terça-feira, 4 de agosto de 2020

Brasil dá soberbas mostras de que pode preservar a impunidade dos corruptos

As críticas recentes à Lava Jato feitas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, deram origem a reações de euforia em notórios grupos defensores de praticantes de atos nocivos à sociedade que sentiram nessas palavras a certeza de que seria sepultada a operação e eliminado o combate à corrupção de colarinho branco no Brasil, aquela que opera em escala industrial e que rende polpudos honorários para a classe.

Antes da Lava Jato – isso é fato incontestável –, a impunidade da elite milionária da corrupção era notória no Brasil.

A operação Lava Jato quebrou essa tradição e, com isso, arrebanhou e consolidou inúmeros inimigos poderosos – ostensivos e ocultos – pelo fato de ter obtido provas materiais, confissões e colaborações premiadas que levaram para o xilindró pessoas de enorme poder e influência, de grande relacionamento político, social e também nas cortes superiores de justiça em Brasília, acostumadas aos salões, rapapés e festas com lagostas, caviar e outras iguarias, regadas a vinhos premiados e champanhes francesas.


Devido a tudo isso, é certo que há muitos corruptos de primeira classe que estão contando as horas para o enterro da Lava Jato e reinício dos eventos sociais não apenas em Brasília, mas também na Europa. Os castelos medievais são ótimos.

Por outro lado, a parcela de cidadãos decentes que sabe ler e entende o que lê – aquela que sustenta o Estado com o pagamento de impostos de uma pesadíssima carga tributária – tem a certeza que o aniquilamento da operação Lava Jato é, sim, um golpe letal na luta contra a corrupção.

Todos sabemos que a Lava Jato recebeu este nome devido a falcatruas descobertas em um simples posto de gasolina em Brasília e, em princípio os investigadores achavam que era corrupção em pequena escala. Com o desenvolver da investigação foi aumentando o cardume de tubarões devoradores do dinheiro do povo em diversos mares, ou seja, as empresas estatais, dentre elas a Petrobras. Para desespero dos ladrões, foi descoberto o majestoso “Petrolão”.

É fato notório que o eficiente serviço prestado ao Brasil e aos brasileiros pelos agentes públicos operadores da Lava Jato alcançou incomparável e inédito sucesso ao colocar na prisão os delinquentes autores do “Petrolão” com a recuperação de bilhões que foram apropriados indevidamente da Petrobras, aqui e no exterior.

Com esse resultado – queiram ou não os corruptos e seus protetores do passado e recentes aderentes –, a Lava Jato e seus operadores, para os brasileiros honestos e reconhecidos, ganharam merecido e indestrutível posição na história do Brasil, como verdadeiros símbolos do inabalável desejo dos cidadãos de praticar com coragem o bom combate para eliminar a corrupção no Brasil.

A Lava Jato também deu provas incontestáveis a todos os brasileiros que para combater a corrupção não pode haver limites de tempo, pois o combate tem que durar enquanto dura a corrupção, do contrário, ela torna a crescer com mais força e resistência. E irá destruir o país, tendo em vista que, devido a sua própria etimologia, corrupção é palavra originária do latim “corruptione”, que também significa apodrecimento, decomposição.

A sensação que se tinha era a de que a corrupção no Brasil tinha virado instituição; a instituição mais forte do país, pois a impunidade era geral para os ladrões de bilhões. O Estado estava apodrecendo.

Vários juízes, principalmente de primeira e segunda instâncias, sentiram o contexto de violenta e progressiva putrefação que estava tomando conta do país e resolveram agir. Sempre o fizeram dentro dos limites da lei. Sempre, embora os beneficiários da rapinagem e seus comparsas preguem o contrário através da mídia de elite e das redes sociais bem remuneradas e sem compromisso com a verdade.

Todos sabemos, pois presenciamos, que Jair Bolsonaro se aproveitou desse contexto e se elegeu presidente da República. Convidou o juiz Sérgio Moro, valente e eficiente guerreiro contra a corrupção, para ser ministro da Justiça, afirmando que daria a ele toda autonomia para agir, carta branca.

Aliás, é bom que se frise que Moro era juiz de primeira instância por mérito, por ter sido aprovado em concurso público com inúmeros candidatos e nessa profissão tinha seu futuro garantido, inclusive aposentadoria dentro de mais alguns anos.

