segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Tirania

Se ele se sentia bem na pele de profeta e de mestre, era certamente um homem livre. Mas, quando tentava colocar e esticar essa pele sobre o meu pescoço, tornava-se um tirano
Andrzej Szczypiorski, "Uma missa para a cidade de Arras"

Após anos de crise, Brasil recua no ranking de desenvolvimento humano da ONU

A ONU divulgou globalmente nesta segunda-feira seu relatório de Desenvolvimento Humano. O documento de 366 páginas alerta para a necessidade de se combater as novas formas de desigualdade no mundo - ligadas, por exemplo, ao acesso desigual a avanços tecnológicos e ao impacto das mudanças climáticas - para responder aos crescentes protestos sociais pelo planeta.

Além disso, a divulgação traz o novo ranking dos países classificados a partir do seu Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, sigla que se tornou conhecida como um parâmetro de bem-estar da população.

O relatório deste ano mostra que a longa crise econômica que o Brasil atravessa desde 2014 tem comprometido o avanço do país. O IDH brasileiro ficou praticamente estagnado em 2018, depois de ter apresentado baixo crescimento nos anos anteriores.


Com isso, aponta o documento, o país perdeu três posições no ranking global em comparação com 2013, aparecendo como a 79ª nação com melhor resultado no mundo.

O IDH varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de 1, melhor é a situação de um país. Em 2019, a Noruega manteve a liderança mundial com pontuação de 0,954. Na última posição entre os 184 países analisados está mais uma vez o Níger (0,377).

O Brasil aparece em 2018 com 0,761, resultado praticamente estável ante 2017 (0,760). Já em 2013, nosso índice era de 0,752.

Essa pontuação reflete o desempenho do país em quatro indicadores: esperança de vida ao nascer; expectativa de anos de estudo; média de anos de estudo (da população até o momento); e renda nacional bruta per capita (toda a renda do país dividida pelo número total da população)

O avanço da pontuação brasileira em relação a 2013 se deve a continuidade da melhora dos três primeiros indicadores. Por outro lado, o reflexo da crise econômica na renda da população impediu um avanço maior. Segundo o IBGE, há 12,5 milhões de brasileiros desempregados, o que representa quase 12% dos trabalhadores.

"O que não tem contribuído para o aumento do IDH no Brasil é a parte econômica, porque tem havido uma estagnação desde 2014, 2015. Esperando que a melhora da educação e da saúde se mantenha no futuro, a partir do momento em que a economia se recupere, o IDH do Brasil pode vir a crescer mais rapidamente", disse à BBC News Brasil o economista português Pedro Conceição, diretor do escritório da ONU que produz o relatório.

Conceição considera positivo, porém, o fato de o Brasil seguir em uma trajetória de melhora. "Embora o IDH esteja crescendo pouco nos últimos anos, continua a aumentar".

Segundo o novo documento da ONU, a esperança média de vida dos brasileiros ao nascer estava em 75,7 anos em 2018, contra 73,9 em 2013 - uma ganho de quase dois anos. Já a expectativa de anos de estudo passou de 15,2 para 15,4 no período, enquanto a escolaridade média evoluiu de 7,2 anos para 7,8.

A renda média do brasileiro, no entanto, recuou de US$ 14.275 para US$ 14.068 nessa meia década.

Vale explicar que a ONU utiliza o dólar internacional em paridade de poder de compra para estimar a renda nos países, fazendo uma comparação entre preços de produtos e serviços em diferentes países e nos Estados Unidos - é uma mediação considerada mais adequada para comparar o bem-estar em diferentes países e não representa a mesma cotação do dólar americano.

Nesses parâmetros, a renda média brasileira fica próxima da mundial (US$ 15.745) e da latino-americana (US$ 13.857). Já o grupo de países com IDH muito alto (a partir de 0.8), composto de 62 nações, tem renda média de US$ 40.122, também em paridade de poder de compra.

Enquanto o Brasil apresenta um desempenho mais modesto, o ranking evidencia a piora do IDH da Venezuela, país que enfrenta uma crise humanitária, com forte onda migratória.

Em cinco anos, o país caiu 26 posições no ranking para o 96º lugar. Sua pontuação ficou em 0.726 em 2018 contra 0.772 em 2013.

O Brasil está na categoria de "alto desenvolvimento humano" e tenta chegar à mais elevada no ranking, o grupo com "muito alto desenvolvimento humano".

Na comparação com os demais países do seu atual grupo, o Brasil tem apresentado ritmo de crescimento do IDH menor que a média de 2010 para cá. No entanto, o avanço brasileiro tem sido melhor do que a média de América Latina e Caribe.

A ONU ressalta, porém, que a desigualdade social ainda elevada faz com que os níveis de desenvolvimento variem muito dentro do Brasil.

O IDH é uma média dos indicadores do país - ao ajustá-lo pela disparidade de renda e de acesso à saúde e educação, o organismo considera que a pontuação brasileira recua para 0,574. Como a desigualdade brasileira está entre as mais altas do mundo, esse ajuste derruba o país em 23 posições no ranking.

