckley. "Cada país tem diferentes histórias, leis políticas, sociedades e economias."

No entanto, há exemplos de negócios que deram certo nessa área e que poderiam servir de inspiração a novos projetos na Amazônia brasileira.

É o caso do ecoturismo na Amazônia peruana, estudado de perto por Amanda Stronza, professora e codiretora do programa de ciência aplicada a biodiversidade da universidade A&M do Texas. Para ela, um dos segredos da viabilidade do modelo de turismo sustentável no Peru esteve em iniciativas de desenvolvimento que tiveram seu ponto de partida nos interesses da comunidade local.

Na comunidade de Infierno, junto ao rio Tambopata e adjacente ao parque nacional de Bahuaja-Sonene, uma parceria entre uma empresa canadense e os índios da comunidade Ese-Eja resultou na construção de em um resort de luxo no anos 1990.

O empreendimento é lucrativo há mais e 20 anos e paga dividendos às famílias locais por estar situado próximo à comunidade indígena.

"É importante lembrar que a Amazônia não é terra selvagem desabitada, terra de ninguém como dizem. Há milhares de pessoas lá, comunidades locais que vivem lá. Esse é o território deles e qualquer empreendimento econômico tem que envolvê-los", defende Stronza.

Mas ela ressalta que o turismo ecológico "é uma opção que deve ser empregada em conjunto a outras, como a extração vegetal e o manejo da agricultura familiar".

Outro exemplo de sucesso no ecoturismo em floresta tropical é a Costa Rica, onde passeios de aventura e natureza estão entre os principais chamarizes de turistas estrangeiros.

O pequeno país da América Central, ao norte do Panamá e ao sul da Nicarágua, obteve US$ 3,8 bilhões (R$ 15,44 bi) em renda com a indústria do turismo em 2018. O Brasil todo faturou US$ 5,9 bilhões no mesmo período.

Apesar de o tamanho do território costa-riquenho não chegar a corresponder a 1% do brasileiro, o país recebeu em 2018 mais de 3 milhões de turistas, quase metade do total de 6,6 milhões de visitantes que foram ao Brasil. O turismo corresponde a mais de 6,4% do Produto Interno Bruto do país.

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Paulo Guedes quer 'descarimbar' orçamento e 'privatizar todas as estatais'

No gogó, os planos do ministro Paulo Guedes (Economia) para a fase posterior à reforma da Previdência são audaciosos. Ele reiterou a ideia de "descarimbar" o Orçamento público —da União, dos estados e dos municípios. "Vamos desindexar, desvincular e desobrigar todas as despesas de todos os entes federativos", declarou. Não é só: "Eu quero privatizar todas as empresas estatais. A decisão é do Congresso".

Guedes acionou a garganta numa entrevista à repórter Cláudia Safatle, veiculada na edição desta segunda-feira do jornal Valor. Não é a primeira vez que fala em desvincular despesas orçamentárias, incluindo gastos com saúde e educação. Menciona o tema desde o discurso de posse. Seria um "Plano B" a ser acionado caso a reforma previdenciária naufragasse. Virou puxadinho do "Plano A". E entrou no calendário do Posto Ipiranga: "É para esse semestre".



Quanto às estatais, além do desejo de "privatizar todas", Guedes agora quer adiantar o relógio. O governo acaba de entrar no seu nono mês de existência. E só de uns dias para cá o ministro passou a defender que a venda de estatais trafegue em via rápida —'fast track'. Com a anuência do presidente, a avaliação do Tribunal de Contas da União e a aprovação do Congresso.

Tudo isso e mais a reforma tributária, que o governo demora a tirar do forno. Segundo Guedes, o embrulho incluirá mesmo o Imposto sobre Transações Financeiras (pode me chamar de nova CPMF). Conterá também a redução das alíquotas do Imposto de Renda das empresas e das pessoas físicas, que perderão, em contrapartida, a possibilidade de deduzir despesas médicas e escolares.

Se as coisas se resolvessem apenas com saliva, Guedes já teria migrado do estágio do falatório para a prática. O estilo do presidente da República ajuda a complicar o que já não é simples. Jair Bolsonaro parece ter feito uma opção preferencial pela polêmica. Cria uma crise atrás da outra. Antes de sua posse, estimava-se que a economia cresceria algo como 2,5% em 2019. Agora, reza-se para que chegue pelo menos a 1%.

