quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Pensamento do Dia

 


Ponto final coisa nenhuma

A vacina contra o coronavírus não será obrigatória e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatamento da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.

Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencionado.

O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticências; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervenção abusiva, subentendida a determinação para que se mude de assunto.

Correndo o risco de glamourizar um evidente vício verbal, o histrionismo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativa, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.


Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromisso ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguimento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.

Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptória ordem anterior.

O presidente admitiu, gerando abalos ao mercado de ações, que o governo estuda mesmo, apesar dos desmentidos, a hipótese de furar o teto de gastos e ponto final. Esta não esperou o dia amanhecer e o próprio Bolsonaro tratou de buscar outros recursos da ortografia, detendo-se na exclamação e no travessão. O caminho está livre a qualquer estudo, quis dizer Bolsonaro, antes de exclamar: meu governo jamais transgredirá com o rigor da política fiscal!

O tema do aumento da carga tributária e criação do novo imposto sumiu numa gaveta temporária de hipóteses lesa-voto, a serem examinadas depois das eleições de 2020. Não se sabe como reaparecerá no discurso de Bolsonaro que, inúmeras vezes, garantiu que no seu governo não tem volta da CPMF e ponto final. Como esta é uma obsessão do ministro da Economia, o presidente teve de mudar a pontuação ou demiti-lo.

Agora, com reticências, o novo imposto transformou-se em uma condicionante para desoneração da folha, depois para financiar a renda mínima, em seguida voltou a instrumento de combate ao desemprego, até ser recolhido a um dos escaninhos que abrigam os estelionatos eleitorais premeditados.

Em abril, registrou-se o que se imaginou ser o ponto final dos pontos finais. Na reunião ministerial em que reclamou da ineficiência do serviço de informação da Presidência, fez revelações bombásticas. Disse que possuía informantes particulares e se queixou da falta de ascendência sobre a Polícia Federal. Bolsonaro foi taxativo: “Vou interferir e ponto final”.

Quando a interferência virou inquérito no Supremo Tribunal Federal, por denúncia do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, o sinal gráfico passou a ser um parênteses de negação do fato em todas as suas versões.

O ponto final da vacina é especial, trágico. Com uma carga pesada de dramaticidade e letalidade. Assusta os escalões inferiores, insufla decisões pessoais precipitadas, causa pânico nacional e horror internacional. É grave, desafia a Ciência, que não é um partido ou paixão acidental.

O governo assume riscos de crime contra a humanidade. Ponto final coisa nenhuma.

A razão ou a estupidez


Muita gente gostaria que um imã se levantasse
E tomasse a palavra diante de uma multidão muda
Ilusão enganosa, não há outro imã fora a razão
Só ela nos guia de dia como de noite
Abu-I-Ala, poeta muçulmano cego

Estado geral da democracia

Não precisa fazer interpretações para concluir que a democracia brasileira vai mal. Basta juntar os fatos. Não são feitos mais os ataques verbais às instituições nem as passeatas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, mas isso não significa que o presidente Bolsonaro mudou. Ele é o mesmo que sempre desprezou valores democráticos. A paz com o centrão não é governabilidade, está mais para conluio. Partidos, políticos e o presidente têm o mesmo objetivo: manter o poder e suspender o combate à corrupção.

O episódio do senador Chico Rodrigues traz uma série de lições. Alguém pode concluir que tudo funcionou bem, afinal a Polícia o encontrou, o Supremo o afastou inicialmente, ele próprio pediu afastamento. É uma visão benigna, mas não realista. O fato é que o vice-líder do governo se sente tão à vontade que leva maços de dinheiro para casa. A PF que o encontrou continua trabalhando, mas ela está sendo esvaziada. Até quando terá essa autonomia? Até que ponto poderá chegar? O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deixou no ar um silêncio eloquente sobre o escândalo. O ministro do Supremo que afastou Chico Rodrigues foi criticado por senadores. Eles não queriam julgá-lo no Conselho de Ética. Os colegas o aconselharam a dar um “jeitinho”: sair por 121 dias, entregar o mandato ao filho suplente e deixar tudo em casa. O presidente da República fingiu que não tinha com ele a anunciada “quase união estável”.



