sexta-feira, 26 de julho de 2019

Malditos sejam os pecadores

No idioma aramaico, que Jesus e seus apóstolos falavam, uma mesma palavra significava dívida e pecado.
Dois milênios depois, os pobres do mundo sabem que a dívida é um pecado que não tem expiação. Quanto mais você paga, mais você deve; e o Inferno está à sua espera com os credores
Eduardo Galeano

A pobreza das desigualdades

As simplificações na definição das desigualdades sociais da população expõem a confusa pobreza do nosso entendimento das diferenças sociais que nos afligem. Será muito difícil compreender o jogo de manipulações políticas de que somos vítimas sem compreender quem são, de fato, os sujeitos do processo político brasileiro. Sem compreender que identidade têm e o que nela personificam socialmente, isto é, como manifestam e expressam sua diversidade e diferenças.

Os nomes classificatórios que damos, sem nenhum cuidado, tanto aos ricos quanto aos pobres, não expressam senão o viés ideológico que amortece nossa consciência social. Somos bons para inventar nomes para os outros e péssimos para reconhecer e compreender a condição social que expressa os interesses que demarcam seu agir e seu horizonte, seu ser propriamente social.

Em 2018, nos embates de rua, o vocabulário pobre de nossa política expôs nossa consciência: o Brasil está socialmente dividido entre "coxinhas" e "mortadelas". Os "mortadelas" não se deram conta de que muitos "coxinhas" daquele ontem eram "mortadelas" de anteontem. Do mesmo modo que os "coxinhas" de ontem já estão a caminho de se tornar os "mortadelas" de amanhã.


Nossa carência de consciência crítica nos faz supor que fazemos política porque somos contra os rótulos que colamos nos adversários. O que não nos faz a favor de uma sociedade nova e democrática, baseada no direito à diferença e no reconhecimento da legitimidade da pluralidade social.

As eleições de 2018 mostraram que nossos critérios de reconhecimento das identidades diferenciais da sociedade brasileira não correspondem às subjetividades respectivas. Nem correspondem ao que são as pessoas distribuídas por diferentes categorias sociais. Não temos clareza quanto a quem é o eleitor-protagonista, nem esse eleitor tem clareza quanto a quem elege.

Os técnicos do classificacionismo social têm uma concepção rentista da pobreza, baseada em bens e dinheiro. Há numerosas pessoas, sobretudo no Brasil rural, cuja condição social não é definida pelo ganho monetário, mas pelo modo de vida, até pela produção direta dos meios de vida. Falar em fome é necessário e urgente, mas a fome não decorre sempre nem apenas da insuficiência de dinheiro para sobreviver. Há os que não têm dinheiro, mas têm o que comer. E há quem tem dinheiro, mas passa fome.

Nem todo trabalhador é pobre. Nem todo rico não trabalha. Aliás, em nossas classificações estatísticas, nem todo rico é propriamente rico. A classe média entra de cambulhada tanto na categoria dos ricos quanto na dos pobres. Depende das conveniências de quem fala. Muitas vezes depende de quem quer lesá-la politicamente.

A polarização pobre e rico nunca deu conta da diferenciação da sociedade brasileira. Do mesmo modo, que nunca foi verdadeiro que os pobres votam na esquerda e os ricos votam na direita. O Partido dos Trabalhadores cresceu e chegou ao poder com o apoio decisivo dos ricos. Perdeu o poder porque seus adversários tiveram o apoio decisivo dos trabalhadores. Isso ficou claro nos resultados eleitorais da região do ABC, suposto reduto do PT. A sociedade muda e a política roda.

Somos uma sociedade caracterizada por uma diversidade de padrões de classificação social. O que os economistas dizem que são classes sociais não o são. São apenas estratos de rendimentos. O que muitos sociólogos dizem que são classes sociais nem sempre são. São agrupamentos de coincidências sociais.

Classe social envolve cultura de classe e destino. O que os diferentes grupos da população dizem o que eles próprios são é completamente desencontrado com a classificação que se lhes pode atribuir com base em critérios objetivos. Não levamos em conta, no esforço de entender a nossa diversidade social, que as pessoas nunca sabem exatamente o que são quanto à estrutura de classes sociais. Acham que são uma coisa quando na verdade são outra.

É impossível compreender esta sociedade de desigualdades tão peculiares sem compreender que elas são o rótulo das diferenças sociais e que uma sociedade como esta não pode existir senão pela mediação da falsa consciência que a desfigura e a viabiliza ao mesmo tempo. As categorias sociais vivem desnorteadas pelo desencontro entre o falso e o verdadeiro.