Desmatamento na Amazônia, em agosto, cresce 222% em relação a 2018

A Amazônia perdeu em agosto deste ano 1.698 quilômetros quadrados de cobertura vegetal, área 222% maior do que a desmatada no mesmo mês de 2018, que foi de 526 quilômetros quadrados, segundo dados divulgados neste domingo pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Os números indicam que, apesar da devastação, houve redução na comparação com julho deste ano, em que houve destruição de 2.254 quilômetros quadrados.

Em comparação aos mesmos períodos de 2018, os meses de junho e julho apresentaram, respectivamente, crescimento de 90% e 278% no desmate.

Com os saltos, a área desflorestada da Amazônia nos oito primeiros meses de 2019 chegou a 6.404 quilômetros quadrados, número 92% superior ao registrado no mesmo período do ano anterior (3.337 quilômetros quadrados).

Os dados foram obtidos pelo Deter, levantamento rápido de alertas de evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia, feito pelo Inpe.

Os informes podem ser usados para indicar tendências de aumento ou diminuição no desmate e servem de parâmetro para que os fiscais do Ibama atuem nas regiões mais ameaçadas.


Em agosto deste ano, foram registrados 30.901 focos de incêndio no bioma Amazônia, segundo dados divulgados dia 1° de setembro pelo Programa de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Esse é o maior número registrado para o mês desde 2010, quando houve 45.018 focos.

Os dados mostraram ainda que, em relação ao mesmo mês do ano passado, os focos de incêndio triplicaram. Em agosto de 2018, foram registrados 10.421 incêndios. Entre janeiro e agosto deste ano, foram registrados ao todo 46.825 focos de incêndio na Amazônia. Esse número é mais do que o dobro observado no mesmo período do ano passado, 22.165.

Em resposta aos incêndios na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro anunciou um decreto proibindo queimadas em todo o Brasil, por 60 dias. Um dia depois, porém, Bolsonaro voltou atrás e autorizou a prática em regiões que estão fora da Amazônia Legal.

A recente aceleração da devastação fez com que os governos de Alemanha e Noruega suspendessem repasses de verba ao Brasil para financiar projetos de desenvolvimento sustentável.

Devido ao desmatamento e às queimadas na região, Bolsonaro se tornou alvo de pesadas críticas de políticos europeus, que ameaçaram suspender o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE). Alguns políticos alemães chegaram a pedir sanções ao Brasil em razão da maneira como o governo Bolsonaro lida com o meio ambiente.

Bolsonaro se envolveu numa prologada troca de farpas com o presidente da França, Emmanuel Macron, que o acusou de mentir sobre suas políticas ambientais durante o encontro do G20 em junho, no Japão, onde foi concluído o pacto comercial entre o bloco dos países sul-americanos e a UE.
Deutsche Welle

Paisagem brasileira

Igreja de São José, Márcio Schiaz

Déficits de competência, de governo e de civilidade

Déficit de governo, déficit de competência, déficit diplomático e déficit de civilidade na administração federal são hoje muito mais graves que o enorme buraco nas contas públicas, também conhecido como déficit fiscal. O presidente Jair Bolsonaro, seus acólitos e seus milicianos digitais acusam os meios de comunicação de só se ocuparem de assuntos menores e de intrigas, ignorando os dados positivos. Mas fogo na Amazônia, elogio à ditadura chilena, apologia da tortura e grosserias contra a mulher do presidente da França foram grandes temas postos em pauta, sem exceção, pela cúpula do governo. Não são, de fato, assuntos menores, porque resultam de palavras e ações de figuras poderosas na República. Combinam perfeitamente, pode-se acrescentar, com a persistente crise da indústria (queda de 0,3% em julho) e com a piora da economia neste governo, e também esses fatos têm sido noticiados. Mas o chefe de governo sempre consegue sobressair por suas façanhas.


Ele e seu ministro do Meio Ambiente são conhecidos dentro e fora do Brasil pelos ataques a organismos de proteção ambiental. O presidente notabilizou-se pela demissão do respeitado diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um escândalo internacional. Depois, ganhou destaque ao descrever a “cadeira de direitos humanos da ONU” como ocupada por “gente que não tem o que fazer”. Nessa ocasião, acusou a comissária de Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, de defender direitos de vagabundos e elogiou os torturadores e assassinos de seu pai.