É certo que deixou essa posição social de segurança e estabilidade por dois principais motivos: primeiro, desejar trabalhar e realizar mais pelo Brasil, por sua população e gerações futuras; segundo, por ter acreditado na palavra de Jair Bolsonaro que teria carta branca para agir. O tempo fez sucumbir o segundo motivo, segundo prova a sucessão de fatos ocorridos.

Brasília é uma capital estranha, muito diferente das capitais das maiores democracias ocidentais, pois em Brasília o STF investiga, acusa e julga. Tenho pena de ti Brasil, mas as palavras de Rui Barbosa previram os dias que atualmente vivemos, transcrevo-as para meditação:

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem- se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.

Pensamento do Dia

Alex Falcó Chang (Cuba)

As redes sociais revelam o pior lado da natureza humana

O que há em comum entre as milícias digitais investigadas no inquérito das fake news e a cultura do cancelamento que ameaça empregos e reputações por pequenas transgressões do discurso? Ambos são fenômenos das redes sociais, e isso não é coincidência.

Tudo nas redes convida ao pensamento de rebanho, à polarização e à perseguição de "infratores". E não por culpa de algum algoritmo insidioso criado pela ganância empresarial que poderia ser facilmente mudado.

O buraco é mais embaixo: são tendências da própria natureza humana que encontram nas redes espaço para se desenvolver.

Infelizmente, ao contrário do que os otimistas acreditavam, a internet não produziu uma maravilhosa ágora universal de debate racional que nos leva à verdade.

E isso porque a mente humana não busca a verdade; ou não apenas a verdade.

Ela trabalha incansavelmente para confirmar aquilo em que acreditamos e negar o que lhe contraria. Se nos oferecem uma abundância de dados e fatos —é o que a internet fez— isso não nos leva a atualizar nossas crenças e corrigir erros. Essa abundância permite que, com muita facilidade, selecionemos os pedaços de informação mais convenientes para reforçar nossas crenças prévias.

As redes sociais intensificam essa tendência ao colocar a ambição individual por fama a serviço dessa tendência. Afinal, as pessoas irão curtir e compartilhar aquilo que reforce suas crenças pré-existentes.

Se faço um texto ponderado, apontando lados bons e ruins de uma posição, isso gera incômodo e ninguém compartilha.

Agora, se jogo desavergonhadamente para a plateia, reafirmando suas crenças e preconceitos, o sucesso vem muito mais fácil.

Entre direitistas, ganha mais quem reafirmar posições de direita em estado puro, sem matizes. Idem para a esquerda. E assim todos caminham para versões mais radicais.

Essa regra vale também para outro passatempo favorito da humanidade: atacar inimigos. A identidade de qualquer grupo é em boa medida definida pela oposição entre quem está dentro e quem está fora dele. Quem ataca os inimigos do grupo adquire reputação. Quem ousar ver pontos positivos neles colherá desprezo. Assim, o ódio tende a crescer.

Outro ponto: não há qualquer limitação no tipo de conteúdo que pode circular.

Antes das redes sociais, a maior parte da informação que chegava até nós passava por algum crivo institucional. Hoje não existe mais controle.

Uma informação falsa inventada com a pior das intenções circula livremente por dias até que algum órgão profissional identifique e forneça uma correção. E nesse momento novas mentiras já foram criadas.

Para completar, a interação a distância dá mais espaço à fantasia negativa sobre o outro: é muito fácil projetar más intenções em alguém com quem me relaciono apenas por meio de textos.

Da mesma maneira, o custo de ser desagradável, agressivo e simplesmente mal-educado é muito menor nas redes sociais. Permito-me ir até uma pessoa que não conheço para ofendê-la, algo que jamais faria se a encontrasse na rua.

Indivíduos e grupos que, conscientes dessa tendência à radicalização nas redes, se organizam para criar e promover conteúdo difamatório e discurso de ódio ameaçam a democracia.

Mesmo que consigamos debelar essas condutas criminosas, contudo, a dinâmica perversa das redes ainda trará desafios para nossa ordem política. A rede social não é ágora, e sim arena.

