domingo, 16 de junho de 2024
Você realmente viveu melhor com Franco?
Por muitas razões, o Brasil acompanhou as atormentadas eleições europeias mais de perto do que no passado, com os olhos postos numa possível vitória da extrema direita. A primeira razão foi a situação política deste país onde, apesar da vitória do progressista Lula da Silva, a direita, a do líder golpista Jair Bolsonaro, continua a lutar para se manter viva.
O analista político Merval Pereira saiu imediatamente para tranquilizar as forças progressistas. Segundo ele, os resultados “não significam que a União Europeia esteja à beira de ser dominada pela direita nem que o mundo esteja a caminhar inexoravelmente nessa direção”. Ele não nega, porém, que o resultado “poderá ter consequências no Brasil, que desde 2018 é palco de uma disputa entre esquerda e direita, representando um retrocesso político com graves consequências”.
Não, com Francisco Franco as coisas eram sempre piores porque os sinos do medo e da obediência ao regime tocavam à custa da própria vida. Numa folha de papel que foi entregue ao generalíssimo junto com a xícara de café depois do almoço, estavam os nomes dos que seriam mortos e Franco se divertiu desenhando uma flor ao lado de cada um dos condenados à morte. Ironia terrível!
Foi violência com tons macabros de vingança. Lembro-me que um amigo meu, advogado de Madrid, me disse com horror que lhe telefonaram para o caso de querer participar naquela manhã da tortura do homem que tinha sido seu amigo e depois se distanciaram. Eles lhe deram a entender que ele teve a oportunidade de se vingar participando pessoalmente do rito de tortura de seu ex-amigo.
Talvez por essas lembranças e outras que prefiro não reviver, sinto um arrepio ao ouvir hoje que a vida era melhor com Franco. E não se trata de discutir se uma direita democrática é melhor para a própria democracia do que uma esquerda corrupta. O que não há dúvida é que a liberdade, de expressão e de pensamento, será sempre melhor que a ditadura de qualquer cor.
Às vezes, aqui no Brasil, jovens jornalistas que conhecem minha longa trajetória jornalística me perguntam como era a vida na Espanha na época do líder, abençoado até pelo Vaticano com os privilégios concedidos àquele regime de terror que se apresentava como campeão do catolicismo.
Hoje vou contar-vos uma anedota que vivi em Madrid, quando em 1966 o regime de Franco convocou um referendo sobre o regime para comemorar os 25 anos da Guerra Civil. O plebiscito obteve naturalmente 95,90% de apoio ao líder. Foi então que vivi um momento de preocupação com a polícia franquista. Eu vim da Itália. Nesse ano, o toureiro El Viti ganhou o prêmio anual e fui convidado a entregar-lhe o prêmio no tradicional jantar desse evento em Madrid. Pediram-me para dizer duas palavras ao entregar-lhe o troféu. Por toda a cidade, os cartazes gigantes de “25 anos de paz” chamaram a atenção.
Contei aos presentes naquele jantar que encontrei uma cidade coberta de cartazes que diziam: “25 anos de paz”, mas que o importante é que foram “25 anos de paz” e não da ordem”. Quando saí do jantar, dois policiais estavam me esperando à porta. Eles queriam que eu explicasse melhor o que eu disse. Tentei explicar-lhes a diferença entre ordem e paz, que a ordem se impõe com a força e a paz se consegue com a liberdade. Eles olharam para mim como se eu fosse um marciano. Um dos policiais me disse para ser mais claro: “Eu quis dizer que enquanto a paz se consegue com a liberdade, a ordem se impõe com a força”. Eles não devem ter entendido. Perguntaram-me o que fiz em Roma. Eu disse que estudei filosofia. Os dois policiais se entreolharam e me soltaram.
Hoje, a diferença entre paz e ordem permanece viva como duas categorias que definem a existência e explicam em parte a turbulência política no mundo entre esquerda e direita, que lutam para competir. É verdade, talvez, que no tempo de Franco as pessoas saíam às ruas sem medo até ao amanhecer. A ordem estava garantida. A punição para quem tentasse quebrá-la era paga com tortura e fuzilamentos sumários.