O presidente Bolsonaro já havia chamado de herói nacional o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e ofendido a memória de um estudante morto na década de 1970 pela ditadura brasileira, o pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Há quem acuse a imprensa de dar muita importância a essas palavras e atitudes do presidente Jair Bolsonaro, como se fossem apenas manifestações de maus modos. Ele é assim mesmo, dizem os mais tolerantes, como se descrevessem deslizes de pouca importância.

Serão mesmo atitudes e atos irrelevantes, quando envolvem o elogio de ditaduras, o aplauso a homicídios cometidos por agentes públicos e a exaltação de torturadores como heróis? Serão palavras e atos descartáveis, quando produzem desastres diplomáticos, expõem o Brasil ao risco de se tornar um pária internacional e ameaçam exportações do agronegócio?

Essas exportações são o maior pilar do comércio exterior brasileiro. Garantem o superávit na balança de mercadorias e são essenciais para a segurança econômica externa. Qualquer presidente com alguma competência conheceria todos esses fatos, mesmo sendo pouco informado sobre economia. Crises cambiais são desastres dolorosos, dificilmente superáveis sem muito sacrifício, e nenhum governante sério desconhece esse fato.

Mesmo com exportações em queda, o Brasil ainda é superavitário no comércio de bens. Suas transações correntes têm um déficit administrável e o País dispõe de cerca de US$ 380 bilhões em reservas brutas. Qualquer ato ou palavra com potencial para tornar o País mais vulnerável a choques externos é uma demonstração, no mínimo, de ignorância ou de irresponsabilidade.

Políticos europeus já insinuaram a conveniência de impedir ou dificultar a importação de produtos brasileiros, como carnes e soja, enquanto se esperam garantias de proteção da Amazônia. Importações de couro já foram suspensas, por decisão privada, como reação (obviamente propagandística) à destruição de florestas.

Não basta falar de má-fé política ou empresarial, nem do conhecido protecionismo europeu. O verdadeiro e competitivo agronegócio brasileiro continua longe das agressões à Amazônia e é conhecido por ser poupador de terras. Mas a maior parte dos estrangeiros provavelmente ignora esses fatos e apoiará medidas contra os produtos brasileiros, em defesa da floresta e da grande fonte (outra mentira) do oxigênio consumido em todo o planeta.

Um presidente mais informado, mais prudente e mais bem assessorado na ação diplomática seria capaz de pesar todos esses dados e de cuidar dos interesses nacionais. Esses interesses envolvem, sim, a segurança das contas externas, um assunto dramaticamente importante num país obrigado a um penoso e demorado ajuste das contas públicas. Crise externa forçaria um ajuste interno muito mais doloroso, como sabe qualquer pessoa razoavelmente informada.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe ou deveria saber disso. Mas, em vez de arrumar, ele estraga o cenário. Repetiu em público, na quinta-feira, a grosseria do presidente Bolsonaro a respeito da mulher do presidente francês. Talkey, o presidente é assim mesmo, uma figura grosseira, diriam os defensores do senhor Bolsonaro. Mas o ministro da Economia também tem de ser? Pior: tem de ser assim, quando também o ministro de Relações Exteriores é conhecido por prejudicar a imagem do País?

O único avanço real e importante nos ajustes, até agora, tem sido a tramitação da reforma da Previdência. Mas isso se deve principalmente a alguns parlamentares empenhados num trabalho sério, na Câmara e no Senado. Enquanto dependeu do presidente da República, o projeto quase ficou emperrado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. São fatos bem conhecidos.

Quanto à reforma tributária, o governo nem chegou a expor com clareza, até agora, a sua proposta. Tem-se falado em combinar seu mal conhecido projeto com aqueles já em discussão. Mas ninguém explicou como se poderá harmonizar a nova CPMF, defendida pelo Executivo, com as mudanças desenhadas por outros autores. Enquanto isso, a economia se arrasta, a insegurança permanece, o desemprego se mantém elevado e dezenas de milhões enfrentam sacrifícios prolongados pela inoperância econômica do governo. Tudo por culpa da imprensa?