Joel Pinheiro da Fonseca

Ações policiais do governo remetem à época do regime militar

E assim se passaram os últimos 10 dias. No primeiro, quando Rubens Valente, colunista do UOL, informou que o Ministério da Justiça pusera em prática desde junho uma ação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do “movimento antifascismo” e três professores universitários, o que fez André Mendonça?

O ministro da Justiça limitou-se a responder com uma nota onde disse ao que se presta a Secretaria de Operações Integradas, uma das cinco subordinadas diretamente a ele. Sobre a ação sigilosa posta em prática pela Secretaria e que dera origem a um relatório, nem uma palavra. Na semana passada, com o assunto ainda quente, Mendonça afirmou que desconhecia qualquer relatório.

Anteontem, ao ser perguntado sobre o assunto em entrevista, o ministro disse que nem confirmava, nem desmentia a existência de um relatório sobre servidores que em suas redes sociais tivessem se manifestados como antifascistas. Mas, que mandara abrir uma sindicância para apurar tudo, uma vez que numa democracia a livre manifestação de pensamento é assegurada.

Ontem, antes do início dos trabalhos da comissão de sindicância formada só por representantes do governo, Mendonça anunciou que decidira substituir o chefe da Diretoria de Inteligência da tal secretaria, Gilson Libório Mendes, coronel reformado, designado por ele para o cargo há dois meses, e autor do relatório. Dá para acreditar que Mendonça não soubesse de nada?


Do relatório constam nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas. Investida das atribuições de serviço de “inteligência” por um decreto de Jair Bolsonaro assinado no seu primeiro dia como presidente da República, a Secretaria de Operações Integradas não submete todas as suas ações a acompanhamento judicial.

Ela opera nos mesmos moldes dos outros órgãos que realizam normalmente há anos o trabalho de inteligência no governo, como o Centro de Inteligência do Exército e o Gabinete de Segurança Institucional. Para Bolsonaro, antifascistas são “marginais, terroristas” que “querem quebrar o Brasil”. Quanto a fascistas propriamente ditos, o presidente nunca disse o que são.

O relatório do Ministério da Justiça foi produzido menos de uma semana depois da declaração de Bolsonaro sobre os antifascistas. A certa altura, ele registra: “Verificamos alguns policiais formadores de opinião que apresentam número elevado de seguidores em suas redes sociais, os quais disseminam símbolos e ideologia antifascistas”. Não há lei que criminalize o antifascismo.

Fazem parte do relatório dois manifestos – um de 2016, assinado por policiais “em defesa da legalidade” que estaria ameaçada pelo impeachment aberto contra a então presidente Dilma Rousseff, e o outro deste ano, que condena o fascismo sem mencionar Bolsonaro nem o seu governo. E cópias em PDF do livro “Antifa – o manual antifascista”, e de um “manual de terrorismo BR”.

Disponível na internet e escrito em linguagem de adolescente, o “manual” diz ter receitas para fabricação de bombas caseiras e atos de “anarquia”. O relatório não oferece qualquer explicação que permita ligar esse “manual” aos antifascistas – sejam os antifascistas monitorados pela Secretaria, sejam outros. A juntada do livro e do “manual” funciona como uma simples sugestão.

Bolsonaro, e muitos que o cercam são fissurados em teorias conspiratórias. Na reunião ministerial de 22 de abril passado, Bolsonaro queixou-se do aparelho de inteligência do governo que não o informava direito. Na última sexta-feira, ele criou o Centro de Inteligência Nacional, um novo órgão da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) comandada por um delegado da sua confiança.

Dentre outras atribuições, o Centro deverá planejar e executar atividades de inteligência destinadas “ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade” e implementar a “produção de inteligência corrente e a coleta estruturada de dados”. A ABIN começa a lembrar o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) da época da ditadura militar de 64.

Caráter primata

O Facebook tornou-se um gatilho, e há sempre um dedo que está disposto a disparar. Por isso, está a ficar cada vez mais tóxico. Mas a grande desilusão no Facebook é o próprio ser humano. No fundo, quem nos desilude são sempre as pessoas que aproveitam aquela montra para revelarem o seu carácter… 
Inês Meneses  

A catástrofe

Richard Horton é o editor-chefe do periódico médico britânico “The Lancet”, no qual foram publicados alguns dos mais importantes estudos sobre a Covid-19. Se há alguém que acompanhou de perto e em detalhe o surgimento e a evolução da pandemia, é ele. É dessa posição privilegiada que ele escreveu “The Covid-19 Catastrophe”, um dos primeiros “instant books” sobre a epidemia.

