domingo, 27 de fevereiro de 2022

Como suportar o “não sei” sobre a Ucrânia

Tenho um preconceito sobre os russos, claro, infundado. Acho que são pessoas muito inteligentes. O tipo de pessoa que sabe tudo, que escreve livros muito longos, sólidos como tijolos, pessoas que podem ordenar a realidade em categorias e tocar violino ao mesmo tempo. Acho que todos os russos tocam algum instrumento musical, outro preconceito, sabe. Talvez seja por isso que, quando conheci Sergei há algumas semanas, ele parecia tão inteligente. Fiz meu primeiro amigo russo em um parque em Madri. Conhecemos-nos vendo nossas filhas brincarem, que são super amigas. E me pareceu o mais lógico que, uma vez ativado seu talento natural, ele soubesse o que ia acontecer com a guerra na Ucrânia.

Meu novo amigo decidiu deixar a Rússia porque queria experimentar outros modos de vida, outras culturas. Ele não fugiu de nada; simplesmente foi embora. Decidiu quando terminou o curso de medicina (em russo, é claro) e lhe ocorreu que seria bom fazer o MIR — um exame impossível em seu próprio idioma — em um idioma que ele nunca tinha ouvido. Assim, dedicou um ano a estudar espanhol e outro a preparar-se para um exame sufocante para todos os que se atrevem a enfrentá-lo. Hoje é neurocirurgião num hospital público de Madrid, graças ao fato de ter obtido uma das melhores notas dessa promoção. Meu preconceito cresceu como uma vela desfraldada em alto mar, enquanto Sergei humildemente me contava sua história em espanhol com pouco sotaque. Evidentemente, na segunda tarde em que nos encontramos no parque, não pude deixar de perguntar o que já era – algumas semanas atrás – a pergunta do ano. O que acontecerá com a guerra na Ucrânia?

O amigo russo me olhou surpreso. “Nada vai acontecer”, ele me informou. “O que acontece é que a mídia europeia está obcecada com a Rússia, mas não faz sentido. Meus pais e minha família estão tranquilos, nada disso aparece nas notícias de lá. Meus amigos da Ucrânia também não estão preocupados. A Rússia não quer ser uma superpotência, é tudo como um filme, mas esses tempos acabaram. Você não acha?”. Então eu fiquei com muito medo, que é o que acontece quando os preconceitos caem. A primeira reação nunca é de alívio, mas de medo. Se uma pessoa tão inteligente e racional como meu novo amigo Sergei não tinha ideia, não apenas do que iria acontecer, mas do que já estava acontecendo, poderíamos estar vivendo no pior cenário possível.

Então falei com Sergei de Berna Gonzalez Harbour, o jornalista que anunciou neste jornal em 20 de janeiro que já estávamos (quase) em guerra. Também de uma das capas do mesmo mês da revista The Economist, que consistia em uma ilustração de Putin sentado em um grande trono com um Kalashnikov nos joelhos. “O senhor Putin vai vê-lo agora” era o título da ameaça anunciada. O fundo da capa era rosa como chiclete e a guerra parecia então uma questão quase pop.

Sergei não vacilou. “O tempo dirá”, foi sua frase. Então pensei em uma velha piada para me consolar ou talvez trocar um preconceito por outro. A piada, que não contei a Sergei, é assim. “Três homens em uma cela da KGB se perguntam: ‘E você, por que está aqui? Por criticar Klaus Amseck; o outro: por elogiar Amseck, e o terceiro: eu sou Klaus Amseck”. Apenas 15 dias após nossa conversa sem graça, o pior aconteceu. Porque não apenas uma guerra estourou, mas a pior guerra possível, uma em que todos os analistas se sentem como Klaus Amseck. As palavras “escalada”, “castigo”, “nuclear”, “colapso”, “firmeza”, “morto”, “mísseis” são mastigadas em editoriais ao redor do mundo. E a inteligência, a razão e até a história são impotentes para construir qualquer cenário previsível, tão insuficiente e inútil quanto a poderosa inteligência de Sergei ao pensar no futuro de seu próprio país.