A desafinada orquestra de Bolsonaro que tenta atrair investimentos

Enquanto economistas se perguntam como o país pode atrair investimento internacional em um curto prazo, ministros do governo Jair Bolsonaro (PSL) convidados para falar a investidores demonstram não estar em total sintonia sobre o tema. Pelo contrário. Pareciam destoar nas leituras de cenário, numa espécie de orquestra desafinada. Na quinta-feira, 130 potenciais investidores estrangeiros e nacionais acompanharam, em Brasília, os discursos de quatro ministros, o presidente do Banco Central e dois governadores – Flávio Dino (PCdoB), do Maranhão, e Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul.

No evento “Agenda do Brasil para Crescimento Econômico e Desenvolvimento”, promovido pelo Council of The Americas, dois ministros apresentaram o que tem sido feito em suas áreas: Sergio Moro (Justiça) e Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia). A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, por sua vez, procurou reforçar a importância do comércio com os norte-americanos e pincelou críticas a ambientalistas. Já o ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, demonstrou porque faz parte da ala ideológica da gestão Bolsonaro. Defendeu que o aumento dos incêndios florestais na Amazônia são uma crise falsa, criticou a alta comissária das Nações Unidas, Michele Bachelet (que, segundo ele tem um discurso totalmente absurdo quando disse que há uma redução do espaço democrático no Brasil) e insistiu que o debate ambiental está baseado em ideologia, não em fatos.


“De repente, as pessoas dizem que a Amazônia está sendo consumida pelo fogo, que a Amazônia está queimando e de que é culpa do governo brasileiro. Uma crise falsa, uma interpretação falsa da situação e uma falsa atribuição de motivos”, disse Araújo, em inglês. O chanceler não notou que a imensa maioria dos espectadores falava português, conforme uma enquete feita por Marcos Pontes mais tarde. E os que não sabiam o idioma local usavam um aparelho no qual era possível ouvir a tradução simultânea.

“Há um livro, do doutor Evaristo Miranda, chefe da Embrapa Territorial, que é um tremendo estudo sobre o meio ambiente brasileiro, sobre como nossa cultura ocupa 9% do território brasileiro, como ele é sustentável, como é nossa abordagem da Amazônia, como protegemos a floresta. Dizemos que esse livro deveria ser jogado de helicópteros na Europa. Mesmo se fizéssemos isso, as pessoas não acreditariam”, ressaltou Araújo. A referência, aparentemente, era ao livro “Tons de Verde”, que defende que os produtores rurais são os maiores agentes de preservação no país. A publicação, no entanto, é contestada por cientistas e ambientalistas, embora seja celebrada pela frente ruralista do Congresso.

Há fatos, no entanto, incontestáveis, como o aumento dos incêndios no mês de agosto, confirmados até pela Nasa. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) do Brasil detectou mais de 76.620 focos desde o começo do ano, quase o dobro que no mesmo período de 2018 (41.400), ainda que seja uma cifra não tão distante dos 70.625 registrados em 2016. O problema é o discurso agressivo do Governo presidente Jair Bolsonaro, que a todo instante assegura que pretende abrir terras indígenas para exploração de minério, chegou a acusar ONGs de promoverem incêndios e rebate todas as críticas como se o seu Governo nada tivesse a ver com o assunto. O episódio do Dia do Fogo, quando no início de agosto produtores rurais de Altamira e Novo Progresso, no Pará, se disseram incentivados pelas palavras do presidente para aumentar queimadas, também coloca o Governo num papel delicado. Houve efeitos práticos nos negócios, como a gigante da moda H&M que suspendeu a compra de couro brasileiro em função dos incêndios.

“Esse chanceler está nos fazendo passar vergonha”, dizia um dos participantes do evento. Enquanto o outro lhe respondeu: “Depois que ele falou da dor de nascer, desisti de acompanhar a fala, me concentrei nos e-mails que tenho para responder”, disse outro. Ambos, executivos de multinacionais falaram à reportagem sob a condição de não terem seus nomes publicados. Em dado momento, Araújo associou o quadro que o país vive, de “mudança”, com um nascimento, que traz dores do parto.