Um dos temas do relatório desse ano é justamente destacar que as "médias" escondem muitas desigualdades pelo mundo. Nesse sentido, a ONU chama atenção para a lentidão da redução do fosso entre homens e mulheres no mundo.

Após uma queda relevante entre 1995 e 2010, a disparidade de gênero - medida por meio de indicadores de saúde, educação, inserção no mercado de trabalho e participação política - tem recuado mais lentamente na última década, segundo o relatório.

A seguir no ritmo atual, levaria 202 anos para que mulheres tenham as mesmas oportunidades econômicas que homens, por exemplo.

O relatório destaca que houve avanços importantes nas últimas décadas, como o aumento do acesso de meninas à educação e o combate à violência de gênero por meio de movimentos como #MeToo e #NiUnaMenos, mas enfatiza a ainda baixa presença feminina em cargos de comando na política e as mobilizações de contestação ao feminismo como a campanha contra uma suposta "ideologia de gênero".

"Há sinais preocupantes de dificuldades e reversões no caminho da igualdade de gênero, para (o aumento das) chefes de estado e de governo e para a participação das mulheres no mercado de trabalho, mesmo onde há uma economia dinâmica e paridade de gênero no acesso à educação", diz um trecho do relatório.

"E há sinais de reação (aos avanços conquistados). Em vários países, a agenda de igualdade de gênero está sendo retratada como parte da 'ideologia de gênero'", continua o documento.

Não é justo

Na madrugada, o barulho de gente correndo pelos becos de uma favela. No fim do beco uma grade, como nas prisões. Encurralados, morrem nove, outros são feridos. Sem saída. Como em um pesadelo. Eram adolescentes, quase crianças, que se divertiam numa festa. Não estarão em casa no Natal.

Há vídeos que mostram a polícia jogando bombas, batendo com cassetetes nos que tentam escapar ao tumulto. A cena é degradante, o gesto inominável. Uma autoridade põe em dúvida a veracidade das imagens, e o governador de São Paulo, o rosto gélido em que pretende imprimir a firmeza e a autoridade que os fatos desmentem, reafirma a eficácia da polícia e a continuidade de seus métodos. Dias depois, confrontado às mães das vítimas, admite “rever protocolos”. Não é justo.


Não é justo é o que dizem todos os pais e mães que mandam os filhos à escola e recebem de volta um cadáver e uma camiseta ensanguentada. Na dor da impotência face à impunidade gritam essa queixa. Mais um “erro operacional grave” da polícia, na expressão do ministro da Justiça. Erro? Não, impunidade que autoriza a reincidência.

Que desgraça, que tristeza, que vergonha! Onde foi parar a elementar compaixão que faz chorar nas tragédias e sentir revolta face à injustiça? Até quando governantes seguirão mentindo, sem piedade dos que perdem seus filhos, como se as vítimas não fossem ninguém? E, sobretudo, sem culpa, sem remorso, essa insensibilidade de que só os psicóticos são capazes. Até quando vão negar a humanidade dos que precisam de amparo e proteção?

A frieza, a insensibilidade das autoridades é assustadora. Essa insensibilidade é contagiosa, uma tara que se espalha pela sociedade enquanto se vende a imagem de um inimigo sem rosto que se esconde nas favelas e que justifica a violência cega que atinge qualquer um.

O perigo mortal não vem das favelas, vem de dentro de cada um: habituados ao horror em um convívio cotidiano, nos tornarmos, silenciosos e indiferentes, cúmplices por omissão do assassinato de crianças.

Não é justo.
Rosiska Darcy de Oliveira

Das ruas à moradia própria

André Kurkowiak diz estar particularmente orgulhoso de seu banheiro. Ducha, rádio integrado, lavatório espaçoso: um mobiliário que parecia inacessível apenas cinco anos atrás. Dependente de heroína, ele ocupava na época uma pequena cela na penitenciária. No total, ele passou dez anos nas ruas, em abrigos e na prisão.

Nos últimos três anos, ele tem chamado de seus os 34 metros quadrados de seu apartamento. Sem janelas gradeadas, mas com contrato de aluguel e chave própria. Isso foi possibilitado pela organização fiftyfifty de Düsseldorf. Há cerca de quatro anos, ela vem adotando uma metodologia de assistência aos sem-teto que se autodenomina "Housing first" (habitação em primeiro lugar).

A ideia é simples: os sem-teto recebem suas próprias quatro paredes sem pré-requisitos – mesmo que sejam viciados em drogas ou doentes mentais. A intenção por trás disso: num ambiente estável, problemas, como um vício, são mais fáceis de resolver. Além disso: após a mudança, os novos inquilinos não são forçados a participar de ofertas adicionais de ajuda. Tudo acontece de forma voluntária, incluindo a assistência posterior.