É verdade que hoje o ressurgimento da extrema direita se deve em parte ao fato de a democracia ter adormecido um pouco e relegado para segundo plano o problema da violência que assola o mundo e da qual essa extrema direita, a da sua paixão por armas, dá origem a novas tentações de impor a ordem à custa do sacrifício da paz.
Apesar de toda a turbulência política que abala perigosamente o mundo como um todo, tal como quando eu era ainda jovem, continuo a acreditar que a paz só pode ser construída com o diálogo e a colaboração entre as pessoas e não com os demônios do medo e da violência.
Não! Com Franco as pessoas viviam pior, com maior violência, com mais fome e sem horizontes de esperança de poder saborear os frutos maduros da liberdade.
Juan Arias
O analista político Merval Pereira saiu imediatamente para tranquilizar as forças progressistas. Segundo ele, os resultados “não significam que a União Europeia esteja à beira de ser dominada pela direita nem que o mundo esteja a caminhar inexoravelmente nessa direção”. Ele não nega, porém, que o resultado “poderá ter consequências no Brasil, que desde 2018 é palco de uma disputa entre esquerda e direita, representando um retrocesso político com graves consequências”.
O eco que hoje ressoa novamente no Brasil, no sentido de que durante a ditadura as pessoas viviam melhor e com maior segurança, me fez lembrar – e o terá feito naqueles como eu que viveram a grave Guerra Civil e os 40 anos de obscurantismo franquista – que o que ressoa é a sombria litania de que “com Franco as pessoas viviam melhor”. É repetido por quem não sofreu as violências e os horrores daquela ditadura que parece querer ressuscitar.
Não, com Francisco Franco as coisas eram sempre piores porque os sinos do medo e da obediência ao regime tocavam à custa da própria vida. Numa folha de papel que foi entregue ao generalíssimo junto com a xícara de café depois do almoço, estavam os nomes dos que seriam mortos e Franco se divertiu desenhando uma flor ao lado de cada um dos condenados à morte. Ironia terrível!
Foi violência com tons macabros de vingança. Lembro-me que um amigo meu, advogado de Madrid, me disse com horror que lhe telefonaram para o caso de querer participar naquela manhã da tortura do homem que tinha sido seu amigo e depois se distanciaram. Eles lhe deram a entender que ele teve a oportunidade de se vingar participando pessoalmente do rito de tortura de seu ex-amigo.
Talvez por essas lembranças e outras que prefiro não reviver, sinto um arrepio ao ouvir hoje que a vida era melhor com Franco. E não se trata de discutir se uma direita democrática é melhor para a própria democracia do que uma esquerda corrupta. O que não há dúvida é que a liberdade, de expressão e de pensamento, será sempre melhor que a ditadura de qualquer cor.
Às vezes, aqui no Brasil, jovens jornalistas que conhecem minha longa trajetória jornalística me perguntam como era a vida na Espanha na época do líder, abençoado até pelo Vaticano com os privilégios concedidos àquele regime de terror que se apresentava como campeão do catolicismo.
Hoje vou contar-vos uma anedota que vivi em Madrid, quando em 1966 o regime de Franco convocou um referendo sobre o regime para comemorar os 25 anos da Guerra Civil. O plebiscito obteve naturalmente 95,90% de apoio ao líder. Foi então que vivi um momento de preocupação com a polícia franquista. Eu vim da Itália. Nesse ano, o toureiro El Viti ganhou o prêmio anual e fui convidado a entregar-lhe o prêmio no tradicional jantar desse evento em Madrid. Pediram-me para dizer duas palavras ao entregar-lhe o troféu. Por toda a cidade, os cartazes gigantes de “25 anos de paz” chamaram a atenção.
Contei aos presentes naquele jantar que encontrei uma cidade coberta de cartazes que diziam: “25 anos de paz”, mas que o importante é que foram “25 anos de paz” e não da ordem”. Quando saí do jantar, dois policiais estavam me esperando à porta. Eles queriam que eu explicasse melhor o que eu disse. Tentei explicar-lhes a diferença entre ordem e paz, que a ordem se impõe com a força e a paz se consegue com a liberdade. Eles olharam para mim como se eu fosse um marciano. Um dos policiais me disse para ser mais claro: “Eu quis dizer que enquanto a paz se consegue com a liberdade, a ordem se impõe com a força”. Eles não devem ter entendido. Perguntaram-me o que fiz em Roma. Eu disse que estudei filosofia. Os dois policiais se entreolharam e me soltaram.