As dúvidas, nesse sentido, é compreender qual país o Governo Bolsonaro pretende colocar de pé, uma vez que a economia em marcha lenta requer muito mais diplomacia do que o presidente e seus ministros vêm empregando. O presidente ligou uma metralhadora verbal nas últimas semanas, atacando da Alemanha, à França, e remexendo em memórias dolorosas da ditadura chilena quando atacou a ex-presidente Michele Bachelet. “Senhora Michele Bachelet, se não fosse o pessoal do [Algusto] Pinochet derrotar a esquerda em 1973, entre eles seu pai, hoje o Chile seria uma Cuba”, disse Bolsonaro. O pai de Bachelet, Alberto, um brigadeiro que se opôs ao golpe de Pinochet em 1973, foi torturado e morto. Reportagem do Valor Econômico reforça que o discurso bélico do presidente afasta investidores em um momento de baixo crescimento.

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, procurou defender em seu discurso que a redução de 22% dos homicídios no país neste ano ajuda a atrair investimentos. Moro comparou a taxa de assassinatos no Brasil (27 mortes por 100 mil habitantes) e em Portugal (de 0,97), e acabou fazendo uma referência velada ao cantor e compositor Chico Buarque, dizendo que esperava que o “Brasil se torne um imenso Portugal” (da música Fado Tropical). Também afirmou que a facção criminosa PCC parecia o vilão de Harry Potter, Lord Voldemort, que não podia ser nominado por determinados governos ou órgãos da imprensa. “As coisas têm de ser chamadas pelos seus nomes”, afirmou arrancando discretos risos da plateia.

O mais técnico dos representantes do Governo na apresentação aos investidores foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Em tom realista, afirmou que espera que a economia brasileira só ganhe fôlego a partir do quarto trimestre deste ano e que estima receber a auspiciosa marca de 500 bilhões de reais em investimentos nos próximos anos. “O crescimento está aquém do que nós gostaríamos. Temos na margem uma recuperação pequena. Acho que é importante olhar mais a médio e longo prazo”. A projeção de crescimento do PIB deste ano é de menos de 1%.

Nenhum representante do Ministério da Economia, do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) ou do Ministério da Infraestrutura, os principais responsáveis por tocam as privatizações de empresas estatais, participaram do evento. A orquestra ainda desafina.

Maldade eleita

A sociedade é produzida pelas nossas necessidades, e o governo pela nossa maldade
Thomas Paine 

Oh, Tempora, Oh Mores

Que maravilha! As últimas décadas produziram mais tecnologia para a Humanidade do que todo o resto do século: aí estão drones, clones, drogas milagrosas, controle da Aids etc. Variedades de câncer já podem ser dominadas. Conquistas em todas as áreas, das comunicações aos transportes, da biogenética à informática, da medicina ortomolecular à tecnologia de alimentos. Apetrechos tecnológicos modernos abrem os horizontes da Humanidade, a partir desse aparelhinho que, pelo WhatsApp, nos aproxima na aldeia global. Com a tecnologia 5G, nova era desponta.

Que vergonha! Nos últimos anos, o aedes aegypti tem minado a saúde de milhões de brasileiros com dengue, zika e chikungunya, doenças do século passado, ao lado da febre amarela, tuberculose, tifo e até sarampo. É de pasmar. Como explicar o paradoxo? A tecnologia nos oferece a química salvadora de vida, mas a ressurreição de doenças seculares ceifa a vida de muita gente. Descaso, incompetência, falta de recursos, ausência de planejamento, inércia ou politicagem? Tudo isso e mais alguma coisa.

Esse mais se chama inércia moral, que os governantes desenvolvem no poder. Enfrentando pressões, jogos de interesse, decisões complexas, eles criam camadas que entorpecem seus instintos, desviando-os do sentido de prioridade. Tornam-se impermeáveis; adrenalina zero. Sua máquina psíquica entra em coma. A ebulição social não os incomoda. Afinal, só pensam na próxima eleição.


Só assim se explica o tiroteio diário do presidente Bolsonaro contra adversários, todos “comunistas”. Palavras ríspidas e chulas são atiradas contra protagonistas importantes da política internacional. Ataca a imprensa pelas “notícias negativas contra o governo”. E a aspereza com assessores e ministros já faz parte da liturgia do poder. (Até quando Sérgio Moro suportará a fritura?)

Desemprego continua acima de 12 milhões de pessoas; doenças do passado estão de volta; a Amazônia arde em tocha gigantesca; tributos sobem às alturas; por incúria, a água do São Francisco deixa de correr nos fundões do Nordeste. Não há manutenção nos dutos.