"Também defendemos uma mudança de paradigma na assistência habitacional", diz Julia von Lindern, assistente social e responsável por "Housing First" na organização fiftyfifty. "É uma questão de atitude, se assumimos que alguém deve primeiro estar capacitado a habitar uma residência antes de poder se mudar. Pensamos que se aprende melhor a conduzir um domicílio, conduzindo um domicílio".

Número de moradores de rua é crescente na Alemanha
Os números apoiam a abordagem: em vários estudos, registrou-se uma alta quota de êxito do programa, ou seja, de retenção dos participantes em seus domicílios, com porcentagens entre 75% e 90%. Isso também é confirmado na organização fiftyfifty: das 62 pessoas que se beneficiaram do programa até agora, apenas quatro retornaram às ruas.

Em Düsseldorf, uma equipe de seis funcionários cuida dos desabrigados desde o primeiro contato até a mudança. "Acompanhamos as pessoas do saco de dormir até o domicílio próprio", diz Von Lindern. Isso cria confiança. E é essencial para a metodologia "Housing First", explica Nora Sellner, pesquisadora do Departamento de Bem-Estar Social da Universidade Católica da Renânia do Norte-Vestfália.

Segundo Sellner, a metodologia prevê que "equipes multiprofissionais vão até as pessoas e lhes ofereçam um mínimo de assistência". Essa equipe multiprofissional pode incluir uma assistente social, um psiquiatra e um médico.

Apesar de seu próprio apartamento, André Kurkowiak vai todos os dias ao café comunitário da fiftyfifty. Ele ganhou confiança, conhece os funcionários e outros ex-moradores de rua: "Estou muito feliz no meu apartamento, mas às vezes me sinto sozinho".

Segundo Julia von Lindern, a depressão é de fato um problema que pode ocorrer no domicílio próprio. Nem todos os problemas são resolvidos somente porque as pessoas têm seu próprio apartamento, diz Von Lindern, apontando que alguns continuam viciados em drogas ou alcoólatras.

Devido ao seu vício, também André Kurkowiak vai ao médico todos os dias para tomar metadona, produto substituto da heroína. Ele também diz beber álcool regularmente. Kurkowiak explica que não deve se livrar disso nessa vida. "É por isso que as pessoas não perdem o apartamento", diz Von Lindern. "Se eles nos falam modestamente que voltaram a beber, dizemos: isso acontece. E como vamos resolver isso?"

Originalmente, a metodologia foi desenvolvida em Nova York e tinha um grupo-alvo claro: pessoas que já estavam nas ruas há muito tempo, com doenças mentais e problemas de dependência. Atualmente, a abordagem não só foi seguida de forma modificada nos EUA, mas também se estabeleceu em vários países europeus. A Finlândia chegou a declará-la estratégia nacional – e foi o único país-membro da União Europeia a reduzir o número de pessoas sem-teto.

Se isso se deve unicamente ao "Housing First", não se pode dizer claramente, aponta Nora Sellner. "Mas o que se pode dizer é que a Finlândia tem uma estratégia clara que está sendo e deverá ser implementada em todo o país. Eles assumem essa atitude da metodologia 'Housing First', de que todo ser humano tem direito a uma moradia, e isso também chegou à política. Trata-se de algo que ainda precisamos alcançar aqui na Alemanha."

Na Alemanha, a abordagem "Housing First" é adotada apenas timidamente na assistência aos sem-teto. Düsseldorf e Berlim avançam com seus próprios projetos. Mas também cidades como Colônia, Bremen e Hannover estão seguindo o exemplo. O maior obstáculo é sempre o mercado imobiliário competitivo, especialmente nas metrópoles.

Pois, segundo a metodologia "Housing First", os sem-teto devem morar em seus próprios apartamentos como inquilinos independentes. Isso também significa que é preciso encontrar proprietários dispostos a alugar moradias para ex-moradores de rua.

Em Düsseldorf, a associação fiftyfifty age de forma diferente. Com a ajuda de doações e a venda de obras de arte, a organização compra os próprios apartamentos. Eles se tornam proprietários e assim também senhorios.

A maioria dos apartamentos comprados pela organização fiftyfifty estão localizados fora dos centros urbanos. "Assumimos o compromisso de não gastar mais que 3 mil euros por metro quadrado", diz Julia von Lindern. "Assim se torna muito difícil comprar algo no centro da cidade."

Em média, a organização gasta entre 70 mil e 90 mil euros na compra de um apartamento. Isso é muito, diz Julia von Lindern, mas no geral sai ainda mais barato que a ajuda habitacional clássica, no qual 18 meses de moradia assistida pode custar por pessoa cerca de 250 mil euros.

André Kurkowiak teve sorte: seu apartamento está localizado no centro da cidade de Düsseldorf, a menos de 15 minutos da estação ferroviária central. "Posso fazer o que quiser. Posso ir a qualquer lugar de bonde, há supermercados na esquina. E desde que moro aqui, sinto realmente que estou vivendo", diz Kurkowiak, ressaltando que nos três anos que mora ali, ele nunca pensou em voltar para as ruas.