Hoje, a diferença entre paz e ordem permanece viva como duas categorias que definem a existência e explicam em parte a turbulência política no mundo entre esquerda e direita, que lutam para competir. É verdade, talvez, que no tempo de Franco as pessoas saíam às ruas sem medo até ao amanhecer. A ordem estava garantida. A punição para quem tentasse quebrá-la era paga com tortura e fuzilamentos sumários.
É verdade que hoje o ressurgimento da extrema direita se deve em parte ao fato de a democracia ter adormecido um pouco e relegado para segundo plano o problema da violência que assola o mundo e da qual essa extrema direita, a da sua paixão por armas, dá origem a novas tentações de impor a ordem à custa do sacrifício da paz.
Apesar de toda a turbulência política que abala perigosamente o mundo como um todo, tal como quando eu era ainda jovem, continuo a acreditar que a paz só pode ser construída com o diálogo e a colaboração entre as pessoas e não com os demônios do medo e da violência.
Não! Com Franco as pessoas viviam pior, com maior violência, com mais fome e sem horizontes de esperança de poder saborear os frutos maduros da liberdade.
Juan Arias
Desmemória coletiva
Ivan Lessa se queixava de que, no Brasil, a cada 15 anos esquecemos o que aconteceu nos 15 anos anteriores. Ivan, sempre tão rigoroso com o Brasil. Mas, digo eu, em outros lugares, até mais cultos, não é muito melhor. Só varia o tempo da desmemória. Muito do que de pior acontece hoje no mundo tem como causa o fato de grande parte da população ignorar o passado de seu país, dando de barato certos privilégios e conquistas e achando que é preciso mudar tudo.
O discurso com que seus líderes se vendem como solução para os problemas econômicos de seus países se baseia em demagogia, dados falsos e no desconhecimento da história pela população mais jovem. Em Portugal, o grosso dos adeptos do Chega, novo partido de extrema direita, tem entre 18 e 34 anos. Como vão se lembrar de que, antes de 25 de abril de 1974, seu país era o mais triste e atrasado da Europa?
No Brasil, os seguidores de Bolsonaro acreditam em tudo o que ele diz sobre os 21 anos da ditadura e sonham com a volta de um país que não conheceram e nunca existiu. É normal. Nasce um otário por minuto e o ser humano tem uma irresistível tendência a ser tapeado.
Mais incrível ainda é o culto a Donald Trump nos EUA. Nesse caso, trata-se de uma desmemória de quase 250 anos. Os constituintes de 1776, que julgavam estar fundando uma democracia para sempre, não contavam com um celerado que se valeria dela para tentar destruí-la e seria apoiado por milhões.
Essa desmemória parece coletiva na Europa, com a extrema direita a ponto de tornar-se a segunda força política do continente. Já está no poder na Hungria, Eslováquia, Itália, Finlândia, República Tcheca e Países Baixos e começa a chegar perto em Portugal, Áustria, França, Espanha e, incrível, a Alemanha. Em todos, a mesma receita: populismo, nacionalismo, negacionismo, xenofobia, racismo, homofobia, ódio ao imigrante e slogans neonazistas.
O discurso com que seus líderes se vendem como solução para os problemas econômicos de seus países se baseia em demagogia, dados falsos e no desconhecimento da história pela população mais jovem. Em Portugal, o grosso dos adeptos do Chega, novo partido de extrema direita, tem entre 18 e 34 anos. Como vão se lembrar de que, antes de 25 de abril de 1974, seu país era o mais triste e atrasado da Europa?
No Brasil, os seguidores de Bolsonaro acreditam em tudo o que ele diz sobre os 21 anos da ditadura e sonham com a volta de um país que não conheceram e nunca existiu. É normal. Nasce um otário por minuto e o ser humano tem uma irresistível tendência a ser tapeado.