Há outros sinais preocupantes para onde se olhe. O governo inteiro vem sendo militarizado. Ontem, o Senado aprovou sem reclamar os nomes da diretoria da nova Autoridade Nacional de Proteção de dados. Ela será presidida por um militar, e eles serão três dos cinco diretores. O órgão precisa de autonomia em relação ao governo. Ele vai fiscalizar e editar normas da Lei Geral de Proteção de dados de todos nós. Os militares não têm em relação às informações a preocupação de proteger a privacidade. Por treino profissional, e pela ideologia do atual governo, eles tendem a ver isso dentro da doutrina que definem como “de segurança nacional”.

O governo mandou espiões para a última Conferência do Clima, em Madri, como informou o repórter Felipe Frazão do “Estado de S.Paulo”, e deu a eles status de negociadores. Desta forma estava mentindo para a ONU e constrangendo negociadores brasileiros. O general Heleno disse que isso foi feito para vigiar “maus brasileiros”. Essa é uma visão tipicamente autoritária. Quem outorgou ao general o direito de definir quem são os maus brasileiros? São os que desmatam ilegalmente a Amazônia ou os que denunciam que isso está sendo feito?

O Rio, como mostrou o relatório de diversas ONGs, tem 57% do seu território sob o controle da milícia. Isso é uma ameaça nacional. O presidente Bolsonaro e seus filhos têm todo um mar de ambiguidade em relação à milícia, que vai da ligação direta, como a mantida com o o ex-policial militar e líder de bando miliciano Adriano Nóbrega, morto na Bahia, até as frequentes declarações de apoio ao bando.

“Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se depender de mim terão todo o meu apoio”, disse Bolsonaro em 2003. Em 2018, reafirmou: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência”. O então candidato estava aprovando a extorsão a que estão submetidos os moradores das áreas controladas pelos milicianos. Quando um grupo criminoso tem o apoio implícito ou explícito de quem governa o país, isso é um imenso perigo.

O truque atual é capturar as instituições, esvaziá-las da sua autonomia, mas deixá-las em pé. Assim, alguém pode dizer: mas estão lá as instituições funcionando. A suposta “pacificação” de Bolsonaro não é respeito à autonomia e à independência dos poderes. Ele quer proteção para ele, seus filhos, sua família. Os parlamentares querem que a investigação de corrupção pare de importuná-los, porque já não sabem mais onde enfiar dinheiro quando a Polícia Federal chega. Diante de todos os sinais — e há muitos outros — só o desatento dorme tranquilo com a democracia brasileira.

Tudo dominado? Quase

Indicado para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o desembargador federal Kassio Nunes Marques será sabatinado hoje, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado (CCJ). A presidente da comissão, senadora Simone Tebet (MDB-MT), pretende ler e sustentar o parecer favorável do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que está impossibilitado de fazê-lo por motivo de saúde. Com toda certeza, Marques passará por algum constrangimento, quando nada, devido ao currículo anabolizado, mas seu nome será aprovado pela maioria. A rejeição à sua indicação está confinada aos senadores do grupo Muda Senado.

A indicação de Kassio Marques surpreendeu, todos esperavam alguém “terrivelmente evangélico”, como prometera o presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, trata-se de um magistrado do Piauí, católico, indicado pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, o principal partido do Centrão. A tese de que foi resultado de um acordo com os ministros do Supremo Dias Toffoli e Gilmar Mendes não procede; ambos prefeririam que o nome escolhido fosse um magistrado com passagem pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos ministros Luís Felipe Salomão, Humberto Martins e Luiz Otávio de Noronha eram cotados para vaga.