Já o presidente da República transita impassível no palanque, disparando verborragia para animar os 30% de seguidores que ainda lhe são fiéis. (Até quando?) A nona (ou décima?) economia do mundo não se move. Os mais necessitados catam centavos para sobreviver, a extrema pobreza volta com intensidade.

O Congresso desenvolve uma agenda positiva e tenta resgatar suas legítimas funções, mas o Executivo não ajuda, em desprezo à política. O projeto nacional é mera utopia. Bolsonaro insiste em nomear o filho embaixador nos EUA. Países como Alemanha, França, Noruega olham enviesados para o Brasil.

No Chile, até a direita – ainda envergonhada pelos mortos na ditadura de Pinochet – repudia as palavras repugnantes contra a alta comissária da ONU, a ex-presidente Michele Bachelet, e seu pai, proferidas pelo presidente brasileiro. Oh, Tempora, Oh Mores (ó tempos, ó costumes), bradava nas Catilinárias no Senado Romano o tribuno Cícero contra os vícios da política de seu tempo. E por nossas plagas, até quando viveremos tempos tão vergonhosos?
Gaudêncio Torquato

E a cidade que se se chamava...

E a cidade que se chamava Rio de Janeiro, sem ter conhecido a penúria da guerra dentro de suas portas, e a desolação de bombardeios inimigos no céu, começou a apodrecer.

2. E os seus moradores foram expostos a muitas provações, e as suas aflições, multiplicadas, mais que as areias da Guanabara; e os donos da vida não se compadeciam de seus sofrimentos.

3. Muitos juntaram riquezas, e não com direito; esses não se compadeciam de seus sofrimentos.

4. Pela desolação da terra, porque não vinha chuva, se confundiram os lavradores; e os magnatas canadenses rogavam ao povo uma paciência inútil. 

5. Quem saía aos campos secos, encontrava os bois a engolir vento como os dragões; quem ia à cidade, via por toda parte a incúria dos que deviam zelar pela República.

6. As vacas extenuadas e poucas não davam leite, e os que tinham água ficavam tristes porque não tinham o leite para deitar-lhe a água.

7. Em Rio de Janeiro sobravam as tristezas e tudo faltava; mesmo o mar, grande e generoso, só trazia às praias um excremento fétido; e isso porque os homens não sabiam mais construir esgotos e canais.

8. E o povo, que era chamado carioca, foi contaminado de tristeza, um povo que outrora trazia nos lábios palavras de prazer.

9. Não havia água para o banho e mesmo a de beber era pouca: e era vendida no mercado como o vinho. E os donos da cidade não se apercebiam dessa aflição porque a eles lhe bastava a soda para juntar ao uísque e bebiam também uma água espumante chamada champanha. 

10. Escasseavam nas feiras os legumes e custavam os olhos da cara; e desapareciam quando um homem, chamado Cabello, procurava torná-los acessíveis.

11. Em Rio de Janeiro, não houve poder humano contra a carestia; porque a mão dos homens era fraca e mais débil o entendimento.

12. Cabello comeu aflições como ervas-daninhas; e os preços subiam; e o dinheiro do pobre não comprava mais nada digno de valor.

13. E a própria luz veio a diminuir, e a cidade cobriu-se de uma treva melancólica, só propícia aos furtos e às fornicações. 

14. E o povo dizia a seu chefe: assentai-vos no chão, porque a coroa de vossa glória escorrega de vossa cabeça.

15. E dizia: que é do povo que vos foi confiado? E nem mesmo o vento respondia.

16. E não havia carne e não havia pão; e havia muitos crimes na cidade porque a fome se arma de uma faca.

17. Como o látego no lombo do burro, Rio de Janeiro foi castigada duramente; e os vícios dos homens públicos é que foram causa dessas aflições; esses homens eram coisas vãs e as obras deles dignas do riso.

18. E a carência de comida era tanta que se tornava ridícula: de que adianta faltar a manteiga se já falta o pão?

19. O Rio de Janeiro tornou-se em desolação e numa vala perpétua: e todos aqueles que passam por essa cidade ficam espantados e meneiam a cabeça; porque esta cidade se quebra como uma vasilha de barro; e os poderosos não percebem os clamores de sua ruína. 
Paulo Mendes Campos (Diário Carioca, 15/11/1951)