Mais incrível ainda é o culto a Donald Trump nos EUA. Nesse caso, trata-se de uma desmemória de quase 250 anos. Os constituintes de 1776, que julgavam estar fundando uma democracia para sempre, não contavam com um celerado que se valeria dela para tentar destruí-la e seria apoiado por milhões.
Eles já passaram!
Custa escrever, custa acreditar, mas eles já passaram! É difícil reconhecer o que não queremos ver, porque constitui uma derrota e uma ameaça. Estamos em estado de negação. Este é um fenómeno internacional. O que começou por ser “impossível”, “um fenómeno residual”, “só uma minoria”, passou a estar omnipresente no espaço público, contaminou as ruas, os media, a Assembleia da República. Condiciona eleições, impõe agendas políticas e mediáticas, um clima de tensão e de agressividade permanente e designação de bodes expiatórios.
A extrema-direita tem o talento cobarde de atacar sempre, prioritariamente, as populações mais vulneráveis, com menos possibilidade de organização, minorias com pouco ou nenhum poder, que por vezes se encontram em modo sobrevivência, sem tempo, energia ou recursos para travar lutas de defesa da sua dignidade, igualdade e mesmo segurança. Foi de segurança, aliás, que uma pessoa migrante, originária do Bangladesh, trabalhador em estufas como cortador de cravos, falou esta semana publicamente com André Ventura. Desesperado, com a voz embargada de emoção, disse ao líder da extrema-direita portuguesa ter mandado embora a sua filha pequena nascida em Portugal por ter medo, insistindo no facto de Ventura passar o tempo a dizer coisas rascistas.
Muito se tem escrito sobre a psicologia dos racistas, sobre quem odeia o outro, muitas vezes até para desculpabilizar ou relativizar o racismo. Mas raramente se fala do que sentem as pessoas discriminadas que são alvo de ódio racista, xenófobo, misógino ou LGBTfóbico. A pessoa que interpelou André Ventura deu-nos uma amostra do que sente uma pessoa vítima de discurso de ódio. Os efeitos negativos do discurso racista, de ódio “são reais e imediatos para as vítimas de propaganda de ódio feroz provocando sintomas fisiológicos e angústia emocional, que variam desde um medo no estômago até um pulso acelerado e a dificuldade em respirar, pesadelos, transtorno pós-traumático, hipertensão, psicose e suicídio”, escreve Mari J. Matsuda no artigo “Public response to racist speech: considering the victim’s story” (1989). Não é preciso ser vítima de violência física para sentir os efeitos do racismo no seu corpo. As palavras, os discursos que conduzem depois a mão de quem passa para a violência física já são armas por si só.
O discurso de ódio não serve somente para que os grupos que o propagam criem coesão entre si, nem para fixar a identidade dos sujeitos alvos do ódio, “o ódio também atua desfazendo o mundo do outro através da dor”, escreve a filósofa Sara Ahmed em The Cultural Politics of Emotion (2004). Essa dor pode ser física, mas também mental e moral com repercussões nefastas sobre a saúde das pessoas vítimas do discurso de ódio. Além disso, as vítimas são, como descreve ainda Mari J. Matsuda, “restringidas na sua liberdade pessoal” e recorrem, para não receber mensagens de ódio, a estratégias de evitamento que põem em causa as suas vidas, como abandonar empregos, casas, renunciar à educação, evitar determinados locais públicos ou restringir o seu próprio exercício dos direitos de expressão. “Por mais que se tente resistir a uma peça de propaganda de ódio”, explica Matsuda, “o efeito na autoestima e no sentimento de segurança pessoal é devastador”.
Geralmente, os seres humanos não gostam, e têm medo, de ser odiados, desprezados ou isolados. “Por mais irracional que seja o discurso racista, ele acerta no local emocional onde sentimos mais dor”, sublinha Matsuda, que insiste no facto de esta sensação de solidão ser também sentida consoante a resposta institucional, do Governo, da polícia ou dos tribunais. A forma como os polícias preferiram no 10 de junho proteger um ajuntamento neonazi enquanto reprimiam com violência manifestantes antirracistas é só um dos exemplos do abandono institucional. Eles já passaram! E, por isso, o tempo da prevenção já passou, devemos passar à fase de organização para um ataque frontal ao problema e o primeiro passo passa por admitir: eles já passaram!