Um almoço na casa de Toffoli, com a presença do presidente Jair Bolsonaro e seu indicado, ao qual compareceu o ministro Gilmar Mendes, gerou a especulação de que a indicação era fruto de um acordo com o Supremo, cujo objetivo seria blindar o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Segunda Turma do Supremo, no processo das rachadinhas da Assembleia Legislativa fluminense. O evento gerou mal-estar na Corte e provocou reação do novo presidente do STF, ministro Luiz Fux, que propôs e aprovou, por unanimidade, uma mudança regimental que transferiu os julgamentos sobre inquéritos e processos criminais para o plenário do Supremo, o que acabou com essas especulações.

Kassio Marques chegou ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), com sede em Brasília, na cota dos advogados, por indicação da então presidente Dilma Rousseff. Não por acaso, agora, tem o apoio do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que faz oposição a Bolsonaro, e da bancada do PT no Senado. O senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), que preside a Casa, trabalha ostensivamente para aprovação do nome de Kassio, sendo o primeiro a comunicá-la aos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes.

A propósito, o voto de Kassio Marques no Supremo pode ser decisivo para Alcolumbre viabilizar sua reeleição no Senado. Seus movimentos junto ao Palácio do Planalto e aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) miram esse objetivo. Internamente, tem uma posição bastante consolidada, graças aos acordos de bastidor que fez com as bancadas do MDB e do PT. Apesar de já ter maioria em plenário para aprovar uma mudança regimental que viabilize sua reeleição, Alcolumbre depende de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que considere a mudança um assunto interna corporis, ou seja, que deve ser decidido pelo próprio Senado. A reeleição é considerada inconstitucional pelos senadores que integram o grupo Muda Senado.

Por essa razão da reeleição, o presidente do Senado tem evitado bolas divididas. É o caso do escândalo envolvendo o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), seu correligionário, flagrado na semana passada com R$ 33 mil na cueca, durante uma operação de busca e apreensão da Polícia Federal em sua residência. Alcolumbre não deu um pio sobre o caso, que desgastou tremendamente o Senado, mas atuou fortemente para que Chico Rodrigues se licenciasse do cargo. Com isso, evitou que o plenário do Supremo Tribunal federal (STF) julgasse a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que afastou o parlamentar do cargo. Também trabalhou para que o Conselho de Ética do Senado não se reunisse para apreciar o caso.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal investigam um esquema de desvio de recursos públicos destinados ao combate ao novo coronavírus em Roraima, que chegaria a R$ 20 milhões em emendas parlamentares. Chico Rodrigues é suspeito de lavagem de dinheiro e está sendo acusado de tentar obstruir a ação da Justiça. Como se licenciou do cargo, o ministro Barroso suspendeu a liminar que havia determinado seu afastamento do Senado por 90 dias e solicitou ao presidente do Supremo, Luiz Fux, que retirasse o caso da pauta da sessão plenária de hoje.
Luiz Carlos Azedo

Tânatos

Não há outra explicação, a não ser a pulsão de morte descrita por Sigmund Freud em sua teoria, para um presidente de um país no qual quase 160 mil pessoas morreram em menos de um ano usar uma cerimônia oficial para, numa só tacada, divulgar desinformação sobre vacina e vender mais um medicamento sem eficácia científica comprovada, sem nenhum dado que ampare a “descoberta”.

A teoria das pulsões aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1920, mas ganha contornos culturais, sociológicos e políticos nove anos depois, quando ele publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto ele descreve a dicotomia entre as pulsões do indivíduo – a pulsão de vida (Eros) e de morte (Tânatos) – e as expectativas da sociedade (ou da civilização).

Bolsonaro age movido a pulsão de morte desde os primórdios de sua curta passagem pelo Exército, em toda a sua carreira de defensor de tortura e assassinato nos porões e, agora, como promotor de caos no enfrentamento da pandemia de covid-19.



Se não, qual a justificativa para um presidente adotar um tom de pura picuinha e dizer explicitamente que, sob suas ordens, a Anvisa, uma agência que tem o dever de fiscalizar e regular a política de saúde, pode atrasar a aprovação de vacinas ao sabor das disputas político-partidárias que ele insiste em antecipar?