A guerra e a inteligência têm apenas um relacionamento superficial e egoísta. Acho que Albert Camus estava certo em A Peste. Outra vez. “Quando uma guerra estoura, as pessoas dizem: ‘Isso não pode durar, isso é muito estúpido.’ E certamente uma guerra é muito estúpida, mas isso não a impede de durar. A estupidez sempre insiste”, escreveu Camus. Mais uma vez este título sobre a mesa, mais uma vez a realidade tornou-se opaca, negra e indecifrável. Novamente o terror da incerteza. Mais uma vez, aceite que ninguém pode saber o que vai acontecer. Mais uma vez carregamos o “não sei” costurado em nossa identidade e em nosso mundo. De novo esse medo e esse horror. Não só compaixão e empatia com aqueles que estão morrendo, com aqueles que se refugiam no terror nos túneis do metrô de Kiev, mas também (ainda acima de tudo) o medo de não saber o que vai acontecer, desarmado diante da arbitrariedade.

É por isso que o ataque de Putin supera o que está acontecendo na Ucrânia e semeia a guerra em todo o mundo. Porque seu ataque quebra a previsibilidade que pensávamos ter estabelecido e dinamita nosso sistema de afabilidade global com a mais pesada artilharia simbólica: o senso de realidade ou tem loucura ou não é senso de realidade. Putin conseguiu fazer a Europa dizer em voz alta “não sei”, para que essas três palavras possam ser ouvidas como um eco no discurso de Biden. Não queremos apenas chorar. Também, e acima de tudo, queremos compreender. O que vai acontecer agora? – perguntamos a jornalistas, políticos, amigos, analistas. E todos nós temos que aturar a resposta: “Eu não sei”.

Não sabemos. E nossa perplexidade é uma arma para Putin. Ele joga com o maior preconceito do Ocidente, falso como qualquer outro: acreditar que a vida é previsível e que podemos projetar o futuro. Só podemos suportar nosso “não sei” e nos render de uma vez por todas à evidência de que a linguagem e a ação humana têm zonas opacas.

Estou em Madrid, segura. Aconchego com minhas filhas à noite e tudo parece seguro neste canto da Europa. Então, um diz: “Você lembra quando em 2019 eles disseram que o morcego da covid nunca chegaria à Espanha?”
Nuria Labari

Guerra tem dono

A História é como uma faca: você pode usá-la para cortar pão, mas também para matar. O falecido Fritz Stern, eminente estudioso da História da Alemanha, dizia o mesmo de analogias históricas — elas tanto podem jogar luz e clareza sobre um tema como gerar contendas envenenadas de insensatez. No caso da invasão da Ucrânia por uma Rússia imperiosa presidida pelo czar moderno Vladimir Putin, tem as duas coisas. Com mandato eleitoral para ficar no poder até 2036, quando fará 84 anos, Putin decidiu recuperar pelo menos algumas zonas de influência perdidas com a implosão da União Soviética. Ou, pelo menos, tentar inverter os últimos 30 anos de arrogância militar por parte dos Estados Unidos e dos países europeus reunidos na Otan.

Para tanto, recorreu a uma “guerra de escolha”, e não “de necessidade”, repetindo terminologia usada por Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations de Nova York. Ao contrário das “guerras de escolha”, que em geral terminam mal para quem as lança, Haass designa como “guerra de necessidade” o recurso à força para a proteção da sobrevivência ou dos interesses vitais de um país. Cita como exemplo a entrada dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Decididamente, não é o caso da Rússia de 2022. O rolo compressor com que Putin atropelou a soberania territorial do país vizinho deixou não só 45 milhões de ucranianos sem chão — seja em fuga, seja de coquetel molotov em mãos —, como estonteou o planeta.