Luísa Semedo
A extrema-direita tem o talento cobarde de atacar sempre, prioritariamente, as populações mais vulneráveis, com menos possibilidade de organização, minorias com pouco ou nenhum poder, que por vezes se encontram em modo sobrevivência, sem tempo, energia ou recursos para travar lutas de defesa da sua dignidade, igualdade e mesmo segurança. Foi de segurança, aliás, que uma pessoa migrante, originária do Bangladesh, trabalhador em estufas como cortador de cravos, falou esta semana publicamente com André Ventura. Desesperado, com a voz embargada de emoção, disse ao líder da extrema-direita portuguesa ter mandado embora a sua filha pequena nascida em Portugal por ter medo, insistindo no facto de Ventura passar o tempo a dizer coisas rascistas.
Muito se tem escrito sobre a psicologia dos racistas, sobre quem odeia o outro, muitas vezes até para desculpabilizar ou relativizar o racismo. Mas raramente se fala do que sentem as pessoas discriminadas que são alvo de ódio racista, xenófobo, misógino ou LGBTfóbico. A pessoa que interpelou André Ventura deu-nos uma amostra do que sente uma pessoa vítima de discurso de ódio. Os efeitos negativos do discurso racista, de ódio “são reais e imediatos para as vítimas de propaganda de ódio feroz provocando sintomas fisiológicos e angústia emocional, que variam desde um medo no estômago até um pulso acelerado e a dificuldade em respirar, pesadelos, transtorno pós-traumático, hipertensão, psicose e suicídio”, escreve Mari J. Matsuda no artigo “Public response to racist speech: considering the victim’s story” (1989). Não é preciso ser vítima de violência física para sentir os efeitos do racismo no seu corpo. As palavras, os discursos que conduzem depois a mão de quem passa para a violência física já são armas por si só.
O discurso de ódio não serve somente para que os grupos que o propagam criem coesão entre si, nem para fixar a identidade dos sujeitos alvos do ódio, “o ódio também atua desfazendo o mundo do outro através da dor”, escreve a filósofa Sara Ahmed em The Cultural Politics of Emotion (2004). Essa dor pode ser física, mas também mental e moral com repercussões nefastas sobre a saúde das pessoas vítimas do discurso de ódio. Além disso, as vítimas são, como descreve ainda Mari J. Matsuda, “restringidas na sua liberdade pessoal” e recorrem, para não receber mensagens de ódio, a estratégias de evitamento que põem em causa as suas vidas, como abandonar empregos, casas, renunciar à educação, evitar determinados locais públicos ou restringir o seu próprio exercício dos direitos de expressão. “Por mais que se tente resistir a uma peça de propaganda de ódio”, explica Matsuda, “o efeito na autoestima e no sentimento de segurança pessoal é devastador”.
Geralmente, os seres humanos não gostam, e têm medo, de ser odiados, desprezados ou isolados. “Por mais irracional que seja o discurso racista, ele acerta no local emocional onde sentimos mais dor”, sublinha Matsuda, que insiste no facto de esta sensação de solidão ser também sentida consoante a resposta institucional, do Governo, da polícia ou dos tribunais. A forma como os polícias preferiram no 10 de junho proteger um ajuntamento neonazi enquanto reprimiam com violência manifestantes antirracistas é só um dos exemplos do abandono institucional. Eles já passaram! E, por isso, o tempo da prevenção já passou, devemos passar à fase de organização para um ataque frontal ao problema e o primeiro passo passa por admitir: eles já passaram!
Luísa Semedo
Kharkiv: o quotidiano no front da guerra da Ucrânia
A primeira coisa que chama a atenção na cidade de Kharkiv, localizada no nordeste da Ucrânia, é o grande número de bandeiras nacionais alinhadas nas ruas: há mais aqui do que na capital Kiev.
Os carros passam e os bondes velhos e empoeirados chacoalham em seus trilhos, mas a primeira impressão de calma e tranquilidade não dura muito. O visitante logo se dá conta dos muitos pontos de controle, obstáculos contra tanques e prédios demolidos, lembretes da guerra da Rússia na Ucrânia, agora em seu terceiro ano, e do papel de Kharkiv como uma cidade na linha de frente.