A principal vantagem desse tipo de obra é que ajuda a organizar o caos. Se o jornalismo é o primeiro rascunho da história, os “instant books” são sua versão ampliada e passada a limpo. Oferecem um relato mais ordenado e holístico de eventos ainda em andamento.

Para Horton, o mundo falhou, daí o termo “catástrofe” que consta do título do livro. Os riscos de uma pandemia viral são conhecidos pelo menos desde os anos 80, com a eclosão da Aids. Ainda assim, fizemos pouco para aprimorar a vigilância epidemiológica, que, para funcionar, precisa ser uma iniciativa global e não de nações isoladas.


E, se o mundo inteiro errou, o fracasso é ainda mais vexaminoso para alguns países ricos, normalmente funcionais e cientificamente avançados, como os EUA e o Reino Unido. Eles tiveram o privilégio de observar antes o que aconteceu na China e em algumas regiões da Europa e, ainda assim, preferiram não acreditar no que estava por vir e não se prepararam adequadamente para enfrentar a doença.

Horton tenta encontrar as razões para tantas falhas e apontar caminhos para melhorarmos. Nada de revolucionário, apenas mudanças de bom senso.

O ponto fraco de livros instantâneos reside justamente no fato de que os acontecimentos ainda estão em curso. Horton entregou os originais no fim de maio e há coisas no livro que já ficaram velhas. Seja como for, até que a Covid-19 se torne oficialmente um evento pretérito e objeto de estudo de historiadores, obras como a de Horton é com o que de melhor podemos contar.

A morte banalizada

Maldita pandemia. Nesse turbilhão, Lúcia se foi. Sem despedidas. Não foi a Covid que a levou, mas a peste restringiu a vida. Não pude dizer adeus. O choro é contido. Nos últimos dois anos, o Alzeihmer a transportou para longe. Suportou a ausência, as deslembranças, a anestesia do corpo e da alma. Como herança, generosidade e alegria. Minha irmã, minha melhor amiga.

O luto na nossa rotina.

Maldito governo. Inconsequentes, autoridades brincam com a morte. Tornam insignificantes a vida de milhares de pessoas. Já são quase 100 mil brasileiros que se foram. Tempos amargos. Dolorosos.

A pandemia está viva no mundo. Alarmante no Brasil. Milhares de pessoas desprezam o perigo e brincam com a peste. Aglomeram, vestem as máscaras do deboche. Imitam Bolsonaro, rei da cloroquina e das fakenews.

Pessoas de bem. Não sabem da luta pela vida de outros milhares de brasileiros internados em hospitais, em UTIs, entubados, literalmente sem ar. Depoimentos compungidos de familiares, filhos, esposas e maridos doem na alma. Seguir a vida, e ele está lá, entre a luz e a escuridão.

Lá se vão cinco meses. Tempo em que o Presidente da República fez o que pode para estender o flagelo. Tivesse levado a sério, estaríamos livres da pior calamidade que se alastrou pelo mundo nos últimos cem anos.

A única saída para o Brasil (países com intensa transmissão comunitária)  seria forte parceria entre governos federal, estaduais e municipais e o engajamento da sociedade, disse a OMS.

Puro delírio. Quem disse que há no Brasil governantes preocupados em cessar essa tragédia?

Já somos campeões da pandemia. Ganhamos dos Estados Unidos. Dois Presidentes negacionistas, levianos, frívolos diante de tal catástrofe humana. Deles, queremos distância. Jamais sentiremos falta.

Lúcia, saudades infinitas.
Mirian Guaraciaba

Retrato oficial do Brasil


O pandemônio é de Bolsonaro

Na terça-feira 18 de junho do ano passado, Jair Bolsonaro pediu ao ministro Luiz Henrique Mandetta “a cabeça” de “esquerdistas” do Ministério da Saúde. À tarde, o deputado Helio Lopes (PSL-RJ) entregou a Mandetta a lista de “suspeitos”. Foi a primeira intervenção presidencial direta na gestão da Saúde.

Nove meses depois, quando o Brasil contava duas centenas de mortos, o ministério havia estabelecido com estados e municípios uma coordenação sobre a pandemia. Mas Bolsonaro decidiu intervir na Saúde.