Qual a explicação para que, 116 anos depois da Revolta da Vacina, o Brasil esteja mergulhado, por obra e graça do presidente e de seus acólitos, num pântano de desinformação e calhordice em que se propagandeia de forma irresponsável que alguém (Quem? Os governadores? A polícia? Vozes da cabeça dos malucos?) vai invadir a casa de pessoas e vaciná-las à força com substâncias vindas da China (a mesma que, insinuam eles, criou um vírus em laboratório para subjugar o mundo) sem comprovação científica?

No mesmo evento em que usa mais um órgão de Estado, a Anvisa, como aparelho de suas intenções mesquinhas, o presidente dá voz ao ministro-astronauta para promover mais um medicamento sem eficácia científica comprovada em nenhum estudo sério do mundo, como sendo capaz de, nas fases iniciais da covid-19, reduzir a carga viral.

Para isso, o ministro em questão promete para dali a alguns dias (quando?) os estudos que supostamente corroboram a irresponsabilidade, ao mesmo tempo em que usa gráficos chupados de um desses bancos de imagem públicos da internet para mostrar a suposta eficácia. Garganteia diante de um chefe aparvoado que o que deveria ser um estudo de anos foi feito em quatro meses.

Tal show de mistificação, num país que não estivesse anestesiado pelos absurdos cotidianos e impunes, seria contraposto imediatamente pelo Ministério Público, pelo Judiciário, pelo Conselho Federal de Medicina e a comunidade científica, em uníssono. Com a exigência de apresentação imediata de dados, sob pena de punição.

Aqui, o contraponto fica por conta de cientistas usando suas redes pessoais para cobrar o ministro, jornalistas científicos fazendo o mesmo e, talvez, alguma representação de partido de oposição.

O Ministério Público Federal é hoje uma instituição em que os procuradores estão calados porque temem ser alvo de perseguição (volto a isso na coluna de domingo).

Diante de cenário de terra arrasada, dá até um alívio que o Ministério da Saúde se descole do teatro da morte e anuncie convênio para comprar 46 milhões de doses de vacina do Instituto Butantã quando os estudos comprovarem sua eficácia. Resta saber se também o ministro não será admoestado pelo chefe a recuar, se o Tânatos e os delírios persecutórios decorrentes dele apontarem que ele está jogando a favor de seus adversários.

Brasil de bunda pra lua

 


Prisioneiros do Passado

As pesquisas mostram força eleitoral do atual presidente, apesar de todos seus erros e desastres se seu governo. Na politica externa, deixando o Brasil isolado como um pária no mundo. No Meio Ambiente, se identifica com incentivo a queimadas, desprezo à natureza e à biodiversidade.. Sua falta de compromisso com os direitos humanos leva-o a ter ministros com manifestações racistas, machistas, sem respeito aos povos indígenas, apoiadores de torturadores e da ditadura. No combate à epidemia, seu fracasso é claro, por omissão, sem ministro por meses, sem estratégia, incentivando descuidos e defendendo magia no lugar de ciência. Na economia, que seria o campo para o qual parecia em condições de corrigir a crise que herdou, está fracassando e provavelmente abandonará a responsabilidade fiscal, ganhando prestígio popular no primeiro momento, mas jogando o país na inflação e nas consequências da perda do determinante fator Confiança. Na ética, seu governo, sua família e a adesão à velha política demonstram tolerância, omissão e prática corrupta.

Apesar disto, há reconhecimento de que a força de Bolsonaro não diminui e possivelmente será forte candidato à presidência em 2022.

Muitos explicam esta força graças às transferências de renda, copiando os governos anteriores do PSDB/PT, também graças à adesão ao “centrão” e a provável irresponsabilidade fiscal que elevará gastos públicos.


Mas tudo indica que a força de Bolsonaro não vem apenas do populismo, vem da fragilidade de seus opositores. Apesar de manifestações verbais, seus opositores carregam o peso dos erros do passado e não oferecem ideias para o futuro. Propostas que tragam esperança ao povo e empolgue aos eleitores.