Em meados de 2024, a segunda maior cidade ucraniana é como uma ferida aberta, que a Rússia continua a atacar com mísseis, drones e bombas quase diariamente. A paisagem urbana é marcada por janelas fechadas com tábuas, nas ruas principais numerosos prédios tiveram seus andares superiores destruídos.
Uma casa seriamente danificada e queimada ainda guarda um resquício de como a vida deve ter sido antes da guerra: Uma placa amigável que diz: "Entre para tomar um café".
A maior parte dessa destruição ocorreu durante o primeiro ano da guerra, quando as Forças Armadas russas avançaram pela primeira vez para os arredores de Kharkiv, antes de serem forçadas a recuar. As ruínas de uma escola que oferecia aulas avançadas de alemão são cicatrizes do início de 2022, quando as unidades especiais russas foram expulsas com armamento pesado.
Uma placa em alemão e ucraniano ainda está pendurada acima da antiga entrada da escola: "Sucesso no aprendizado, sucesso na vida". Essa é uma das muitas escolas de Kharkiv que se tornaram alvo de guerra.
Muitas das lojas, cafés e bares da cidade foram reabertos, embora os fregueses e clientes continuem sendo raros. Muitos edifícios têm placas indicando que estão à venda ou para alugar. As ruas se esvaziam ao cair da noite. O metrô só funciona até 21h30, e o toque de recolher começa às 23h00, uma hora mais cedo do que na capital.
Os bombardeios russos geralmente começam por volta da meia-noite. Segundo os moradores, a cidade está sendo atacada sistematicamente e "de acordo com o plano".
No entanto, desde o início de junho o bombardeio diminuiu consideravelmente. A maioria aqui acredita que isso se deve ao fato de os Estados Unidos e outros aliados ocidentais terem permitido à Ucrânia disparar as armas que eles fornecem contra alvos em solo russo próximo à fronteira da Ucrânia.
A mídia ocidental noticiou que a Ucrânia já usou as armas contra a cidade russa de Belgorod, atingindo uma bateria de defesa aérea russa S-300, um tipo de sistema em geral usado para lançar mísseis.
Restos desses sistemas podem ser encontrados no "cemitério de foguetes russos". Kharkiv abriga o maior cemitério de foguetes da Ucrânia, com destroços de mais de mil mísseis, que tem atraído a atenção internacional. Os visitantes podem ver cilindros dos sistemas russos de lançamento múltiplo de foguetes Smerch e Uragan, os sistemas de mísseis S-300 e Iskander e outros armamentos que a Rússia usou contra a região.
Guardas vigiam o depósito, só permitindo a entrada a quem venha acompanhado por um representante do promotor público local. Os cerca de mil projéteis coletados aqui têm o objetivo de servir como prova das atrocidades russas em julgamentos na Ucrânia e no exterior.
"Todos os foguetes aqui, incluindo os mísseis de cruzeiro, custam milhões de dólares", explica Dmytro Chubenko, porta-voz da promotoria regional de Kharkiv. As marcações e abreviações ainda existentes poderiam ajudar a provar a participação da Rússia na construção e disparo das armas. Além disso, elas contêm informações codificadas sobre o modelo, a fábrica e a unidade militar de onde se originaram, acrescenta Chubenko.
Como a Rússia destruiu quase toda a infraestrutura de energia de Kharkiv, os habitantes da cidade e da região dependem de geradores a diesel.
Pelas ruas, se vê pouca gente, há mais estudantes que aparentemente se preparam para se matricular. No entanto é difícil acreditar que a cidade abrigue mais de 1 milhão, tanto residentes quanto deslocados internos da zona de guerra.
Como muitos dos homens da cidade lutam na linha de frente, a cidade precisa de trabalhadores. Na entrada de uma estação de metrô, uma placa anuncia: "Kharkiv precisa de motoristas para os transportes públicos". Os futuros funcionários são atraídos com a promessa de não serem convocados para o Exército, embora na prática não haja cem por cento de garantia.