Na segunda-feira 16 de março, decretou todo o poder à Casa Civil da Presidência na definição das “prioridades” contra o vírus. Nomeou 27 pessoas — ministros (20), presidentes de bancos públicos (4), especialistas da Saúde (2) e advogado (1).

O “Comitê de Crise” do Planalto completará cinco meses na próxima semana, com o país ultrapassando 100 mil mortos num quadro de descontrole da doença. É impossível saber quantas mortes seriam evitáveis. É certo, no entanto, que dois ministros e 80 dias depois de um general no papel de interino, a intervenção de Bolsonaro na Saúde resultou na perda de comando da crise. É evidente a calamidade gerencial no governo.

Não falta dinheiro. Ministério Público e Tribunal de Contas tentam desvendar mistérios em torno de despesas (R$ 912 milhões) em aventais, toucas e álcool em gel, ou em “atendimento pré-clínico remoto” (R$ 144 milhões).
Há meses pedem explicações sobre a lentidão nos repasses federais (R$ 13,8 bilhões) aos estados e municípios. Também não conseguem entender por que o Rio, com alta taxa de mortalidade, tem recebido menos recursos per capita (R$ 30) do que Roraima (R$ 108,39).
Bolsonaro finge que não é com ele, repassa a culpa a governadores e prefeitos e segue na campanha pela reeleição. Mas o funesto pandemônio governamental na pandemia tem suas digitais na autoria, além da assinatura estampada no Diário Oficial.

Corrupção morreu?


O maior programa de combate à corrupção foi executado por mim ao não lotear cargos estratégicos, como, por exemplo, as presidências das estatais. (...) Com orgulho digo: estamos há 18 meses sem qualquer denúncia de corrupção. Isso tem incomodado parte da imprensa e os derrotados de 2018
Jair Bolsonaro

Bolsonaro, o comunista

Jair Bolsonaro fez caravana pelo Nordeste. Fez um minicomício em São Raimundo Nonato, sul do Piauí, cidade que está no quinto daquelas de menor desenvolvimento humano do país, segundo o ranking da Firjan, mas que muito progrediu nos anos lulistas. Inaugurou uma obra de abastecimento de água em Campo Alegre de Lourdes, na Bahia, ainda mais pobrinha que sua vizinha piauiense.

De dezembro de 2019 a junho de 2020, o Nordeste foi a única região em que Bolsonaro ganhou algum prestígio, segundo o Datafolha. Quando se trata de renda, apenas entre as famílias que ganham menos de dois salários mínimos o presidente ganhou pontos.

Os economistas de Bolsonaro querem tributar o 1% mais rico do país, embora também desejem uma CPMF, que não pega só a elite, pega 1%, pega geral, imposto especialmente detestado por banqueiros.


Paulo Guedes propôs um tributo que deve aumentar o custo de serviços consumidos pelos mais ricos (escola e saúde privadas, advogados etc.), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços. Seus economistas dizem pelos jornais que querem diminuir as deduções de saúde e educação no Imposto de Renda (em geral, coisa de ricos).

Querem tributar lucros e dividendos, o que vai mexer com profissionais que são empresas de si mesmo no Simples, entre outros, além de pegar parte do dinheiro que rendem aquelas ações da Bolsa. Querem uma alíquota de IR maior do que 27,5% para “pegar” quem ganha mais de R$ 36 mil (que está no 1%), como disse a esta Folha Guilherme Afif Domingos, assessor de Guedes, como se fora um líder do Occupy Faria Lima.

Guedes quer criar um Bolsa Família ampliado. É verdade que o dinheiro extra do seu Renda Brasil é por ora apenas um catadão de recursos de outros programas sociais. Mas já poderia discutir o assunto com sociólogos de esquerda.

Como todos os governos da esquerda que domina o Brasil faz 30 anos (de acordo com Guedes), Bolsonaro se alia ao PP e suas variantes de ontem, hoje e sempre. Pelo menos desde abril, corre o boato de que alguns de seus generais querem mais obras públicas, intervenção do Estado. O presidente aceitou a contragosto a reforma da Previdência, coitado.