Papai Noel no Brasil


A pós-verdade no poder

Minha formação cultural se deu principalmente no século XX recheado de rocambolescas teorias revolucionárias. De um modo geral, eram apostas no futuro, uma inconsciente reconstrução do paraíso. Se há algo no século XXI para o qual custo a encontrar o tom adequado de lidar é esse período de pós-verdade, em que as evidências científicas ou não são atropeladas por narrativas grotescas.

O intelectual francês Bruno Latour considera que esse período foi de uma certa forma inaugurado por Colin Powell quando apresentou falsas evidências de armas de destruição em massa, antes da invasão do Iraque. Mas a tendência era muito mais forte, e aqui nos trópicos deságua no terraplanismo, na mamadeira de piroca, na crença de que o filósofo alemão Theodor Adorno escrevia as músicas dos Beatles, que John Lennon tinha um pacto com o diabo, que o rock leva ao aborto, que por sua vez leva ao satanismo. Como lidar? Às vezes, lembro-me da infância e dos conselhos paternos muito presentes nos adultos mineiros: não contrariar.


Lembro-me de uma ambulância que parou na porta do vizinho, um grupo se formou e, sem contato com os médicos e enfermeiros, alguém afirmou: “Foi leite com manga, certamente foi leite com manga que derrubou o vizinho”.

Essa ideia de não contrariar as afirmações malucas me acompanhou nos anos de juventude. No livro “O que é isso, companheiro?”, relato o caso de um louco que acordou gritando quando estávamos presos em Ricardo de Albuquerque. Ele tentava em voz alta, desesperadamente, ajudar a encostar um caminhão imaginário e às vezes se alarmava: “Vai bater, vai bater”.

Não conseguíamos dormir com aquele barulho. O único caminho foi ajudá-lo também em voz alta a encontrar o caminhão. Avançamos num ritmo conjunto até que conseguimos estacionar aquele maldito caminhão nas nossas exíguas celas de um distrito policial.

Mas essa tática é ineficaz quando se dizem coisas absurdas em nome do governo, sobretudo as que influenciam o destino de milhares de pessoas, a própria realidade histórica do Brasil. Dizer, por exemplo, que a escravidão foi boa para os negros é um título de loucura que você não apenas pode como deve contrariar. Inclusive destituir legalmente essa nomeação. Muitos adeptos do governo consideram apenas a economia, o combate ao crime e a gestão da infraestrutura como pontos essenciais. O resto seriam apenas borbulhas inconsequentes. Mas um país não se reduz à economia, à infraestrutura e ao combate ao crime. Ele é tecido de múltiplas teias que se interpenetram.

Considerar como apenas perfumaria nossa história de escravidão, tentar que revolvam nos túmulos nossos formadores — como Joaquim Nabuco, mas sobretudo milhares de negros açoitados e assassinados — é introduzir um elemento de corrosão que apodrece todo o tecido nacional.

Se tivesse tempo, iria me divertir demonstrando que Theodor Adorno jamais escreveria um verso como esse: “Help, I need somebody”.

Essa loucura é do gênero que não se precisa tanto contrariar. É preciso reservar um espaço para as de Bolsonaro. Elas repercutem na imagem do Brasil. Quando um presidente acusa um astro de Hollywood de financiar queimadas, ele nos expõe à autocombustão no conceito internacional.

Economia e infraestrutura não se fazem sozinhas. Política de segurança é algo muito complexo para se focar apenas na repressão. Andei por Paraisópolis para realizar um programa de televisão. O governo estadual afirmou que cumpriu o protocolo, e isso não foi entendido pelas pessoas. Se cumprir o protocolo leva à morte de nove jovens, alguma coisa estava errada nesse protocolo.

Certamente algo terá de mudar, assim como a própria ideia desses bailes funks chamados pancadões precisa ser, de uma certa forma, adaptada à vida das pessoas. Senti em Paraisópolis que há pessoas doentes, falei com muitos idosos, vi muitas gestantes. Elas não frequentam baile funk, mas são atingidas por ele. Não tenho uma saída no bolso. Aliás, fui ouvir as pessoas em que sentido apontam para se equacionar o problema.

Andamos por um território sensível cada vez mais acossados pela realidade, e os terraplanistas investem contra o rock e o satanismo. No século passado, os grandes, os chamados loucos de Deus, deixavam todos os confortos materiais para seguir sua orientação religiosa. O século virou, e hoje os loucos entram no governo e já nem se lembram mais de Deus, siderados que estão no combate ao satanismo. Da busca da verdade à pós-verdade o novo século me desconcerta.

A implosão da mentira

Fragmento 1

Mentiram-me.Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.

Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Affonso Romano de Sant’Anna

Número melhor e horizonte opaco

Os números nas planilhas dos economistas dos bancos começam a ficar ligeiramente melhores para este ano e o próximo. Os dois maiores bancos privados do país na sexta-feira correram para divulgar que mudaram de 2,2% para 2,5% a previsão para o PIB de 2020. Para este ano, o dado se move para 1,2%. A grande pergunta é se entramos numa nova fase da economia que levará a um crescimento sustentado. Ainda não. Projeção não é fato. Em janeiro, a mediana era que o PIB subiria 2,6% em 2019. Mas aconteceu sim um fato que altera o quadro econômico: o fantasma do insolvência do país foi afastado.

No meio da recessão de 2015-2016 foi assustador ver o ritmo de crescimento da dívida. Ela era cara, alta e crescente. O custo da dívida chegou a ser quase 9% do PIB ao ano e hoje está abaixo de 5%. Ela subiu de 52% em 2014 para 79% em 2019. E o déficit primário alimentava esse crescimento. A projeção do Itaú é que sem o teto de gastos e a reforma da Previdência iria para 104% no final da próxima década. Como toda a poupança das famílias, das empresas, dos fundos de pensão, do setor financeiro está lastreada por títulos públicos, as projeções assustavam. O temor não era superar 100% do PIB, nível nunca antes atingido, mas o de, em algum momento, haver uma crise de confiança na capacidade de o Tesouro pagar seus títulos. Os poupadores em geral poderiam achar que o Tesouro não honraria sua dívida e isso geraria uma crise de proporções inimagináveis.

Esse temor está ficando para trás. Por vários motivos. A queda dos juros de 14,25% no começo do governo Temer até os 4,5% que deve chegar na próxima reunião do Copom alterou completamente a equação. A reforma da Previdência reduzirá o ritmo de crescimento do déficit do sistema de pensões e aposentadorias. Se o país crescer, fica mais próximo o horizonte de estabilização da dívida/PIB. Essa é a grande diferença.

O afastamento desse fantasma começou no governo passado, continua no atual, mas não é simples distribuir os méritos. O presidente Jair Bolsonaro nunca se envolve com qualquer pauta de ajuste fiscal. Quando a equipe econômica defende uma reforma ele levanta questões corporativas. Se é reforma da Previdência, ele protege policiais e as Forças Armadas. Se é reforma tributária, ele pune quem fala em cobrar impostos de igreja. E por fim ele acabou empurrando tudo para o ano que vem, usando o argumento de que há riscos de manifestações. Seu ânimo reformista é nenhum. A reforma da Previdência foi aprovada em grande parte pelo esforço do próprio Congresso.

A equipe econômica não apresentou ainda sua proposta de reforma tributária. Quando fala dela são ideias descosidas. Eles querem suspender o subsídio à cesta básica com o argumento de que há nela produtos que são consumidos apenas por quem tem renda mais alta. Poderiam começar tirando da cesta básica os itens do consumo da classe média e dos ricos. Dizem que vão usar R$ 4 bilhões dos R$ 16 bilhões dessa renúncia fiscal para beneficiar diretamente os mais pobres. O problema é se eles saberão fazer isso. A tentativa de mudança do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, agora, a proposta de taxar os desempregados para financiar o programa de primeiro emprego mostram falta de intimidade com a questão social brasileira. Falam em acabar com as deduções de saúde e educação no IRPF, mas ao mesmo tempo pararam de falar na redução das grandes transferências de recursos públicos através dos subsídios aos grupos e setores empresariais. Há falta de foco e pouco horizonte para as reformas.

Para que se possa ter mais confiança na retomada da economia será preciso fazer mais ajuste fiscal do que já foi feito. Isso vai contrariar interesses que o governo está demonstrando não querer contrariar, e exige uma compreensão do processo econômico que o presidente não tem, nem mostra disposição para entender.

Além disso, há sombras demais no governo. O ajuste das contas públicas só é bom se tem critério. E sempre será apenas a base de um projeto de país. As políticas ambiental, educacional e cultural — para falar apenas de algumas áreas em que as decisões são mais toscas — mostram que esse governo não entendeu o futuro. O país provavelmente terá um alta do PIB de 2% no ano que vem, mas não é isso que vai garantir o crescimento sustentado.

A razão das ruas e o impasse na America Latina

América do Sul se mostra em estado de turbulência e sem uma tendência definida que consiga orientar o processo político. Com protestos de distinta natureza em outubro e novembro no Equador, Chile, Bolívia, Colômbia e Peru, o jogo político migra das instituições para o movimento social, sem que a política partidária encontre respostas ou formas de fechar a crise que as mobilizações escancaram.