Os moradores de Kharkiv dizem que se acostumaram com os ataques aéreos, os bombardeios e as constantes ameaças às suas vidas. Poucos acreditam que será bem-sucedida a ofensiva mais recente da Rússia na região, que garantiu duas posições ao longo da linha de frente para as Forças Armadas russas. Mas eles admitem que as linhas de defesa da Ucrânia foram pegas despreparadas.
Alguns permanecem na cidade para cuidar dos pais idosos; outros se recusam a deixar suas casas e todos os objetos pessoais que juntaram ao longo dos anos. Outros, ainda, querem ficar para ajudar as Forças Armadas ucranianas na região.
Um homem de 25 anos conta que se mudou recentemente para a cidade a trabalho: "Gosto da gente de Kharkiv, ela é especial." Ao mesmo tempo, admite que, devido ao constante bombardeio russo, ele se pergunta se todos os seus colegas vão aparecer para trabalhar, a cada manhã.
Sua acompanhante relata que retornou a Kharkiv depois de ter fugido em 2022. Em sua opinião, o maior obstáculo atual é a exaustão mental, passados três anos de guerra.
Muitos admitem que o medo domina Kharkiv, mas ressalvam que um espírito de desafio impede que se embora. Uma vendedora aponta para os escombros de um prédio demolido numa rua próxima: "Fechamos às 15h30 e, há alguns dias, um míssil atingiu o local às 16h."
O espírito de resistência de Kharkiv se expressa em seus parques bem cuidados e praças limpas, ou nas tábuas cuidadosamente pintadas nas janelas das casas e nas placas que dizem: "Estamos trabalhando". Para onde quer que se olhe, os moradores provam que não vão desistir de sua cidade.
"Quando um míssil atinge a cidade, a gente se agacha, sacude a poeira e continua", conta a vendedora. Sua loja vende doces, entre os quais caixas de chocolates decoradas com uma vista da cidade, a bandeira ucraniana e os dizeres: "Kharkiv, cidade de heróis".
Os carros passam e os bondes velhos e empoeirados chacoalham em seus trilhos, mas a primeira impressão de calma e tranquilidade não dura muito. O visitante logo se dá conta dos muitos pontos de controle, obstáculos contra tanques e prédios demolidos, lembretes da guerra da Rússia na Ucrânia, agora em seu terceiro ano, e do papel de Kharkiv como uma cidade na linha de frente.
Em meados de 2024, a segunda maior cidade ucraniana é como uma ferida aberta, que a Rússia continua a atacar com mísseis, drones e bombas quase diariamente. A paisagem urbana é marcada por janelas fechadas com tábuas, nas ruas principais numerosos prédios tiveram seus andares superiores destruídos.
Uma casa seriamente danificada e queimada ainda guarda um resquício de como a vida deve ter sido antes da guerra: Uma placa amigável que diz: "Entre para tomar um café".
A maior parte dessa destruição ocorreu durante o primeiro ano da guerra, quando as Forças Armadas russas avançaram pela primeira vez para os arredores de Kharkiv, antes de serem forçadas a recuar. As ruínas de uma escola que oferecia aulas avançadas de alemão são cicatrizes do início de 2022, quando as unidades especiais russas foram expulsas com armamento pesado.
Uma placa em alemão e ucraniano ainda está pendurada acima da antiga entrada da escola: "Sucesso no aprendizado, sucesso na vida". Essa é uma das muitas escolas de Kharkiv que se tornaram alvo de guerra.
Muitas das lojas, cafés e bares da cidade foram reabertos, embora os fregueses e clientes continuem sendo raros. Muitos edifícios têm placas indicando que estão à venda ou para alugar. As ruas se esvaziam ao cair da noite. O metrô só funciona até 21h30, e o toque de recolher começa às 23h00, uma hora mais cedo do que na capital.
Os bombardeios russos geralmente começam por volta da meia-noite. Segundo os moradores, a cidade está sendo atacada sistematicamente e "de acordo com o plano".
No entanto, desde o início de junho o bombardeio diminuiu consideravelmente. A maioria aqui acredita que isso se deve ao fato de os Estados Unidos e outros aliados ocidentais terem permitido à Ucrânia disparar as armas que eles fornecem contra alvos em solo russo próximo à fronteira da Ucrânia.