O PT jactou-se, em seus últimos anos de poder, de ter transformado o Brasil pobre num país de classe média. Muita gente acreditou nisso. É claro que, quando se assume essas rotulações sociais, supõe-se orientações no modo de falar, de vestir, de comer, de viver e de votar. Mas, em 2018, a população votou como classe média. Em 2002, votara como classe trabalhadora, o que de modo algum quer dizer classe operária.

Imagem do Dia


Deixem o Eduardo ir para os EUA

Pensando bem, talvez seja melhor o deputado Eduardo Bolsonaro sair de Brasília e sentar praça em Washington. O Brasil vai perder tendo o Zero Três como embaixador nos Estados Unidos, nenhuma dúvida, mas alguém acha que nossa relação com Trump seria diferente caso um diplomata de carreira assumisse o posto? Ora, o chanceler Ernesto Araújo cuidaria de escolher um que fizesse exatamente o que Eduardo fará caso seja aprovado pelo Senado. Isso é, alinhamento automático e bajulação explícita. Este é o nome do jogo com os Estados Unidos.

Com Eduardo ou com um embaixador de carreira, o quadro será o mesmo. Se o Zero Três for o nomeado, poupa-se o Itamaraty de mais um vexame, o de trazer à luz outro Ernesto Araújo. Embora muitos diplomatas não se submetam de boa vontade ao “faça o que eu estou mandando”, é da natureza da profissão atender às orientações e obedecer à política externa determinada pelo presidente. Em que pese a carreira ser a que mais requer conhecimento técnico e habilidade política no serviço público, não seria tão difícil encontrar um nome que reflita a imagem curvada do chefe.

Nos Estados Unidos, além de dar uns tiros no quintal de Olavo de Carvalho, Eduardo vai fazer exatamente tudo o que se espera dele. Ou seja, nada, nada de mais. Ou nada além do que um embaixador de carreira faria. Vai participar de algumas solenidades oficiais, frequentar e oferecer recepções e coquetéis, receber autoridades brasileiras e bater continência para Trump e sua tropa. Em todos os assuntos. Sobre a sua colaboração com Steve Bannon, o ultradireitista que ajudou a eleger o presidente americano, não se deve esperar muita coisa. Ou alguém imagina que Eduardo vai manter agenda permanente para trocar ideias e ajudar Bannon a formular políticas? Não, o Zero Três tampouco é qualificado para isso.

Aliás, se lhe fosse perguntado, Bannon diria que, para os seus propósitos, Eduardo seria mais útil no Brasil do que nos Estados Unidos. Aqui, o deputado é um dos filhos do presidente. Tem poder. Nos Estados Unidos, será apenas mais um embaixador. Um novato. Ninguém se impressionará por ele ter a confiança do presidente do país que representa. Por definição, todos os embaixadores têm o aval do chefe de Estado. Sua experiência nos Estados Unidos talvez seja a única coisa que o destacará dos demais. Duvido que outro embaixador estrangeiro em Washington tenha fritado hambúrguer no Maine.

Em razão desse poder que detém no Brasil, talvez seja melhor Eduardo fora de Brasília. O presidente perderá uma das pontas do seu tripé familiar, o que será bom para ele e para o país. Para ele, porque um pouco de insegurança e medo pode ser útil. A insegurança obriga uma reflexão mais calma e cuidadosa. O medo impede aventuras, passos maiores que as pernas, decisões atabalhoadas tomadas sem ter todas as consequências bem medidas. Para a nação, a ausência do Zero Três significará menos ruído. O problema é que Zero Um e Zero Dois saberão muito bem fazer barulho sozinhos.

Desigualdade social e populismo, o clamor das classes médias

Os protestos recentes de uma classe média enfurecida, em diferentes partes do mundo, representam um novo fenômeno, em tempos em que o combate à pobreza extrema teve alguns bons resultados. Sim, o número de pobres declinou no mundo todo e indicadores sociais tiveram avanços expressivos, mas sofrimentos distintos ganharam voz numa camada da população que se imaginava atendida pelo progresso das políticas públicas.

Contrariando Steven Pinker, que em seu brilhante "O Novo Iluminismo" mostra que a humanidade vem resolvendo seus principais problemas e que a desigualdade de renda não representa uma ameaça à coesão social, esses protestos mostram que, sim, há algo de novo no ar, na forma de tensões que clamam por respostas. A parcela da classe média que teve menor acesso a uma educação em nível mais elevado vem perdendo renda e oportunidades e atribui a culpa para seus dissabores, como ilustra bem o caso dos "gilets jaunes", à globalização, aos imigrantes, ao combate à mudança climática —no caso, dada a alta do preço do diesel— ou à ajuda humanitária a países de baixa renda.

Em recente entrevista publicada pela Folha, David Soskice se refere ao fenômeno, mostrando como o encolhimento das classes médias afetadas pelos avanços da tecnologia e pela consequente concentração de renda, típica da chamada quarta Revolução Industrial, tem acarretado certa convergência deles em direção dos mais pobres. Mas, esclarece o cientista político, isso não os leva a uma identidade de propósitos com eles.