Os desdobramentos do ataque inicial têm mudado de gravidade a cada par de horas, arrastado para o conflito novos protagonismos e produzido riscos ainda desconhecidos. Portanto qualquer previsão seria temerária por ora. O que não muda são os horrores da guerra. “Eu não sei com que tipo de armamento a Terceira Guerra Mundial será travada”, escreveu Albert Einstein em 1949, “mas a Quarta será combatida com paus e pedras”. O cientista tinha visto a humanidade se aniquilar entre 1940 e 1945 e fazer uso decisivo das pesquisas sobre bombas atômicas que ajudou a formular.

Nesta semana, quando Putin disse que quem interferisse na invasão da Ucrânia sofreria “consequências nunca antes experimentadas na História”, foi fácil entender a referência a seu arsenal de 6 mil ogivas nucleares apontadas para o Ocidente. Ato deliberado. Das duas uma: ou o homem forte do Kremlin pensa realmente no impensável, ou fez uso apenas retórico do horror possível para se impor ao mundo.

No fundo, em graus variados, todas as potências nucleares pensam no armagedom que têm em mãos. Vale transcrever aqui um diálogo de 1972, bastante concreto, entre Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, e seu secretário de Estado, Henry Kissinger. O tema era o atoleiro americano no Vietnã, e Nixon cogitava aniquilar, de uma só tacada, a ampla rede de diques, docas e ferrovias construídos pelos vietnamitas. A fita gravada desse diálogo reptiliano só foi tornada pública 30 anos mais tarde, graças à Lei de Acesso à Informação dos Estados Unidos. Nixon começa:

— [O bombardeio de diques] vai afogar a população?

— Cerca de 200 mil pessoas, responde Kissinger.

— Prefiro usar bomba nuclear. Você entendeu, Henry?

— Isso eu acho que seria demais.

— A bomba nuclear, por que ela incomoda você? Pelo amor de Deus, Henry, eu quero que você pense grande... O único ponto sobre o qual divergimos é em relação aos bombardeios. Você vive preocupado com as baixas civis...

— Os civis me preocupam porque não quero que o mundo se mobilize contra você por ser um açougueiro.

Até mesmo estadistas considerados gigantes, como Winston Churchill, questionaram a sensatez de manter algum cavalheirismo humanista em tempos de guerra. Numa minuta em sete pontos de suas anotações pessoais de 6 de julho de 1944, Churchill escreveu: “Necessidade de pensar a sério sobre uso de gás venenoso. Eu não recorreria ao expediente exceto se (a) a situação para nós for de vida ou morte ou (b) se o recurso encurtar a guerra em um ano (...). Plano de encharcar a Alemanha de gás deve ser estudado por analistas frios, e não por aqueles carolas que sempre aparecem uniformizados cantando hinos derrotistas”.

Toda guerra tem seu corolário de barbárie. Assim como toda guerra costuma ter dono. A da Ucrânia leva a assinatura única de Vladimir Putin, enquanto a invasão, ocupação e destruição do Iraque soberano em 2003 (outra “guerra de escolha”, sem motivo) foi obra do presidente americano George W. Bush. O tamanho da condenação mundial, ínfima no caso de Bush, as distancia na percepção global. O grande diferencial entre ambas é de fundo: o ato de guerra de Putin não permite divergências. O regime é autocrático. Os Estados Unidos de Bush eram, e ainda são, uma democracia.

Coube ao ex-guerrilheiro tupamaro, ex-presidente do Uruguai e humanista vitalício José Alberto “Pepe” Mujica, de 86 anos, refrasear as palavras de Einstein citadas no início deste artigo. Em comentário de dois dias atrás para a rádio Deutsche Welle, perguntou: “Será possível que a humanidade do futuro não possa abandonar os orçamentos militares, a loucura da guerra? Seguiremos na Pré-História, com a única diferença que a barbárie dos homens primitivos parece brincadeira se comparada à barbárie dos homens contemporâneos”.