O presidente agora ataca não apenas Sergio Moro, ex-cruzado e trânsfuga do bolsonarismo, mas também a Lava Jato e o lava-jatismo, tal como petistas. Por isso ganhou um “Fora, Bolsonaro” do Vem pra Rua, parte marchadeira da frente que depôs Dilma Rousseff.

Com essa ficha, um Jair qualquer passaria por “comunista” ou “esquerda lixo” nas redes insociáveis da extrema direita. Não é bem o caso, né, mas os planos de gastos e impostos do governo têm interesse político.

A CPMF não vai passar, repete Rodrigo Maia, mas Bolsonaro (e o próprio Maia) vão levar adiante a tributação dos mais ricos? A fim de abrir espaço para um programa de renda básica mais gordo e não mexer no teto, vão confiscar parte dos salários dos servidores federais (além de juízes e procuradores. Militares inclusive?)?

O protesto do 1% (ou dos 10%) vai derrubar parte relevante da reforma tributária? Ou vai ter “reforma na marra” e o Congresso vai pagar o preço de aumentar os impostos da “classe média” (como quase todos os ricos se chamam)?

Como não se trata de um governo normal ou racional, é difícil discutir direito tais assuntos. Mas as realidades da penúria e da sobrevivência político-eleitoral vão fazer Bolsonaro trombar com essas questões. Como dizia a propaganda do Exército, chega um momento em que o jovem tem de escolher a sua carreira.

As pedras no caminho

O presidente Jair Bolsonaro entrou em modo reeleição. Há uma bipolaridade nessa atitude: o lado negativo é perder o foco na gestão para priorizar a disputa política, dois anos e meio antes do pleito de 2022; o positivo, a aposta na eleição, ou seja, na política, o que significa uma mudança de rumo, se considerarmos a escalada de confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso em que vinha, uma ameaça real à democracia. Não há novidade nenhuma nessa antecipação, o mesmo foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se sentiu ameaçado pelo mensalão; e pela presidente Dilma Rousseff, depois dos protestos de maio de 2013. É óbvio que a campanha antecipada merece críticas, mas daí negar a aposta nas eleições como uma mudança em relação à postura golpista em que vinha é um grave equívoco.


Desde a aprovação do instituto da reeleição, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todo governante é favorito nas disputas eleitorais. Mesmo em situações dificílimas, como aconteceu com Lula, no pleito de 2006, e Dilma Rousseff, em 2014. A força de inércia do Estado brasileiro é formidável, seja por causa da centralização crescente da arrecadação tributária nas mãos da União, e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer centralizar ainda mais, seja pelo fato de termos um Estado ampliado, que mexe com a vida dos cidadãos em todo o território nacional. A rigor, somente o estado de São Paulo, que também tem muitos tentáculos, se basta em relação ao governo federal do ponto de vista dos serviços que oferece aos seus cidadãos. Não à toa é o único em condições de sustentar frontal e permanentemente oposição ao governo federal, sem colocar em risco a própria governabilidade.

Para ir direto ao assunto, quem quiser que se iluda, o presidente Jair Bolsonaro é o favorito nas eleições de 2022. Quando nada porque o governo federal é a forma mais concentrada de poder, e isso pesa na balança quando o governante concorre à reeleição. Significa que Bolsonaro seja imbatível? Não. Mas é preciso levar em conta que, historicamente, desde a adoção da reeleição, nenhum presidente deixou de renovar seu mandato. O sujeito precisa fazer muita trapalhada para perder a reeleição, ou ser apeado do cargo, como aconteceu com Fernando Collor de Mello, quando não havia ainda reeleição, e Dilma Rousseff, que estava no segundo mandato. Isso explica, de certa maneira, a deriva dos partidos do Centrão em direção ao governo, numa articulação dos militares do Palácio do Planalto com os caciques Ciro Nogueira (Progressistas), Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Republicano) e Gilberto Kassab (PSD).

A reeleição de Jair Bolsonaro será favas contadas? É claro que não, ninguém ganha eleição de véspera. Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato etc. Aliás, sua estreia nesse quesito foi durante a semana que passou, no Piauí, onde posou ao lado do senador Ciro Nogueira no santuário arqueológico da Serra da Capivara, bem ao lado do emblemático desenho rupestre conhecido como “Cena do beijo”. Mais do que isso, porém, precisará acertar o rumo de seu governo, que se encontra à beira da insolvência em razão da dívida pública astronômica e do deficit fiscal crescente.