Na Argentina e no Brasil, sem recentes grandes manifestações de rua, os líderes políticos concentram um alto grau de atenção ao redor de si. Mas o desencantamento generalizado não é diferente aos dos países vizinhos, e o fim do progressismo não se traduz no começo de um ciclo conservador politicamente estável. A alternância política, vivida de forma escatológica, não constitui também um sistema bipartidarista, como nas décadas que seguiram a redemocratização. É possível que os consensos que sustentam o modelo social e político tenham se tornado obsoletos, além de injustos e para poucos, como nasceram, herdeiros da ditadura militar. Mas toda a classe política ainda funciona com eles, garantindo sua vigência e fortaleza, e enfrentando de forma conjunta, por tanto, a oposição das ruas, linha de frente do momento atual.

Na Bolívia e no Chile os protestos de outubro se iniciaram contra os presidentes Piñera e Evo Morales, mas a situação política aberta pelas ruas parece se deslocar para além. Nos dois países com Governos de esquerda e de direita que apareciam com maior estabilidade econômica na região, a crise não se acalma, mas se afasta do conflito pela reeleição, na Bolívia, e da renúncia de Pinera, no Chile. A partir de um acordo com participacao dos legisladores do próprio MAS (Movimiento al Socialismo) de Morales, que mantém maioria no Legislativo boliviano, foram convocadas eleições sem a participação do Evo Morales e a sua volta não parece ser o que organize a política boliviana daqui pra frente, para além de alguns setores.

Mesmo retirados do poder, partidos alimentados pelo sistema não conseguem romper com a lógica com que se acostumaram a funcionar. Ocorreu com o kirchnerismo, que depois da derrota frente a Macri encontrou legisladores próprios construindo maioria com o novo Governo. Também com o Partido dos Trabalhadores, que pouco depois da destituição da Dilma Rousseff continuou fazendo alianças eleitorais com os partidos considerados golpistas. A radicalização discursiva convive com um jogo institucional, eleitoral e da administração burocrática contrária à mobilização e disputa política que busca mudanças.

No Chile, a renúncia de Sebastián Piñera deixa de ser o foco, e nenhuma liderança aparece como salvação. A força das ruas parece afastar a ideia de que a solução virá de cima. É o fracasso do sistema privado de aposentadoria, a mercantilização da saúde e da educação, o custo de vida, e as dificuldades impostas pelo neoliberalismo que estão centralmente em pauta. Buscando recuperar iniciativa política, o Governo faz acordos com a esquerda partidária e convoca um processo constituinte. A esquerda vota a favor de legislação repressiva, e dá lugar a uma convenção constituinte que garante poder de veto para a direita. Numa assembleia nas mãos dos partidos, provavelmente, o conflito aberto pelas ruas não será facilmente encerrado.

O ciclo progressista não é mais possível da forma como foi caracterizado entre dez e cinco anos atrás, com o aproveitamento de preços altos de commodities, aumento do crédito e consumo, bom trato com os poderes empresariais que geraram lucros históricos para o poder financeiro, desonerações fiscais para grandes empresas, e expansão do agronegócio sem precedentes. Políticas sociais e de cultura pretendiam equilibrar um modelo que não deixou de ser de concentração de renda e desigualdade. Crescimento e consumo aconteciam sem ruptura com as bases de uma democracia de poucas famílias donas do poder.

Depois do progressismo, e sem ruptura com as bases da organização econômica ou das políticas públicas de transferência de renda, novas e velhas direitas ganham eleições, mas não conseguem estabelecer uma nova hegemonia. Como no Chile, o Governo colombiano de Iván Duque, também de direita, enfrenta forte oposição das ruas. Bolsonaro no Brasil exibe grandes problemas para sustentar uma base parlamentar e para mostrar uma melhora econômica que beneficie a população. Até agora, só tem um discurso autoritário que se presenta contrário às instituições, mas que tampouco se mostrou capaz de organizar uma base mobilizada de sustentação nem de unificar politicamente as distintas direitas obscurantistas —liberais, conservadoras e oportunistas— que congrega.

A falta de legitimidade política do novo Governo na Bolívia, de Jeanine Añez, apenas o autoriza a chamar novas eleições, enquanto o MAS se habilita para disputar a presidência com novos candidatos, a ser indicados por Evo Morales. O vácuo de hegemonia deixa o MAS com chances de conseguir, por um caminho mais longo, um retorno ao poder parecido ao conseguido pelo kirchnerismo na Argentina que, abrindo mão da centralidade do líder, preserva espaços de poder. Assumindo um tom moderado que seduz setores médios, os consensos que governam o sistema obtêm garantia com esquerdas da ordem, tanto quanto com direitas que assumem diretamente o cuidado dos interesses dos de cima.

No Equador, o presidente Lenin Moreno, que buscou ocupar o lugar deixado pelo Rafael Correa, de quem foi vice-presidente, enfrentou 11 dias de rebelião quando decretou medidas impopulares como o fim de subsídio do combustível, aumento de impostos e corte de férias para funcionários públicos. A fraqueza de Moreno, no entanto, não abre caminho para a volta do correísmo, derrotado na tentativa de buscar uma aliança com o movimento social que paralisou o país com mobilizações. Na voz das organizações indígenas, com destaque nos protestos, a oposição ao Governo vinha junto à oposição à volta do ex-presidente que, como os outros governos progressistas, não se diferenciou dos governos de direita no que diz respeito nem às grandes obras que feriram os territórios e a autonomia de comunidades indígenas e tradicionais nem à criminalização do protesto.