Covardes e oportunistas

Mesmo com exemplos de sobra – estatismo exacerbado, ojeriza à imprensa, obediência cega ao chefe, que sempre está acima de tudo e todos -, petistas e bolsonaristas viram bichos quando alguém aponta semelhanças entre eles. Na invasão da Ucrânia por Vladimir Putin, as parecenças reavivaram-se.

Ainda que com argumentos diferentes, ambos evitaram condenar o ataque do neoczar russo. As notas do Itamaraty e do PT, igualmente muristas, poderiam ser assinadas por um ou outro sem mexer em uma única vírgula. Como o que importa não são os mortos e feridos de uma guerra absurda e sim a eleição que se aproxima, os dois lados correram para desautorizar declarações e rearranjar discursos.


Jair Bolsonaro puxou a orelha do seu vice, Hamilton Mourão, que, na primeira hora, condenou veementemente o ataque russo. E o PT de Lula fez com que o seu líder do Senado, Paulo Rocha (PA), retirasse do Twitter uma “nota oficial” em que condenava a política dos Estados Unidos “de agressão à Rússia e de contínua expansão da Otan em direção às fronteiras russas”, que ele chamou de “política belicosa”.

O escorregão de sincericídio dos senadores petistas foi substituído por um texto anódino pró-diálogo e em favor da paz – algo que ninguém em sã consciência criticaria -, assinado pela presidente da legenda, Gleisi Hoffmann. Lula, por sua vez, chegou a repudiar o ataque em entrevista a uma emissora de rádio. Mas recuou em falar mais sobre a invasão, visto que parte de sua militância é aderente ao discurso anti-EUA, o país-diabo para a esquerda do século passado.

Intelectualizada, a retórica petista busca justificativas à base de convenientes reinterpretações da História. Condena a opressão dos Estados Unidos a todos os povos, exalta os tempos de glória da União Soviética, sem considerar a matança política de Stalin. Alia-se às ditaduras da Venezuela, da Nicarágua e de Cuba, destilando ódio às democracias ocidentais. Curiosamente, as mesmas que reverenciam Lula com tapete vermelho.

O raciocínio bolsonarista também é pra lá de tortuoso. O presidente não esconde a proximidade com a pauta conservadora de Putin, especialmente no que diz respeito aos costumes. Mas foi muito mais tímido do que o seu “irmão” ultradireitista Viktor Orbán, da Hungria, que condenou os ataques e abriu suas fronteiras para receber ucranianos.

Bolsonaro justifica sua neutralidade pela “dependência” que o Brasil tem hoje dos fertilizantes importados da Rússia e pela relação “extraordinária” com Putin, novamente confundindo o Brasil com suas simpatias pessoais. Nas redes, sua trupe mais aguerrida alia-se a Donald Trump, que, na tentativa de evidenciar uma alegada fragilidade do presidente Joe Biden, faz alegorias ao agressor russo.

O mais aflitivo para Bolsonaro deveria ser o mico de ter se solidarizado com Putin poucos dias antes da invasão, durante a visita um tanto fora de hora que fez ao líder russo. Impropriedade que se soma aos erros grotescos de sua inteligência militar, que falhou feio. Não viu riscos de guerra iminente, deixando mais de 500 brasileiros entre as bombas na Ucrânia, instruídos a não deixar o país no pré-conflito anunciado e agora sem guarita ou plano de retirada.

Ainda que possa ter reflexos na economia do país, a invasão russa está longe de influir na eleição brasileira de outubro. Mas ela escancara a admiração dos protagonistas mais bem posicionados nas pesquisas a líderes autocratas, que vilipendiam a democracia. É simples: ser neutro na guerra contra a Ucrânia é apoiar Putin. E didática: neutralidade entre agressor e vítima só existe na cabeça de covardes e oportunistas. Figurinos sob medida para Bolsonaro e Lula.