Além disto, falta uma liderança carismática com crédito político que unifique e lidere alternativa com viabilidade eleitoral. Não há propostas claras para um Brasil diferente. A oposição, dividida, se limita a oferecer volta ao passado, especialmente liberdade de costumes e compromisso com a democracia.

Bolsonaro adotou a velha proposta de transferência de renda para os pobres e caminha para usar irresponsabilidade fiscal como forma de financiar projetos de infraestrutura. Sem uma alternativa convincente e sedutora, sem reconhecimento dos erros que cometidos, sem uma unidade carismática que represente as forças progressistas, Bolsonaro será reeleito na hora que o eleitor tiver de escolher entre continuarmos como estamos ou regredirmos ao que fomos. O eleitor precisa de um sonho que sirva para construir um Brasil diferente no futuro. A falta disto nos deixa prisioneiros do passado.

Ódio é dos idiotas


Tenho minha boa quantidade de defeitos, sou passional, mas no meu jardim faz décadas que não cultivo o ódio, porque aprendi uma dura lição que a vida me impôs: o ódio acaba idiotizando, ele nos faz perder objetividade

Jose Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai ao renunciar ao cargo de senador devido à pandemia

Chiquita Bacana

Dessa conversa resultou profunda modificação nos rumos da política norte-americana na América Central e serviu como experimento para o exercício da autoridade de Washington nos países do sul ao longo do século vinte. É o início da utilização em larga escala daquilo que hoje se chama fake news.

Sam Zemurray, nascido em 1877 nas proximidades do Mar Negro, fugiu para os Estados Unidos por causa das perseguições a judeus em sua terra. Foi morar em Selma, no Alabama. Edward l. Bernays também era judeu emigrante, mas frequentava a alta sociedade em Nova Iorque. Ele se dizia o pai das relações públicas, uma especialidade que se tornou importante arma política, social e econômica do século XX.

No seu livro Propaganda, Bernays explica os fundamentos de seus estudos e as razões de seu trabalho. ‘’A manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e da opinião das massas é um elemento importante da sociedade democrática. Quem manipula esse mecanismo desconhecido da sociedade constitui um governo invisível, que é o verdadeiro poder no nosso país (…) A minoria inteligente tem que fazer uso contínuo e sistemático da propaganda’’.

Sua teoria começou a ser aplicada na Guatemala, nos anos cinquenta pela famosa empresa bananeira, a United Fruit.



Sam Zemurray venceu sozinho. Começou com um investimento de US$ 150 e construiu um negócio milionário. Ele não inventou a banana, mas conseguiu popularizar o produto e fazer com que a fruta estivesse na mesa do café da manhã de milhões de norte-americanos. Ficou milionário, mas adquiriu péssima fama nos países em que operava.

Ele não hesitou em invadir terras, tratar mal seus trabalhadores e sempre se compôs com os poderosos a preço de elevados subornos. Provocou guerras, colocou e tirou do poder diversos políticos, não pagou impostos e manipulou a política externa dos Estados Unidos. A dupla inventou o perigo comunista na América Central. Justificou a invasão de países e a derrubada de governos legítimos.

No princípio de 1950, a United Fruit operava em Honduras, Guatemala, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, Colômbia e em várias ilhas no Caribe. Gerava lucros astronômicos. A função de Bernays era tornar a imagem da empresa mais palatável aos olhos do público norte-americano. Ele produziu obra impressionante. Entre suas ações espetaculares uma é especial: foi ele quem levou Carmem Miranda para os Estados Unidos.

Chiquita Bacana se vestia de banana nanica. A atriz luso-brasileira arrasou em Hollywood, sempre coberta por frutas tropicais, participou de vários filmes e ajudou a vender muita banana produzida pela United Fruit. Essa história é narrada com maestria por Mario Vargas Llosa, fantástico escritor peruano, que tem em seu currículo um prêmio Nobel de Literatura. O livro chama-se Tempos Ásperos, editora Alfaguara.