A força das mobilizações remete aos protestos de 20 anos atrás, como em dezembro de 2001 na Argentina, a Guerra da Água na Bolívia em 2000, num ciclo global de mobilizações iniciado em Seattle em 1999 e que nunca se concluiu, com frequentes mobilizações indígenas e camponesas nos Andes, marchas e levantes contra ajustes, ou como os protestos iniciados em junho de 2013 no Brasil, e as mobilizações mais recentes de estudantes, camponeses e indígenas na Colômbia, Chile e Equador. Novamente, as ruas alimentam uma busca de auto-organização dos de baixo com força social e autonomia. Dessa vez, no entanto, não parecem se abrir saídas partidárias ou populistas, com líderes que centralizam a iniciativa política conseguida por movimentos e lutas sociais.

Contra líderes que se tornam alvos fáceis de novas direitas, vemos indignação e revolta que os excede, em movimentos de destituição seguidos de novas administrações e líderes que enfrentam protestos ou desencanto, sem apoio mobilizado fora do tempo das eleições. A aparição de uma direita autoritária e mais virulenta, com discurso de ódio, ausente no ciclo progressista, antagoniza e restaura o progressismo, que também não se retira definitivamente. Nesse jogo, porém, o resultado é o aumento da visão generalizada de falta de alternativas por dentro do sistema.

A queda do Evo Morales, na Bolívia, se ajusta ao mesmo momento regional, de dissolução de hegemonias institucionais. Ela se produz depois de uma derrota eleitoral, em 2016, num referendo em que a maioria votou “não” à reforma da Constituição que permitiria uma nova reeleição —o resultado foi contrariado pelo Tribunal Constitucional que, sob pressão polìtica, autorizou a candidatura, gerando o conflito atual. Depois de 20 dias de protestos nas cidades, uma vitória eleitoral controversa se tornou insustentável para o MAS quando a auditoria da OEA solicitada pelo próprio Governo recomendou a realização de novas eleições, e houve desobediência das forças de segurança para conter a mobilização social.

Sem o Evo, a chegada da direita associada à elite do Oriente do País, como a de Mauricio Macri na Argentina em 2015, e de Bolsonaro no Brasil em 2018, não se explica pela força política própria, mas pela perda do apoio popular que interrompe mais de dez anos de governos sucessivos de signo plurinacional, progressista, populista, bolivariano ou de esquerda. A oposição regional que desde a posse do Evo Morales em 2006 buscou desestabilizá-lo tinha sido neutralizada em 2008, num referendo revocatório contra Morales, cuja vitória por 67,4% isolou a oposição e deu lugar à aprovação da nova Constituição Plurinacional. Mas o preço da consolidação política e avanço do MAS sobre as instituições seria abrir mão das mudanças, negociando, já na própria Constituição, com as elites políticas e econômicas que aprenderam a conviver com um progressismo amigo, e mesmo com Estado Plurinacional quando garantidor dos velhos consensos.

A escolha pela conciliação, os negócios, o desenvolvimento predatório em países de forte perfil de provedor de matérias primas, se afastando das agendas que os ergueram no poder, foi desidratando rapidamente governos populistas ou progressistas. Do outro lado, direitas que se constroem em base na retórica midiática, oposição à corrupção que não se sustenta como linha política uma vez no governo, falta de prometidas respostas para os problemas endêmicos, e dificuldades econômicas que abatem governos de qualquer signo político, abrem a possibilidade, clara hoje para a população do Chile mais do que em nenhum lugar, que para além de sucessões presidenciais, disputas eleitorais e no Judiciário, de colocar o foco da política no arranjo neoliberal e sua continuidade de décadas.

A força eleitoral da direita chilena, mostrada pelo triunfo do Piñera em 2017, mostra pés de barro, como também foram as vitórias recentes da esquerda, incluindo na Venezuela, momentaneamente à margem da dinâmica das ruas. Mais de um mês de protestos diários de rua no Chile, com ocupações de escolas, greves gerais, organização de assembleias populares, com uma visão política que necessariamente passa pela constatação de que a alternância política entre progressismo (neoliberal, de Bachelet) e direita não alterou a estrutura que governa por trás do espetáculo eleitoral e o enfrentamento ideológico desenraizado das disputas concretas com o poder econômico.

Junto com a política das ruas, a repressão policial e militar ganha espaço, gerando diferenças internas no campo da própria direita no poder. Com respaldo de setores políticos conservadores, e também progressistas, a repressão aos protestos expõe a violência institucional que cotidianamente está presente na militarização de bairros populares, encarceramento em massa e assassinato de líderes sociais em vários países. A insistência em limitar a política ao espaço das instituições, no entanto, só aumenta o desencanto porque não há respostas que se mostrem possíveis e à altura da força que mostram as mobilizações, quando estas despertam.