Pensamento do Dia

 


A guerra de cada um

Confesso que não esperava ver nos jornais notícias de uma guerra como essa entre Rússia e Ucrânia. Concordo que é preciso acompanhá-la de perto, para tentar descobrir suas origens e a justiça delas. Para saber sobretudo como podemos ajudar o mundo a se livrar de episódios insensatos como esse.

Menos glamourosa que a invasão da Ucrânia pelo Exército russo, uma outra notícia falou das contas de bilionários em 2021. Pois, por essas novas contas, Mark Zuckerberg, o jovem proprietário da Meta, dona do Facebook, caiu para o 14º lugar no ranking dos ricos festejados pela revista Fortune. Mas Zuckerberg não precisa sofrer horríveis pesadelos por causa disso. Esse acidente em suas finanças não significa que periga ele ter que passar o chapéu na missa de domingo para ver se recupera um pouco o valor de seu cofre. Ele pode continuar a levar a vida que levou até agora, um pouco mais discretamente para não escandalizar ninguém, até recuperar a posição do Facebook e de seus irmãos digitais.

Como a notícia é divulgada pela imprensa em geral e pelas redes sociais em particular, parece até que o céu vai cair sobre a cabeça de Zuckerberg. Nosso amado capitão fez movimento parecido, com o sinal trocado, quando mandou espalhar pelos mesmos jornais, noticiários de TV e redes sociais, além de documentos oficiais, a notícia de que sua iluminada visita a Moscou impediu a declaração de uma Terceira Guerra Mundial, a ser iniciada com um embate entre Rússia e Ucrânia.


Apesar de todo mundo saber que a Ucrânia é uma “potência pós-digital”, com uma posição privilegiada no universo “figital” (físico e digital), reconhecida do Vale do Silício ao mundo inteiro, o Banco Central Europeu se comportou como se estivesse diante de um modestíssimo cliente e não do país que encabeça, por exemplo, a lista global de serviços em TI. Segundo o próprio governo ucraniano, o número de profissionais especializados que trabalham para empresas de fora do país passa de 200 mil. Nem por isso estaria justificada uma intervenção militar russa para controlar o país, qualquer que seja o pretexto usado por Putin. Incluindo o medo da Otan e o perigo de sua proximidade de Moscou. O mundo inteiro vive hoje desse jeito. E daí?

O atual presidente da Ucrânia é Volodymyr Zelensky, um comediante estrela da televisão ucraniana. É mais ou menos como se tivéssemos eleito por aqui nosso inesquecível Chico Anísio que, com sua cultura política, seu interesse pelo país e o papel que exerceu com seus conhecimentos no rádio, na televisão e no cinema, seria um excelente gestor de valores nacionais. Aliás, Ary Barroso exerceu esse papel no Brasil pós-Vargas.

Não estou pedindo apoio a Zelensky, eu mesmo não conheço nada de sua produção pessoal. Estou só tentando lembrar que ele pode ser representante de uma linha de pensamento político na Ucrânia que não é nada vulgar e que merece um certo respeito.

Nossa guerra interna, no Brasil, é sobretudo contra a morte de crianças, pobres e pretos. Como Agatha, de 8 anos, que foi morta com um tiro pelas costas, sentada no carro em que ia para casa vinda da escola. Quem atirou nela foi um PM que dizia estar se livrando de um ataque de bandidos do Complexo do Alemão, um dos bairros mais “perigosos” do Rio de Janeiro. Os pais de Agatha recusaram ajuda financeira do estado para sepultar a filha e até hoje esperam por justiça. Na época do assassinato, o avô de Agatha deu uma clara e generosa declaração à imprensa: “Isso é confronto? Minha neta estava armada? A arma que ela amava usar era o lápis com que escrevia e desenhava os deveres do colégio”. E Agatha era negra e pobre, como o policial que a matou.

E, antes que a gente passe insensível pelo evento, essa semana morreu um dos maiores cineastas do Brasil, um dos mais destacados e reconhecidos gênios do cinema latino-americano, Geraldo Sarno. De Covid.