Ao contrário, as classes médias, em especial as com menor formação, estariam dirigindo seu ódio ao inimigo errado. Qualquer medida voltada à redistribuição de renda ou a políticas de ação afirmativa, seria vista por eles como favorecer os "pobres não merecedores".

Com isso, a busca de salvadores da pátria que possam recuperar privilégios perdidos e tornar o país grande de novo, numa idealização do passado, torna-se uma consequência dos ressentimentos vividos por essa importante camada da população. Isso contribui para a emergência de governos populistas que se espalham pelo mundo, repetindo mantras contra um suposto "marxismo cultural" ou "globalismo".

Há certamente soluções possíveis. Paul Collier, em seu novo livro "The Future of Capitalism", propõe um receituário para as tensões atuais. Segundo ele, para refazer a coesão social, precisaríamos de boas políticas públicas, pragmatismo e o resgate do sentido de pertencimento e do respeito a obrigações recíprocas. Mas isso envolve transformações culturais, o que não as torna fáceis de implementar.
Claudia Costin

Imagina se fossem os russos

O ministro Sergio Moro foi ontem ao Twitter para afirmar que ninguém sofreu um hack por falta de cautela. “Não havia sistema de proteção hábil”, ele escreveu. Havia, sim. Autenticação em duas etapas, ou, na sigla em inglês, 2FA. É chatinho, mas não é difícil. O episódio da prisão dos quatro suspeitos de Araraquara traz à luz duas questões fundamentais que põem em risco a democracia brasileira. Uma é a inacreditável ingenuidade digital das autoridades públicas. A outra é que a paranoia, a mentira, a desinformação se impuseram de vez no debate público.

Se o Twitter é a rede de escolha para fluxo de informação do atual governo, é por ele que devemos fluir. No momento em que o site The Intercept Brasil começou a publicar as conversas vazadas da Lava Jato, esquerda e direita construíram cada qual o seu mito de origem. Ambos falsos no âmago.


A versão da esquerda, amplamente estimulada pelos jornalistas do Intercept, é de que quem levantasse a hipótese de que um hacker estaria fazendo o jogo dos vilões - compreenda-se, no caso, procuradores e o então juiz Moro. Naquela cegueira coletiva que as redes constroem, na qual um convence o outro da mesma história que nenhum fato sustenta, decidiu-se que a fonte deveria ser o que os americanos chamam de "whistleblower". Um funcionário, talvez do MP de Curitiba, que angustiado perante malfeitos fez-se herói, copiou os dados, e os encaminhou para os jornalistas.

Os fatos sugeriam o contrário. Um mês antes da primeira reportagem, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot já havia falado publicamente de ter sido vítima de um hacker, e daí vários outros casos pipocaram. Mais de um jornalista encontrou, tanto na Polícia Federal quanto no MP, histórias várias de violação por hackers. A convicção na esquerda de que não há hacker se tornou tão forte que, mesmo com a confissão de um deles, ainda assim tudo é uma trama de Moro e de sua PF. Uma conspiração, pois. Aquilo que a gente chama teoria conspiratória.

A versão da direita é ainda mais rocambolesca. Envolve pagamentos em bitcoins, poderosos hackers russos, o intermédio do americano Edward Snowden, e a compra do mandato de um deputado federal. São tantas as partes extraordinárias nesta história que surpreende alguém acreditar. No Twitter, massas acreditam.

Tanto a Polícia Federal quanto os técnicos que indiretamente se envolveram na investigação chegaram a cogitar a possibilidade de o hacker ser russo no início da investigação. A Rússia tem feito ataques cibernéticos por toda parte do mundo e as constantes ligações recebidas de madrugada pelas vítimas poderiam sugerir seu fuso horário. Mas faz mais de um mês que a investigação já havia detectado que o método tinha sido mais simples — este de caller ID spoofing. É mais simples do que clonagem, o celular apenas finge ter o número do hackeado. Não é um equipamento barato o que permite este mascaramento — mas, ora, mais de uma empresa no Brasil oferece este serviço por preços módicos.

Se no início pareceram hackers sofisticados, conforme foi-se avançando percebeu-se que, ora, eram hackers de Araraquara. Tiveram acesso ao Telegram do ministro da Justiça, dos presidentes da Câmara e do Senado, de ministros do Supremo, de pelo menos um ex-procurador-geral da República, delegados da Polícia Federal.

Enquanto aquela parte da população interessada em discutir política cria para si duas realidades paralelas que nunca se encontram, um estelionatário de terceira do interior paulista toma de assalto a comunicação da República. Vamos mal.

Imagina se fossem russos.