Nas ruas hoje não se encontram respostas e soluções políticas para ser aplicadas. Mas se encontram caminhos para questionar as armadilhas de um sistema que tende a eliminar o trabalho não precário e os espaços da vida não submetidos ao capitalismo. Coloca-se em pauta a destruição de florestas com expansão de um modelo de destruição, que propõe formas de vida miseráveis. Nas ruas, e para além da disputa presidencial, os acordos que estruturam o modelo se visualizam de forma mais nítida e massiva.

Para além de uma política partidária e institucional que entra em desespero e não encontra resposta, estudantes tomam a iniciativa política, grupos de mulheres politizam e ocupam as ruas, povos indígenas lutam pelo autogoverno pondo em pauta o modelo de desenvolvimento, cada vez mais questionado, assembleias de bairro criam afinidade entre vizinhos e se organizam para a manifestação ou a crítica da sociedade do consumo. Nas ruas, o mundo da mercadoria, as dívidas, a falta de horizontes, encontram um lugar de existência política que já é uma resposta e alternativa.

O neoliberalismo se mostra poderoso em governar uma força de trabalho desorganizada e em mercantilizar cada vez mais espaços de vida, mas nas ruas uma nova força política desenvolve ferramentas para enfrentar os desafios de governos, novas direitas, continuidade de um sistema elitista para poucos. A oposição ao neoliberalismo nas ruas coloca a autonomia como alternativa à saída populista ou progressista e, retomando antigas mobilizações, transcende o chamado das instituições para que todo mundo volte pra casa e confie em líderes e em partidos.
Salvador Schavelzon 

Todo passado que vem por aí

Cada vez que recorro ao Google para uma pesquisa qualquer, penso na falta que faz uma ferramenta que nos permita consultar as próximas 24 horas, com a mesma facilidade com que consultamos as últimas.

Por outro lado, morro de medo de que ao pesquisar, por exemplo, “Governo Bolsonaro, próximos seis meses”, os resultados me atirem para um passado remoto, digamos, uns cinco séculos atrás.

Recentemente, ao passar os olhos pelo Facebook, fui surpreendido por um debate animado, tendo como foco as declarações de um membro do atual governo brasileiro, que defende o terraplanismo. Pessoas inteligentes, sérias e respeitáveis afadigavam-se, listando argumentos para justificar a sua convicção de que vivemos num planeta esférico.

Daqui a pouco estaremos discutindo, com idêntico esforço e seriedade, se os negros têm alma. Com mais dois ou três anos de governo Bolsonaro, haverá acadêmicos defendendo teses nas universidades brasileiras sobre a justiça e a rentabilidade do sistema escravocrata, e as melhores opções para o reconstituir, juntamente com a monarquia. Generais e almirantes estudarão a possibilidade de enviar uma armada para libertar Luanda dos angolanos, relançando a rentável e proveitosa importação de mão de obra africana, não remunerada.

Os mesmos políticos começarão a defender o regresso da Santa Inquisição, desta vez não já subordinada à Igreja Católica, mas à IURD, para perseguir comunistas, maconheiros, os hereges católicos papistas, os satanistas do candomblé e da macumba, e toda essa colorida trupe de transviados sexuais, que Lula e o PT tiraram dos armários.

Lula, aliás, será dos primeiros a arder na pira. Muitos se seguirão, incluindo, suspeito, a generalidade dos escritores brasileiros (e quase todos os colunistas deste jornal).

Em vez de discutir a esfericidade do globo, que me parece um tema basicamente chato, preferia debater outros assuntos, igualmente em voga na Idade Média. Por exemplo, a carne dos barometz, os famosos carneiros tártaros, que comprovadamente brotam dos frutos de uma grande árvore, pode ou não ser considerada vegetal? E, sendo considerada vegetal, podemos então consumi-la durante o jejum pascal sem receio de ofender a Deus Nosso Senhor?

Outra questão: neste plano planeta em que habitamos, onde se encontram, afinal, os cinocéfalos, as melosinas e as sereias? Tenho mais interesse nas sereias e nas melosinas do que nos cinocéfalos, essas prodigiosas criaturas com corpo humano e cabeça de cão, mas ainda assim gostaria de saber em que país se escondem. Talvez o feiticeiro imperial da nação, pai espiritual do grande líder e de todos os terraplanistas brasileiros, o filósofo Olavo, nos possa esclarecer.

Sejamos sinceros: o que o Brasil tem hoje não é um governo — é um anacronismo. Nem Bolsonaro nem os seus ministros produzem algo que se assemelhe a um pensamento novo. Eles não são capazes de gerar ideias — apenas recordações. Muito menos ideais. Fico com a impressão de que Bolsonaro nem sequer pertence ao domínio da análise política, mas da paleontologia. Nunca o passado foi tão ameaçador.