Os tanques e o sonho europeu

Numa crônica publicada na última edição da revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina, observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos chineses do restaurante.

Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?


Quando há um conflito, a vida de gente comum é abruptamente atropelada pela geopolítica. “Em Belgrado, na guerra da Sérvia, observei que as pessoas se preocupavam primeiro com a família e depois em conseguir coisas básicas como comida, que começava a faltar nos supermercados”, diz o jornalista Ricardo Alexandre, entrevistado no minipodcast da semana. Ele acaba de lançar um livro sobre o Afeganistão e é um dos maiores especialistas portugueses em conflitos internacionais.

O bom jornalismo sempre esteve atento para o efeito das guerras sobre o cotidiano. Em 2003, Jon Lee Anderson, da The New Yorker, conversou com representantes da classe média iraquiana às vésperas do bombardeio americano. Um dos entrevistados era um violinista que não sabia se sua orquestra continuaria existindo. Era iraquiano. Podia ser nova-iorquino.

Da mesma forma, o médico japonês descrito no livro Hiroshima, do repórter John Hersey, podia ser americano. Ele estava na varanda de seu hospital quando a bomba atômica o lançou a vários metros de distância. Teve o azar de estar do lado errado no conflito em 1945.

Da guerra, o ucraniano Artem guardou a frase de um colega do front: liberdade é poder se preocupar com coisas triviais. A Rússia invadiu a Ucrânia, e talvez não seja mais possível a Irina e Artem pensar em pasteizinhos chineses. Eles também sonhavam com um futuro europeu para o filho de 11 anos. Grande parte dos ucranianos escolheu esse futuro em eleições. A geopolítica, com seus tanques, pode fazer terra arrasada do sonho.

Verdade tá na cara

Nós já esquecemos completamente o axioma de que que a verdade é a coisa mais poética no mundo, especialmente no seu estado puro. Mais do que isso: é ainda mais fantástica que aquilo que a mente humana é capaz de fabricar ou conceber... de facto, os homens conseguiram finalmente ser bem sucedidos em converter tudo o que a mente humana é capaz de mentir e acreditar em algo mais compreensível que a verdade, e é isso que prevalece por todo o mundo. Durante séculos a verdade irá continuar à frente do nariz das pessoas mas estas não a tomarão: irão persegui-la através da fabricação, precisamente porque procuram algo fantástico e utópico.
Fiodor Dostoievski, "Diário de um Escitor"

Putin perdeu

Vladimir Putin perdeu. Se o plano era marchar até Kiev, arrancar o presidente ucraniano de sua poltrona e enfiar um fantoche em seu lugar, em meio à apatia geral, pode-se dizer que ele fracassou. Volodymyr Zelensky, usando como arma apenas seu telefone celular, tornou-se um símbolo poderoso demais. De fato, mesmo que consiga assassiná-lo nos próximos dias, o carniceiro russo já foi derrotado. Não no campo de batalha, onde sua brutalidade deve se impor, e sim no campo do Manchester United, que tirou da camisa o patrocinador russo, ou no quintal de Homer Simpson.

Isoladamente, esses gestos de solidariedade que se espalham pelas redes sociais podem parecer pitorescos; somados, porém, eles produzem um estrago maior do que qualquer bazuca, porque empurram as democracias ocidentais a um empenho jamais visto. Quem poderia imaginar que os europeus apoiassem o expurgo da Rússia do comércio internacional, apesar do risco de escassez de gás? Foi o que ocorreu.

Até os aliados de Vladimir Putin viraram as costas para ele. Só sobraram uns personagens desimportantes e aloprados como Jair Bolsonaro, mais uma prova de que o criminoso da KGB perdeu. O presidente brasileiro está disposto a trocar a democracia por um saco de fertilizantes. Isso dá uma medida de seus valores. Mas o fato é que, assim como Vladimir Putin, ele também foi derrotado por CR7 e Homer Simpson.