A mídia ocidental noticiou que a Ucrânia já usou as armas contra a cidade russa de Belgorod, atingindo uma bateria de defesa aérea russa S-300, um tipo de sistema em geral usado para lançar mísseis.
Restos desses sistemas podem ser encontrados no "cemitério de foguetes russos". Kharkiv abriga o maior cemitério de foguetes da Ucrânia, com destroços de mais de mil mísseis, que tem atraído a atenção internacional. Os visitantes podem ver cilindros dos sistemas russos de lançamento múltiplo de foguetes Smerch e Uragan, os sistemas de mísseis S-300 e Iskander e outros armamentos que a Rússia usou contra a região.
Guardas vigiam o depósito, só permitindo a entrada a quem venha acompanhado por um representante do promotor público local. Os cerca de mil projéteis coletados aqui têm o objetivo de servir como prova das atrocidades russas em julgamentos na Ucrânia e no exterior.
"Todos os foguetes aqui, incluindo os mísseis de cruzeiro, custam milhões de dólares", explica Dmytro Chubenko, porta-voz da promotoria regional de Kharkiv. As marcações e abreviações ainda existentes poderiam ajudar a provar a participação da Rússia na construção e disparo das armas. Além disso, elas contêm informações codificadas sobre o modelo, a fábrica e a unidade militar de onde se originaram, acrescenta Chubenko.
Como a Rússia destruiu quase toda a infraestrutura de energia de Kharkiv, os habitantes da cidade e da região dependem de geradores a diesel.
Pelas ruas, se vê pouca gente, há mais estudantes que aparentemente se preparam para se matricular. No entanto é difícil acreditar que a cidade abrigue mais de 1 milhão, tanto residentes quanto deslocados internos da zona de guerra.
Como muitos dos homens da cidade lutam na linha de frente, a cidade precisa de trabalhadores. Na entrada de uma estação de metrô, uma placa anuncia: "Kharkiv precisa de motoristas para os transportes públicos". Os futuros funcionários são atraídos com a promessa de não serem convocados para o Exército, embora na prática não haja cem por cento de garantia.
Os moradores de Kharkiv dizem que se acostumaram com os ataques aéreos, os bombardeios e as constantes ameaças às suas vidas. Poucos acreditam que será bem-sucedida a ofensiva mais recente da Rússia na região, que garantiu duas posições ao longo da linha de frente para as Forças Armadas russas. Mas eles admitem que as linhas de defesa da Ucrânia foram pegas despreparadas.
Alguns permanecem na cidade para cuidar dos pais idosos; outros se recusam a deixar suas casas e todos os objetos pessoais que juntaram ao longo dos anos. Outros, ainda, querem ficar para ajudar as Forças Armadas ucranianas na região.
Um homem de 25 anos conta que se mudou recentemente para a cidade a trabalho: "Gosto da gente de Kharkiv, ela é especial." Ao mesmo tempo, admite que, devido ao constante bombardeio russo, ele se pergunta se todos os seus colegas vão aparecer para trabalhar, a cada manhã.
Sua acompanhante relata que retornou a Kharkiv depois de ter fugido em 2022. Em sua opinião, o maior obstáculo atual é a exaustão mental, passados três anos de guerra.
Muitos admitem que o medo domina Kharkiv, mas ressalvam que um espírito de desafio impede que se embora. Uma vendedora aponta para os escombros de um prédio demolido numa rua próxima: "Fechamos às 15h30 e, há alguns dias, um míssil atingiu o local às 16h."
O espírito de resistência de Kharkiv se expressa em seus parques bem cuidados e praças limpas, ou nas tábuas cuidadosamente pintadas nas janelas das casas e nas placas que dizem: "Estamos trabalhando". Para onde quer que se olhe, os moradores provam que não vão desistir de sua cidade.
"Quando um míssil atinge a cidade, a gente se agacha, sacude a poeira e continua", conta a vendedora. Sua loja vende doces, entre os quais caixas de chocolates decoradas com uma vista da cidade, a bandeira ucraniana e os dizeres: "Kharkiv, cidade de heróis".
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