Há variáveis no meio do caminho da reeleição que Bolsonaro não controla, precisa adaptar-se a elas. A primeira é a recessão mundial, que parece mais profunda e duradoura do que se imaginava, se considerarmos os resultados econômicos do primeiro semestre deste ano, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que tinham uma expectativa de recuperação em V. A outra variável nesse terreno é a China, nosso maior parceiro comercial, com a qual o governo tem uma relação esquizofrênica, com alguns ministros trabalhando para aumentar as vendas do agronegócio e atrair investidores em infraestrutura, e outros só atrapalhando. A terceira é a eleição dos Estados Unidos, na qual o presidente Donald Trump corre o risco de não se reeleger, pois o democrata Joe Biden continua na liderança. De tão desesperado, Trump já pensa em adiar as eleições. Se o democrata vencer, o Brasil terá de ajustar sua política externa.

Entre as variáveis controláveis por Bolsonaro, a mais importante é a política econômica. Todos os economistas fazem um diagnóstico sombrio sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira nos próximos dois anos. A narrativa de que teremos uma recuperação econômica espetacular, do ministro da Economia, Paulo Guedes, não se sustenta nos fatos. O xis da questão é a dívida pública, que pode chegar a 100% do PIB, o que a torna um fator inflacionário inequívoco. A alta do dólar está aí para mostrar que o dragão está acordado e ruge, somente não dando as caras porque a atividade econômica é muito baixa. As saídas são uma reforma tributária competente e a reforma administrativa, mas isso não costuma dar votos para os governantes a curto prazo. Pelo contrário, tiram.

A velha CPMF de roupa nova

O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.

Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:

— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.


Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.

— O primeiro problema desse imposto é que a base de arrecadação não é estável, pelo contrário, é altamente reativa. Quanto maior a alíquota, mais a base encolhe. É como se o Imposto de Renda tivesse como efeito diminuir a massa salarial. Não é isso que se espera de um bom imposto — disse.

Um dos argumentos que a equipe econômica tem dito, agora com a permissão presidencial para defender o imposto, é que a base de tributação é ampla. Assim paga-se pouco porque todos pagam.

Não foi o que aconteceu no Brasil com a CPMF. Ela era cumulativa, virava uma grande taxação sem transparência, e dava aos maiores a chance de escapar. Grandes empresas levaram vantagem porque usavam a sua capacidade de verticalização. Ou seja, uma grande companhia podia aumentar o número de processos produtivos internamente, para evitar a compra e venda de produtos de terceiros.

Com isso, os pequenos negócios acabavam sendo sobretaxados. Além disso, criou-se um estímulo à informalidade. Albuquerque lembra que no Brasil começou a haver muitas trocas de cheques, que passaram a exercer função de moeda:

— As grandes empresas estavam criando quase que bancos internos com sistemas de compensação. Tentaram proibir isso, mas as pessoas são criativas, e quanto maior a alíquota maior o incentivo. É um imposto regressivo.

As propostas de taxação sobre movimentação financeira vêm da esquerda europeia, explica o economista, mas como forma de impostos regulatórios, como por exemplo sobre o mercado especulativo de ações. Ou inspiradas na Taxa Tobin, do economista James Tobin, que propunha tributar grandes movimentações financeiras internacionais:

— Há várias propostas de impostos eletrônicos na Europa, mas não são impostos que vão fazer o professor pagar mais. Não é para incidir sobre aluguel, sobre compras em geral, o objetivo não é esse.

Ele explica que o que se tenta é um tributo que incida sobre uma empresa grande como a Amazon, mas não sobre uma pequena. Não é para tributar cada transação eletrônica, é para tentar de alguma forma pegar a receita de grandes empresas de tecnologia.

— Com o Google a coisa complica ainda mais. Seria ir atrás da renda de propaganda, da publicidade, que é a fonte da receita da empresa. Não é para taxar a compra do cafezinho na esquina. Seria muito difícil politicamente na União Europeia se alguém tentasse colocar um imposto na conta-corrente do europeu. Seria um escândalo — afirmou.

A expectativa é que o ministro Paulo Guedes explique nos próximos dias e semanas o que pretende, afinal.