No Brasil, o livro chega em momento apropriado. Dentro de trinta dias haverá eleições municipais. As fake news vão transitar com desembaraço. Quem mentir mais e com maior competência será vencedor. Em outro cenário, o governo federal está diante de pesada oposição internacional por causa dos problemas na Amazônia.

Alguns argumentos atendem a problemas particulares. Há muitas ações de relações públicas, no seu pior sentido, neste mundo de grandes interesses.

A eleição nos Estados Unidos terá fundamento nas afirmações delirantes de Donald Trump. Mas seus delírios terão consequências no mundo inteiro, inclusive no Brasil. Se Joe Biden vencer a eleição um dos primeiros atingidos será o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo. Será mais fácil substituí-lo do que abrir um contencioso com Washington.

É o caso do meio ambiente: é mais fácil demitir Ricardo Salles, reconhecido destruidor de florestas e uma espécie de general Custer a destempo, do que brigar com europeus.

O Brasil precisa entrar no século 21. O pensamento dominante nos centros de poder nacionais ainda não absorveu a ascensão da China como potência de primeira grandeza. O fluxo de comércio entre Brasil e Estados Unidos está no menor nível dos últimos anos. Queda livre. A relação comercial com a China, ao contrário, cresce aos saltos.

É urgente assinar o acordo do Mercosul com a União Europeia. O objetivo é gerar empregos aqui. É razoável que os dogmáticos sejam sacrificados. A consequência será reeleição ou derrota. Além disto, como já se viu, resta o rebolado da Chiquita Bacana para americano consumir, brasileiro ingênuo comemorar e a United Fruit faturar.

O nome do crime é milícia

A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É “A República das Milícias”, do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social. 

Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: “Milicianos de PMs expulsam tráfico”. Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou doze milicianos.

Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transporte legal, corrompia parlamentares e governadores.)

É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que “as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás”.

Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.

Pela lenda urbana 1.0, a milícia vendia segurança, cobrando de R$ 15 a R$ 60 por família no bairro que protegia. A milícia “desvirtuada” cobraria pelo gás ou pelo gatonet (cerca de R$ 50). É a lenda urbana 2.0. Mesmo deixando-se pra lá que cobram entre R$ 30 e R$ 300 aos comerciantes, em pouco mais de uma década, elas avançaram nos mercados de regularização de terrenos e de construções ilegais. Privatizam espaços públicos achacando camelôs e motoristas que estacionam seus carros.

Outra lenda urbana esteve na ideia segundo a qual as milícias combatiam o tráfico de drogas. Pode ser que isso já tenha acontecido, mas hoje elas toleram os traficantes ou se aliam a eles. Não é preciso ser um gênio para perceber que essa fusão é inevitável. 

Quando Bolsonaro defendia os milicianos era apenas um parlamentar federalmente inexpressivo e municipalmente astuto. Hoje é o presidente da República. No seu estado ajudou a eleger um juiz que prometia “balinha na cabeça” e foi afastado por mau uso do dinheiro da Viúva. O prefeito da cidade que persegue o apoio do capitão foi apanhado usando o dinheiro da Viúva para custear uma milícia que constrangia cidadãos insatisfeitos com a saúde pública.

Bolsonaro, como Wilson Witzel, elegeu-se com um discurso político de defesa da lei e da ordem. O governador do Rio perderá a cadeira e deverá batalhar para ficar solto. Bolsonaro e os generais da reserva que levou para o Planalto estão reciclando suas agendas moralistas. Para quem falava em segurança e combate à corrupção, a pesquisa das milícias e o livro de Bruno Paes Manso estão aí para mostrar que não adianta olhar para o lado. A menos que se pretenda colocar mais uma lenda urbana na ciranda, a dos confrontos nos quais morrem os milicianos que expulsavam os traficantes. Como o tráfico vai bem, obrigado, o que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano. Como as milícias são quase sempre recrutadas na polícia, com a proteção de governantes, seria melhor olhar para dentro.